Governar é não assustar." Bias Fortes, ex-governador de Minas Gerais
Roberto Campos – 03/11/1991
Numa das crises dos anos 50, Oswaldo Aranha se lamuriava de ser o Brasil um "deserto de homens e de idéias". O País e os problemas desde então cresceram, os homens e as soluções se apoucaram. Por isso, as idéias novas que surgem merecem saudações enternecidas. Mencionarei duas: a proposta do, IUT, Imposto Único sobre Transações, do professor Marcos Cintra (ou "Imposto Único sobre Pagamentos", na versão do deputado Flávio Rocha) e o programa de "estabilidade com crescimento", do professor Paulo Rabello de Castro.
Nossa ética fiscal foi praticamente destruída. Dizia o grande juiz norte-americano Oliver Wendell Holmes que pagar impostos é comprar civilização. No Brasil, é comprar chateação. O contribuinte tem três percepções: a) o governo não lhe dá contrapartida minimamente razoável de serviços; b) o sistema fiscal é de extrema complexidade com altos custos burocráticos e três níveis de corrupção; c) o Fisco é globalmente iníquo porque escapam da carga fiscal as entidades governamentais, notoriamente inadimplentes, e toda a economia informal. Apenas o terço da economia representada pelas empresas organizadas do setor privado e pelos assalariados com carteira assinada é contribuinte. Os outros dois terços são delinqüentes. Dessarte, a estimada carga fiscal de 24% do PIB, que pareceria razoável em termos mundiais, é escorchante quando aplicada ao PIB do setor privado formal. Sem falar, naturalmente, no imposto inflacionário.
Os fiscalistas clássicos consideram questão de decência patriótica e orgulho ético acentuar, pela progressividade das alíquotas, a carga sobre os mais ricos. É uma superstição socialista. Todos devem pagar proporcionalmente às suas rendas. Impor aos bem-sucedidos encargos mais que proporcionais é simples confisco, só compreensível se: a) a riqueza fosse um demérito a ser punido e não, como frequentemente ocorre, o resultado de maior diligência e criatividade; b) se o governo fosse um ente puritano, com inquestionáveis prioridades, e não um gastador perdulário. O melhor sistema fiscal não é o que castiga os ricos, mas o que preserva para cada um o máximo de incentivos à sua capacidade produtiva. A "justiça fiscal" se faz muito mais do lado dos gastos do que do lado da coleta.
É óbvia a desintegração de nosso sistema fiscal. Sempre profetizei que a correção monetária só poderia morrer de morte morrida, e não de morte matada. Ao matá-la por decreto no Plano Collor 2, os heterodoxos esvaziaram o Imposto de Renda, a recessão esvaziou o IPI, litígios judiciais sobre bitributação desmilingüiram a arrecadação das contribuições sociais para a Previdência. Era fácil, assim, prever para outubro e novembro deste ano uma confluência de crises. Além da crise cambial, resultante principalmente da taxa desatualizada, era previsível uma crise fiscal.
Em face desse desastre, que deixou o governo sem alternativas outras que a política de juros altos, tornou-se imperativo e consensual o reexame do problema fiscal. Alguns propõem simplificações reformistas, outros, inovações revolucionárias. Incluo-me entre os últimos.
O País tem-se entregado a originalidades desnecessárias, como a autonomia tecnológica em informática, a teoria da inflação inercial, o seqüestro de haveres privados. Em matéria fiscal, entretanto, tem chances de uma experiência pioneira, como a do Imposto Único sobre Transações. Isso pela coincidência de circunstâncias inexistentes alhures: a) tanto a ética como a estrutura fiscal entraram em colapso; b) a economia já está desmonetizada - o papel-moeda em poder do público é 1% do PIB; c) o sistema bancário é surpreendentemente eletronificado para um país do Terceiro Mundo.
A meu ver, características de uma revolução fiscal seriam: 1) um fato gerador suficientemente amplo e simples para elidira fronteira entre contribuintes e delinqüentes; 2) alíquotas suficientemente baixas para tornar ridícula a engenha- ria da sonegação; 3) coleta automatizada para tomar dispensáveis as três burocracias do Fisco; e 4) repasse instantâneo aos beneficiários, evitando-se as complicações da indexação dos tributos.
Todas essas condições são satisfeitas pela proposta do professor Marcos Cintra e por nenhuma das propostas reformistas. O fato gerador do IUT seria o mais amplo possível, a transação, de que a renda, a circulação, o comércio, a compra e venda dos serviços e as operações financeiras são subconjuntos. O agente arrecadador seria o sistema bancário, substituindo-se milhares de fiscais por programas de computador. A alíquota poderia ser mínima - 2% - sobre as transações monetárias efetua das no sistema bancário, dividida entre credores e devedores. A distribuição da receita seria automática, segundo fórmula de repartição entre os governos federal, estadual, municipal e o sistema previdenciário, anualmente votada pelo Congresso. Eliminar-se-ia toda a parafernália de declaração de renda, notas fiscais e registros de contribuições.
Por contraste, as demais propostas de reforma fiscal, visando à compactação dos impostos em alguns fatos geradores clássicos, como a renda ou o consumo, conquanto úteis, não trariam nem universalidade nem automaticidade ao sistema. É como tratar de dentes cariados quando o problema é câncer na língua...
Segundo simulações, que podem e devem ser aperfeiçoadas, um imposto de 2% dividido entre os pagamentos e os recebimentos através da rede bancária geraria cerca, de US$ 90 bilhões ao ano, comparativamente aos US$ 80 bilhões coleta dos em 1990 de todos os impostos, nos três níveis de governo (inclusive Previdência). Haveria, assim, margem de segurança para imprevistas mudanças de comportamento na utilização de cheques, sem contar que as despesas de coleta através da rede bancária seriam uma pequena fração do custo atual. A partir da fixação da fórmula de repartição do bolo pelo Congresso, os fiscais passariam a ser os governadores e prefeitos, em comunicação com a rede bancária.
A proposta do imposto único só seria revolucionária se o imposto fosse único, e não um imposto a mais. Sobreviveriam apenas impostos de regulação econômica e taxas por serviços efetivamente prestados. O governo perderia a "capacidade de assustar", pela multiplicação de tributos e de alíquotas.
Um segundo sopro inovador é a proposta de "estabilidade com cresci- mento" do professor Paulo Rabello de Castro. Contém percepções provocantes. De 1986 em diante, a inflação brasileira teria deixado de ser comum, passando à condição de hiperinflação. Esta se instaura a partir do momento em que o financia- mento público deixa de ser voluntário, acumulando-se três cobranças - a da dívida externa, a da dívida interna e a da dívida social. Tornam-se, então, racionais atitudes aberrantes, como ter depósitos no Exterior, recusar prazos longos nos títulos do governo e remarcar preventivamente os preços. Tanto a inflação como a hiperinflação podem ser curadas com métodos ortodoxos. Apenas a ortodoxia é diferente, centrada no primeiro caso na contenção da procura, pela política monetária-fiscal e, no segundo, na liberação da oferta mediante reformas institucionais. Todo mundo fala na fragilização financeira do setor público, mas o que foi realmente fragilizado foi o setor privado, pela perda de confiança e de capital gerada por sucessivos confiscos. A grande dívida social é a renda cessante, isto é, a perda da renda potencial da população em decorrência da crise hiperinflacionária - além da corrupção e do desperdício na utilização das contribuições previdenciárias. Parte dessa dívida social poderia ser resgatada pela cessão de ativos públicos a um fundo previdenciário, gestor da seguridade social. Assim, a privatização das estatais se faria imediatamente pela sua cessão aos fundos previdenciários e, paulatina- mente, pelos processos normais de venda em Bolsa.
O Brasil financiou e perdeu uma longa guerra contra o subdesenvolvimento, liderada pelos "entes estatais". Tem de abandonar o centralismo e marchar para a liberalização de preços, salários e câmbio. Haveria ênfase sobre as exportações, como elemento antirecessivo, e as cambiais de exportação poderiam servir de lastro a uma poupança forte.
À parte meu ceticismo quanto à possibilidade de restauração da ética fiscal mediante uma simplificação tributária, tenho poucas discordâncias em relação ao enfoque holista e inovador do professor Paulo Rabello de Castro. Certamente, o Programa de Estabilização com Crescimento merece tratamento mais respeitoso que o dispensado ao misterioso Plano K.