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Heron do Carmo & Marcos Cintra

Como conduzir uma reforma tributária?

Marcos Cintra, economista e vice-presidente da FGV, e Heron do Carmo, professor livre-docente da FEA-USP, discutem o modelo ideal de uma reforma dos impostos.



Por Marcos Cintra:

A discussão sobre o sistema tributário brasileiro se polariza em algumas poucas correntes. O economista Marcos Cintra, defensor do Imposto Único, considera-se um heterodoxo, propondo um sistema construído em cima de tributos não-declaratórios, como os impostos seletivos e os impostos sobre movimentação financeira. Já o professor Heron do Carmo, livre-docente da Faculdade de Economia e Administração da USP e pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, acredita que a partir da base atual é possível alcançar um sistema melhor, aperfeiçoando a distribuição de alíquotas.


As alíquotas, aliás, são um ponto de divergência: enquanto Carmo considera a CPMF uma inovação interessante, desde que a alíquota seja reduzida, Cintra acredita que ela deve ser elevada para que a contribuição ganhe espaço maior e substitua aos poucos outros tributos. Cintra rebate o argumento de que a CPMF deveria ser extinta por existir apenas em três países: deveríamos acabar com a caipirinha por sermos os únicos produtores? Nenhum outro país utiliza a CPMF com a mesma intensidade que o Brasil porque este é um tributo da era da informática, e o país estava preparado para ele, diz.


Para Carmo, a solução é simplificar a carga tributária. Ele se apoia nas propostas do governo atual de criar um imposto sobre valor agregado e manter o Imposto de Renda. O fato de a economia brasileira estar praticamente estabilizada abre espaço para a redução da carga, melhorando o sistema tributário, acredita Carmo. Ele acrescenta ainda que regras de transição seriam interessantes para compensar quem eventualmente perdesse com a mudança tributária, facilitando a aprovação de novas medidas.


A discussão tributária no Brasil hoje se tornou um debate político: contra ou a favor da CPMF, o que é um absurdo. O que deveríamos discutir é a condução do novo modelo tributário que o governo irá propor. Nesse debate, há duas grandes linhas, sendo a primeira - e majoritária - a de um modelo baseado no Imposto sobre Valor Agregado, porém com aperfeiçoamentos. A outra corrente, defendida por heterodoxos como eu, propõe um novo sistema tributário construído não em cima de tributos convencionais, mas sim a partir daqueles sobre movimentação financeira, os chamados tributos não-declaratórios.


A reforma seria realizada eliminando gradativamente os tributos mais distorcivos, como por exemplo a contribuição patronal ao INSS, a contribuição incidente sobre a folha; acabando com tributos complexos como o PIS/Cofins; e reduzindo a progressividade do Imposto de Renda, como aliás já é tendência no resto do mundo. Ao mesmo tempo, deve-se aumentar a alíquota de um tributo sobre movimentação financeira, como é o caso da CPMF, e dar a esse tributo um espaço maior para que ele vá substituindo paulatinamente outros impostos, reduzindo assim os tributos que para nós são muito mais perversos do que a CPMF. Hoje, o principal imposto provincial argentino é sobre movimentação financeira, dividindo a alíquota de 2% entre débito e crédito - essa divisão de alíquotas é a forma ideal como um imposto sobre movimentação financeira deveria funcionar.


Considero de uma pobreza intelectual muito grande o raciocínio de que a CPMF deveria ser extinta por apenas existir no Brasil, no Peru e na Argentina. Apesar de o resto do mundo adorar caipirinha, ela só existe aqui. E nós não deixamos de consumir por sermos os únicos a produzi-la. A CPMF é um imposto moderno, que nenhum país usa com a mesma intensidade que o Brasil por uma razão concreta e prática: ele é produto da era da informática. Para que seja adotada uma inovação, há duas premissas: necessidade e meios. Os Estados Unidos, por exemplo, têm meios para adotar a CPMF, mas não têm a necessidade, pois lá há um sistema tributário já consolidado, funcionando. Por outro lado, um país como a Namíbia provavelmente tem a necessidade desse tributo, mas não reúne os meios.


O Brasil reúne as duas condições. A necessidade de fazer uma reforma tributária e ter um imposto que evite todos os seus malefícios: burocracia, corrupção, altas taxas de evasão e sonegação - a própria Receita Federal afirma que para cada real arrecadado, há outro sonegado. E ao mesmo tempo, o Brasil possui as possibilidades de implantar a CPMF: um sistema bancário altamente informatizado e uma sociedade que já expulsou a moeda manual, usando a moeda escritural nas suas mais variadas formas, desde o cheque até as transações online - duas possibilidades criadas por nossa convivência de vinte anos com um regime hiper-inflacionário.


O modelo tributário convencional defendido pelo governo tem uma grande falha: para eliminar tributos e reuni-los num grande imposto sobre valor agregado, seria necessária uma alíquota próxima de 30%. Mesmo que haja duas alíquotas, uma federal e uma estadual, ainda será o mesmo imposto, com uma mesma base, com um mesmo fato gerador. Uma alíquota próxima a 30% agravaria o principal problema do sistema tributário brasileiro: a desigualdade. A emenda fica pior do que o soneto.


O grande problema desse modelo é como criá-lo e ao mesmo tempo não impor uma alíquota que vá criar mais problemas para a economia brasileira, eventualmente até causando a própria insolvência do poder público - a sonegação, que pode ser muito alta, aumentando o custo de fiscalização e funcionamento da máquina burocrática.


Uma solução proposta pelo governo para que a alíquota não fosse tão alta seria uma base mais ampla. Como a única base que não está incluída nos IVAs brasileiros é a de serviços, seria necessário retirar a base de serviços dos municípios para que ela entrasse no novo IVA - assim a alíquota poderia ser abaixada para patamares razoáveis de 20% a 25%. Porém, esse é um caminho perigoso, pois, num modelo federalista como o nosso, inviabilizar os municípios praticamente destruiria a Federação. Se os municípios já são pobres, recebendo uma parcela pequena do bolo tributário nacional, retirar a base de serviços os obrigaria a mendigar recursos.


A proposta do governo para compensar os municípios pela perda do ISS ou ISQN, o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, é criar um novo imposto, o Imposto de Vendas a Varejo, um tributo que seria cobrado como o Sales Tax nos Estados Unidos. Nós teríamos um sistema em que qualquer produto seria tributado: o mesmo fato gerador será tributado pelo IVA, em cada etapa da cadeia de produção, e depois, na venda final ao consumidor. Porém, países federativos não têm vocação para o IVA - passaríamos a ter problemas nas transações interestaduais com alfândegas entre os Estados. É uma extravagância criar mais um imposto em um país onde já há impostos com enorme complexidade. Estamos falando em reforma tributária para enxugar, e estão propondo criar um novo imposto - e mais ainda, um que os municípios não têm a menor condição de fiscalizar, de arrecadar e substituir receita.


Por outro lado, há a proposta dos impostos não-declaratórios, do Imposto Único. O caminho aqui seria inverso e, em última análise, aumentaríamos o papel da CPMF. Porém, esse tributo deve ser reformado e alterado. Apesar de apoiá-lo, afirmo que há duas críticas corretas: o fato de que a CPMF hoje permite que as pessoas façam transações em espécie e não paguem imposto; e sua incidência no mercado financeiro e de capitais, elevando a taxa de juros e consequentemente desestimulando a formação de capital. Esses defeitos podem ser solucionados com duas principais alterações.


Se houvesse uma reforma tributária nos moldes do Imposto Único, como proponho, haveria obstáculos à remonetarização da economia - uma lei complementar definindo que qualquer transação acima de determinado valor só terá validade jurídica se a liquidação dessa transação for feita pelo sistema bancário nacional. A segunda crítica à CPMF, de que ela incide no mercado financeiro e de capitais, também é verdadeira e eu já a apontava em 1990, quando o Imposto sobre Movimentação Financeira foi proposto: a CPMF não pode incidir nesse setor, pois ele deve ser tributado sobre seus ganhos reais e não sobre os ganhos cumulativos. Há três anos o governo já atenuou a tributação sobre o mercado financeiro ao criar as contas investimento, porém deve-se isentar por completo esse setor. O mercado de crédito também deve ser isento. Hoje, por exemplo, para transacionar um financiamento bancário ou realizar uma operação de crédito, paga-se CPMF - o que aumenta os juros e desestimula investimentos. Acredito que essas duas alterações trariam muita eficiência ao tributo.


 
Por Heron do Carmo:

É importante analisar como nosso sistema tributário foi gerado. Na década de 60, o governo Costa e Silva criou o ICMS, basicamente o germe do sistema atual. Depois, houve uma série de reformas que visavam atender um pleito de Estados e municípios, na redemocratização, no sentido de aumentar sua participação no orçamento. Havia uma restrição fiscal, os governos arrecadavam menos do que gastavam e, para atender a essas demandas, foi necessário, entre outros expedientes, criar contribuições - que têm uma participação muito grande na carga tributária hoje, como é o caso do Cofins, que começou com o Fundo Social; e da CPMF, mais recentemente. Essa acabou sendo uma solução para a demanda criada pelas necessidades de investimentos previstos pela Constituição Federal de 1988. Essa saída não deixa de ser uma vantagem porque nem sempre um país consegue aumentar sua arrecadação com participação no PIB, como o Brasil conseguiu.


Essa resolução mostra certa maturidade do país em termos econômicos, mas o sistema é distorcido, justamente pela forma como foi criado. Na verdade, as contribuições surgem com uma finalidade e acabam tendo outros destinos. Essa é uma questão interessante: imposto não pode ser carimbado, ao contrário de contribuição. Apesar disso, não se sabe exatamente se ela irá para onde foi destinada. E o caso da CPMF, originalmente criada para subsidiar a saúde, e cuja alíquota foi aumentada para auxiliar no combate à inflação, gerando o superávit primário que permitisse pagar a conta de juros.


É possível pensar como nosso sistema tributário pode evoluir considerando a situação atual. A economia brasileira se encontra praticamente estabilizada, o que abre espaço para reduzir a carga tributária, melhorando o sistema. Há uma série de propostas do governo, como criar um imposto sobre valor agregado, associado, por exemplo, ao ICMS e ao IPI, impostos seletivos para determinados setores; manter o Imposto de Renda e um imposto sobre propriedade como o IPTU; e manter ou não a CPMF, um imposto sobre transações, que considero inovação interessante desde que a alíquota seja reduzida. É importante simplificar a carga tributária, deixando mais clara a incidência dos impostos, até para facilitar o controle do comércio externo.


É possível notar na carga tributária atual que a arrecadação se dá por intermédio da cobrança sobre poucos setores. É o caso do ICMS: em boa parte dos Estados brasileiros, mais de 50% do imposto incide sobre energia elétrica, comunicações e combustíveis. Se considerarmos outros setores como a indústria automobilística, que também contribuem em proporções para esse que é o principal imposto do país, fica claro que podemos ter um sistema tributário que apresente facilidade no ponto de vista de arrecadação - não é necessária uma grande estrutura para arrecadar esses impostos. Não seria o caso do imposto sobre vendas a varejo que o governo deseja criar - é complicado checar essa arrecadação. E não cobrar corretamente cria distorções no mercado. Muito do que se reclama da CPMF é um pouco exagerado; na verdade, as contribuições acabam tendo efeitos distorcivos sobre a alocação de recursos - por isso é interessante baixá-las.


Quando tivermos um governo mais liberal, uma primeira tarefa será negociar um IVA para escapar das distorções do ICMS e de suas legislações diferentes entre os Estados. O Brasil é um país integrado, mas não sob o ponto de vista de imposto - cada unidade da federação possui uma legislação, o que cria entraves para os negócios e aumenta o custo da burocracia. A grande vantagem de um IVA seria substituir impostos indiretos, tendo uma legislação mais simples que traria transparência para o contribuinte, além de facilitar a arrecadação e o controle. A ideia é que esse tributo incida no destino, e não na origem, o que colocaria certos entraves a um Estado produtor como São Paulo, por exemplo. Porém, com a economia em crescimento, pode-se chegar a um acordo se forem estabelecidos mecanismos de compensação. Se a arrecadação evoluir por algum tempo abaixo de certo percentual, a União se comprometeria a ressarcir.


As contribuições devem ainda ser revistas, definindo-se como serão compatibilizadas com o pacto federativo, isto é, qual parcela será da União, qual parcela será dos Estados e municípios. Em síntese, é fundamental simplificar o sistema tributário, pensando sempre na questão da eficiência e da eficácia da arrecadação - conseguir arrecadar mais com menos esforço. Também é vital, principalmente no âmbito do governo federal, que haja espaço para reduzir a participação das despesas correntes no PIB. Se a economia crescer 5% ao ano, por exemplo, essa redução significaria não repassar o crescimento para as despesas. Essa folga seria justamente para viabilizar uma reforma tributária e com redução de tributos. Por enquanto não há redução porque a economia brasileira está crescendo de maneira mais consistente apenas nos últimos cinco anos - nos anos anteriores vivemos altos e baixos; durante muito tempo, a renda per capita cresceu 1% ao ano.


É provável que no futuro tenhamos governos com uma postura - em termos de arrecadação - mais conservadora, que pautem sua gestão por reduzir os gastos correntes na participação do PIB. Isso será muito mais fácil já que a economia está crescendo. Sou realista e acredito que o ideal é aquele que pode ser feito: a partir da base atual podemos chegar a um sistema tributário melhor, em termos de distribuição de alíquotas. Tenho a impressão de que as reformas se encaminharão por essa via.

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