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Flávio Rocha

A "cascata" da cascata

Flávio Rocha

(Publicado no Livro Tributação no Brasil e o Imposto Único. São Paulo, Makron Books, 1994).


A implementação desastrada do Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras deu aos tradicionais adversários do Imposto Único um palanque e um discurso.


Outrora acuados pela retumbante repercussão da proposta do prof. Marcos Cintra, consubstanciada pela Emenda Constitucional de nossa autoria, os grandes beneficiários das mazelas do nosso complexo e irracional sistema tributário passaram a demonstrar, de uma hora para outra, uma súbita "indignação cívica", surpreendente e até exagerada para quem calou diante de golpes muitos mais duros contra o povo.


Ficou muito evidente que a ira desses senhores não era decorrente de solidariedade ao contribuinte, mas da percepção de que a implementação do IPMF significa o começo do processo que nos levará irreversivelmente ao Imposto Único.


O tal "Movimento contra o IPMF" abriga, pelo menos, dois interesses bem diversos. Em primeiro lugar, aquele movido peJa justa indignação contra mais este ônus ao sobrecarregado contribuinte brasileiro. Ao lado destes, como se tivessem algo em comum, os que vêem no IPMF uma ameaça. Perceberam que a adoção desta nova base de cálculo, relevante decorrência da realidade atual da "moeda eletrônica", abrirá uma larga avenida em direção ao tão desejado Imposto Único.


Esses últimos, já conhecíamos de longa data, embora não com essa desenvoltura. São os banqueiros, temerosos de perder o precioso float decorrente do recolhimento de impostos. Quanto mais complexos os procedimentos de arrecadação, mais fácil justificar uma permanência prolongada do resultado da receita tributária nos bancos. Cinqüenta e oito tributos, cada um com o seu rito burocrático e sua guia de recolhimento distintos, são o pretexto ideal para que se retenha o resultado da arrecadação por um período que já chegou, num passado recente, a quarenta e um dias médios. Hoje, o float tributário não chega a tanto. Segundo a própria Febraban, vai de 48 a 72 horas. Mesmo assim, o suficiente para render, a um por cento ao dia, nada menos que um US$ 1,60 bilhão ao ano, ou mais do que o dobro dos lucros líquidos somados de todos os bancos privados brasileiros.


Não nos opomos à idéia de remunerar o sistema financeiro por este serviço. Mas por vias transparentes. O mecanismo atual contribui para distanciar cada vez mais os interesses nacionais dos interesses do sistema financeiro. Os bancos querem inflação, juros altos, governo endividado e déficit público elevado. Desagrada igualmente aos banqueiros a idéia de verem tributadas, ainda que com uma alíquota ínfima em relação às que são pagas pelo setor ético da economia, as quatro milhões de contas-fantasmas ativas.

O inferno fiscal é o paraíso dos tributaristas. A assessoria tributária tornou-se um rico filão que viceja graças à irracionalidade do nosso sistema tributário. Este numeroso contingente engrossa as fileiras histéricas do movimento que é contra o IPMF de 0,25%, mas é conivente com a colossal regressividade do sistema fiscal brasileiro. Hoje, um trabalhador de salário mínimo, pelo simples fato de estar confinado à economia formal, trabalha oito meses ao ano pata pagar impostos, enquanto grandes fortunas são construídas fora do alcance dos tributos convencionais.


Por último, a gigantesca máquina de coação e achaque em que se transformou a estrutura arrecadadora nos seus diversos níveis. Temem não apenas perder o emprego e a gorda teta da corrupção fiscal, mas também a caça às bruxas que se seguiria à chegada da tributação automática: e impessoal. Hoje, consegue-se manter fora do conhecimento público os mais escabrosos relatos de corrupção fiscal graças ao terrorismo generalizado nessa área. Em que deu, por exemplo, aquele célebre caso de extorsão documentado em vídeo por Ricardo Semler? Talvez, no máximo, uma transferência para o fiscal corrupto. Mas a empresa continua perseguida até hoje e o seu proprietário, amargando o pior arrependimento. A impunidade que tem sido a regra para todos os outros casos semelhantes acabará junto com o temor da represália.


Seria redundante evidenciar as raras exceções. Homens que, apesar de pertencerem a esses grupos, tiveram a grandeza de colocar o Brasil acima dos interesses egoístas das corporações a que pertencem. Cito por um dever de justiça o prof. Ives Gandra Martins, incentivador de primeira hora do Movimento Pró-Imposto Único, e que deu forma à Emenda Constitucional nº 17, do mesmo nome.


Esses três poderosos grupos passaram a dar o tom dos discursos, investindo contra o IPMF como se estivessem defendendo intransigentemente o pagador de impostos, quando o verdadeiro alvo é bem outro.


Derrotados sucessivamente nas duas casas legislativas, a nova trincheira dos desafetos da automaticidade tributária passou a ser a regulamentação do imposto. De nada valeu o compromisso do líder do Governo, deputado Roberto Freire, de que os envolvidos com a campanha pelo Imposto Único acompanhariam passo a passo a feitura da lei complementar do IPMF. Esta tarefa foi confiada a uma corporação de inegável suspeição neste assunto: a Receita Federal. Seus integrantes, com raras exceções, não escondem as restrições filosóficas e fisiológicas que os levam a desejar o seu fracasso. Ao tomar conhecimento, pela imprensa, da proposta por eles elaborada, reforço esta convicção. Ou não compreenderam a mecânica do novo imposto ou, propositadamente, depositaram uma bomba de efeito retardado para que o mesmo não funcione. Foram inexplicavelmente pródigos na concessão de isenções. Excluíram da base de cálculo até operações cuja isenção nem sequer foi reivindicada pelos seus supostos beneficiários. Que sentido faz isentar, por exemplo, a União do imposto que a mesma recolherá para si própria?


Querem uma exceção. Uma isenção qualquer que seja ela, pois, se houver qualquer isenção, deixaremos de ter um imposto universal, automático e impessoal para termos mais um imposto declaratório, vulnerável e de cobrança artesanal. A partir do momento em que tivermos de identificar o que é um pagamento de uma prefeitura e o que não é, teremos eliminado o verdadeiro atrativo dessa nova metodologia arrecadatória, a automaticidade. Nada temos a opor à idéia de com- pensar trabalhadores de baixa renda através de uma alíquota menor para a contribuição previdenciária. Uma forma inteligente e que não abre brechas perigosas à evasão.


Com relação às bolsas de valores, o único efeito da cobrança do IPMF será o da imposição de um ritmo menos frenético às trocas de posições. Quem hoje compra e vende ações diariamente encontrará um novo ponto de equilíbrio, variando as suas posições com menor sofreguidão. O novo imposto não representará sequer o maior custo, por exemplo, numa operação de compra e venda de ações.


Quanto ao fim do sigilo bancário, seUs efeitos serão desastrosos no tangente à desintermediação financeira. Com ou sem IPMF. Haverá uma fuga em massa do sistema financeiro, não para evitar os 0,25% do novo imposto, mas para não denunciar o que se deixou de pagar de ICMS, IR, IPI e de toda esta sopinha de letras. Certamente pretendem atribuir esta culpa ao IPMF.


O novo imposto, por si só, não poderá ser responsabilizado pela desintermediação financeira. O preço cobrado pelos bancos por único talão de cheques corresponde, por exemplo, a um valor maior do que o IPMF incidente sobre vinte milhões de cruzeiros em pagamentos. Imaginar que alguém feche a sua conta bancária para economizar o IPMF é supor que alguém possa fazer o mesmo hoje, apenas para não gastar um talão de cheques.


O sofisma tem sido a regra geral. Repetem ad nauseam que "a cada vez que o trabalhador pagar o açougue, o aluguel, a prestação, o supermercado, estará pagando o imposto". Que diferença faz se é a cada vez ou de uma vez só? Em ambos os casos, estaremos pagando 0,25% do total dos nossos gastos através da sua incidência direta. A intenção deste chavão é clara: querem fazer crer aos menos atentos que, ao realizarem cem pagamentos durante o mês, vão pagar cem vezes 0,25%. Já vi muita gente esclarecida cometer este engano.


A argumentação contrária ao novo imposto baseia-se em adjetivos demais e números de menos. Ainda assim, os escassos dados numéricos apresentados agridem impiedosamente a aritmética. Entre as imprecisões divulgadas, está um estudo, sempre citado mas nunca apresentado, cuja conclusão é que o novo imposto causará um acréscimo de 5% a 35% aos preços dos bens e serviços. O povo, já habituado aos mais esdrúxulos pretextos para remarcar preços, assimilou, pelo menos até agora, a aberração aritmética contida nesse "estudo". Para demonstrá-la, pedimos a sua atenção aos gráficos anexos, que demonstram a impossibilidade de um bem conter 35% ou até mesmo 5% de IPMF. Esses gráficos foram traçados com base em simulação do economista Luiz Zottmann, da assessoria econômica da Câmara dos Deputados, e mostram a carga fiscal acumulada pelo IPMF em comparação aos outros impostos cumulativos já existentes.


Verificamos que sua incidência é diretamente proporcional ao número de etapas da cadeia produtiva e inversamente proporcional ao valor agregado a cada uma destas etapas.


Dificilmente encontraríamos uma cadeia produtiva mais complexa que a de um automóvel, por exemplo, com as suas sete ou oito etapas. Não interessa se, a cada etapa, foram efetuadas uma ou um milhão de transações. Interessa apenas o seu valor total. A simulação de Zottmann nos mostra que, mesmo para um produto imaginário com 15 etapas no seu processo de produção, que agregue tão somente 20% a cada etapa, ou seja, já iniciando o processo com um valor elevado em relação ao fim do processo e portanto já sofrendo uma incidência mais significativa do IPMF, a incidência do Imposto seria de menos de 1,3%. Para o caso do Imposto Único, com alíquota oito vezes maior, esta incidência seria de 10,3%, em substituição a todos os outros tributos.


Esse mesmo produto conteria hoje, apenas de Finsocial, PIS e ICMS, mais de 30%. Considerando apenas os tributos de incidência cumulativa (Encargos Sociais, PIS e Finsocial), este percentual supera os 17%. Para efeito de avaliação do peso dos encargos sociais, tomou-se por base o valor de 35%, que corresponde à média nacional da participação da mão-de-obra no produto final.


Concluo manifestando o meu otimismo quanto à correção de todos estes grosseiros e mal-intencionados equívocos no esboço da regulamentação do IPMF. O Congresso Nacional já deu demonstração de que está perfeitamente ciente de que essa nova e revolucionária metodologia tributária só tem sentido se for universal e impessoal. A fragorosa derrota da proposição que visava isentar Estados e municípios, que não teve sequer o apoio dos Governadores e Prefeitos, foi uma demonstração disso.


Por todos estes motivos, acredito que, ao contrário do que imaginam alguns, o mundo sobreviverá à correta implementação do IPMF.


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