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Ives Gandra Da Silva Martins E Marcos Cintra -

ISS: Uma proposta para terminar a Guerra Fiscal

A guerra fiscal contaminou os municípios brasileiros. Anteriormente, a competição entre unidades da federação pelos investimentos das empresas se limitava aos estados. O ICMS foi criado como um tributo estadual (este foi um dos maiores erros da reforma tributária de 1967), dando origem a uma corrida predatória entre eles, que passaram a oferecer redutores, incentivos, deferimentos, subsídios e outras formas de privilégios fiscais.


Este conflito se alastrou pelas esferas municipais do país. Municípios passaram a oferecer aos potenciais investidores incentivos fiscais, financeiros e de infraestrutura na tentativa de alterar artificialmente os parâmetros de mercado e influenciar a decisão de investimentos das empresas.


A concorrência fiscal não é necessariamente ruim. Pode ser elemento importante de redução de custos e de busca de maior eficiência no funcionamento da máquina pública. A concorrência entre estados, ou entre municípios, pelos escassos recursos dos investidores, acabaria favorecendo as unidades federativas capazes de oferecer melhores condições para o funcionamento das empresas, e isto estimularia a competitividade nacional como um todo, reduzindo custos e ampliando mercados.


Contudo, esta opção precisa ser conscientemente adotada, com regras claramente conhecidas por todos. Não é esta a situação no Brasil. A guerra fiscal é um desvio da intenção do legislador, e favorece os administradores públicos que burlam a lei e que adotam interpretações tortuosas, até mesmo inescrupulosas, da legislação em vigor. No caso da guerra fiscal entre municípios o campo de batalha se encontra no ISS (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza).


Hoje, municípios enquadrados em três tipos de situação reivindicam para si a arrecadação do ISS. Em primeiro lugar, os municípios onde os serviços produzidos são disponibilizados ao tomador dos mesmos; e a guerra fiscal produziu um terceiro tipo de município, que reivindica a receita do ISS por abrigarem em seu território as sedes administrativas das empresas prestadoras dos serviços, ainda que nele não estejam localizados, de fato, nem o estabelecimento produtor nem o estabelecimento consumidor.


Conceitualmente, há justificativas para que tanto os municípios produtores, como os municípios consumidores busquem arrecadar ISS. Um disponibiliza infraestrutura e meios para produção dos serviços; outro, paga por eles. O mais justo seria que pudessem compartilhar daquela receita, o que infelizmente é inviável por força da onerosa operacionalização deste procedimento.


Mas nada justifica que, com a guerra fiscal, surja um terceiro município, que não é onerado pela produção, nem pelos gastos do consumo, e que desvie para si toda a arrecadação. A guerra fiscal do ISS cria a figura de um município-corsário, que simplesmente absorve a contrapartida tributária da produção e do consumo, sem nada contribuir para tanto.


A origem do conflito encontra-se nas diferentes interpretações dadas ao termo "estabelecimento prestador" dos serviços abrangidos pela cobrança do ISS, expressão constante do Decreto Lei 406 de 1968, que deu início à efetiva cobrança desse tributo.


Anteriormente, apesar de o tributo constar das Cartas Magnas de 1946 e de 1967, bem como do Código Tributário Nacional (Lei 5.172/66), a lista de serviços tributados continha apenas três itens. Com o Decreto 406/68, a lista foi ampliada para 29 serviços, e houve uma primeira tentativa de disciplinamento e de definição das normas gerais de funcionamento do ISS.


Dizia o Decreto 406/68, em seu artigo 12, que "considera-se local da prestação do serviço" (e consequente o município detentor do direito de tributar a operação) "o do estabelecimento prestador ou, na falta de estabelecimento, o do domicílio do prestador". Logo em seguida, abriu-se a primeira exceção, aplicada no caso da construção civil, onde o tributo é devido no "local onde se efetuar a prestação".


O ISS sofreu modificações e ampliação em sua lista de serviços através do Decreto Lei 834/69 (que ampliou a lista para 66 itens), da Lei Complementar 56/87 (que ampliou a lista novamente para uma centena de itens), da Emenda 1/69 e da Lei Complementar 100/99 (que incluiu pedágios), passando pela Carta Magna de 1988.


Mas foi a Lei Complementar 116/03 que efetivamente atualizou a legislação e a regulamentação do ISS. Ampliou a lista de serviços para 193 itens, e adicionou 20 novos tipos de serviços que, a exemplo da construção civil, passaram a ser tributados no local da prestação dos serviços, ou seja, no local do tomador dos serviços.


A guerra fiscal do ISS já havia surgido anteriormente, a partir da interpretação de que o termo "estabelecimento prestador" dos serviços significa sede, matriz ou escritório central da empresa prestadora de serviços. Neste sentido, vários municípios passaram a oferecer alíquotas reduzidas, ou redução de base de cálculo, para as empresas que se "instalassem" em seus respectivos territórios, e assim passariam a recolher o ISS mesmo que o "estabelecimento prestador" estivesse em outros municípios onde os serviços eram efetivamente disponibilizados.


Surgiram duas situações. Uma primeira, de flagrante ilegalidade, ocorre no caso dos municípios que, mesmo após a promulgação da Emenda Constitucional 37 de 2002 (que estabeleceu piso de 2% na alíquota do ISS), continuaram a oferecer alíquotas inferiores àquele patamar. Alíquotas abaixo do piso ferem a Constituição, que proíbe em seu artigo 88 das disposições transitórias a "concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que resulte, direta ou indiretamente, na redução da alíquota mínima estabelecida ... ". Mesmo que o "estabelecimento prestador" esteja efetivamente localizado no município, o mesmo não pode praticar renúncia fiscal, tributando-o a menor do que 2%, seja em termos de sua alíquota nominal, seja em termos de redução de sua base de cálculo (definida como o preço cheio dos serviços prestados).


A segunda situação é uma fraude evidente, escorada em uma interpretação equivocada da lei. Empresas passaram a instalar-se apenas "no papel" em paraísos fiscais, mantendo nessas localidades apenas uma sede de fachada, uma caixa postal, ou um endereço formal, mas não possuindo no local qualquer "estabelecimento prestador" de serviços. Há casos notórios de empresas cujos endereços de suas sedes localizavam-se em prédio da própria prefeitura, em hotéis de empresas, e até mesmo em cemitérios públicos. Estes fatos foram recentemente denunciados pela revista Veja em sua edição de 11 de janeiro de 2006.


A primeira situação, de alíquota efetiva abaixo de 2%, é inquestionavelmente ilegal, e surpreende que nenhuma providência tenha sido adotada pelas autoridades públicas. O fato é que dificuldades jurídicas têm sancionado o comportamento predatório de municípios que praticam a guerra fiscal, em detrimento daqueles que respeitam a legislação em vigor.


Já na segunda situação, a indefinição interpretativa do que seja "estabelecimento prestador" de serviços explica o comportamento de empresas que verdadeiramente se deslocam para os municípios de baixa tributação. Mas não deve haver a mesma tolerância com aqueles que fraudam a lei, e criam sedes de fachada para auferirem, em ambos os casos, alíquotas ilegalmente reduzidas.


A Lei Complementar 116/03 busca esclarecer o que é "estabelecimento prestador" de serviços. Cumpre reproduzir seus artigos 3° e 4°:


"Art. 3° O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ...; e


Art. 4° Considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas."


Mesmo com os esclarecimentos cabais da Lei Complementar 116/03, a guerra fiscal continua correndo solta. É neste contexto que surge a Lei 14.042/05 na cidade de São Paulo.


Exigência - Procurando dar consequência prática aos ditames da Lei Complementar 116/03, o município de São Paulo passou a exigir que prestadores de serviços emitam notas fiscais autorizadas por outros municípios se cadastrem e comprovem que seu "estabelecimento prestador" situa-se efetivamente fora de São Paulo. Caso a comprovação não seja satisfatória (exige-se documentação, provas de gastos em telefonia e energia, contratação de mão-de-obra e fatos que demonstrem que a empresa funciona efetivamente no local), o tomador de serviços torna-se responsável pela retenção na fonte do ISS e por seu recolhimento aos cofres paulistanos. Tal lei vem sendo questionada na Justiça. Mas, independentemente do resultado final, todos sairão perdendo.


Cabe lembrar que as empresas cujo cadastramento em São Paulo não seja autorizado sofrerão retenção do ISS na fonte. O grande problema que surge para elas, no entanto, é que poderão ser cobradas novamente no município onde supostamente estejam formalmente instaladas. Além disso, os municípios passarão a sofrer de grande insegurança quanto ao recolhimento do ISS, pois o método de aferição do local efetivo do estabelecimento é arbitrário e poderá ser usado de tal forma a captar o máximo possível de ISS para o município que faz a exigência de cadastramento. Inevitavelmente, haverá retaliação de outros municípios, que passarão a fazer as mesmas exigências. O Judiciário receberá uma enxurrada de ações, e não seria difícil prever que em breve os empresários, entre o mar e o rochedo, acabem depositando em juízo o ISS, até que a questão acerca do destino do tributo seja dirimida.


Em resumo, da forma como a situação do ISS está delineada, os conflitos em breve se tornarão um dos maiores focos de contenciosos tributários do país, com prejuízos evidentes para todos. Um jogo de soma nitidamente negativa a longo prazo, mesmo para aqueles municípios que hoje auferem vantagens momentâneas. Cumpre dizer que mesmo as empresas que se beneficiam deste expediente poderão no futuro ser consideradas co-responsáveis, e acabar sendo acusadas de receberem benefícios manifestamente ilegais e, portanto, obrigadas a restituir as vantagens indevidas que auferiram.


A solução para o problema seria seguir a tendência em direção ao princípio do destino, ou seja, considerar-se que o imposto é devido no local do estabelecimento do tomador do serviço (do consumidor). Inicialmente com a construção civil (Decreto 406/68), a transferência da arrecadação para o município do tomador dos serviços foi estendida aos pedágios (Lei Complementar 100/99) e depois para 20 outros setores (Lei Complementar 116/03). Aliás, uma correta interpretação da legislação do ISS implicaria entender que o "estabelecimento de prestação" é o local onde o serviço é executado e disponibilizado ao cliente final, e nesse caso, na imensa maioria das vezes, o local do "estabelecimento do prestador" coincidirá com o do "estabelecimento do tomador". Nesse caso, mesmo que a sede administrativa ou o endereço formal de uma empresa de serviços esteja em outro município, o recolhimento do ISS deveria ser no município onde ocorre a atividade produtora e consumidora dos serviços.


Nesse sentido, a solução para o angustiante problema do ISS seria a continuidade desta tendência à sua consequência lógica. Em outras palavras, há que se inverter a legislação. O que hoje é a exceção (tributo devido no local do estabelecimento de tomador do serviço, no destino) passaria a ser a regra; e a regra (tributo devido no local do estabelecimento prestador do serviço, na origem) passaria a ser a exceção.


Esta proposta tem algumas vantagens. Primeiramente, eliminaria as dúvidas e incertezas oriundas das diferentes interpretações sobre o local de recolhimento do tributo. Ocorreria sempre no local do estabelecimento do tomador, onde o serviço foi concretamente disponibilizado, independentemente de definições formais acerca do domicílio legal das empresas prestadora e tomadora dos serviços. Em segundo lugar, permitiria alterar o regime de arrecadação do tributo, tornando a retenção na fonte uma obrigação do tomador do serviço, que o recolheria no município de funcionamento de seu estabelecimento. Ao fazer o tomador do serviço um contribuinte substituto do ISS, estar-se-ia seguindo uma tendência já existente na legislação tributária brasileira, como, por exemplo, ocorre com o imposto de renda, com as contribuições previdenciárias e com o próprio ISS na construção civil. A fiscalização de cada município ficaria restrita às empresas que operam dentro de suas respectivas áreas geográficas, eliminando questões de competência como vêm sendo arguidas no entendimento da Lei 14.042/05 da cidade de São Paulo. Em terceiro lugar, tal procedimento simplifica a legislação, além de automatizar e uniformizar os procedimentos de recolhimento do tributo. E em quarto lugar, a solução aqui proposta elimina a presença dos municípios-corsários, e cria uma situação de maior justiça social. O município produtor se beneficia da renda e dos empregos gerados pela prestação dos serviços; e o município consumidor fica com a receita tributária. Uma situação aceitável do ponto de vista de equidade.


Finalmente, este novo regime de tributação do ISS tem um subproduto interessante: permitiria a eliminação do piso de 2% na alíquota, pois o município que deseja implantar uma política de baixa tributação poderia fazê-lo sem com isso induzir maciça migração de empresas em busca de reduções tributárias. A migração de empresas consumidoras de serviços em busca de baixo ISS poderá ocorrer em setores altamente intensivos em insumos terciários, mas com certeza terá amplitude reduzida. Este novo regime permitiria, portanto, uma saudável competição tributária, em lugar da predatória guerra fiscal hoje instalada no país.


Disciplina - Como acontece no mundo moderno, marcado pela globalização, pela fácil comunicação e pela moderna tecnologia da informatização, o disciplinamento do comportamento tributário dos contribuintes nunca é exaustivo. O planejamento tributário desafia o arrecadador de impostos no mundo moderno. Além disso, casos especiais, que fogem às caracterizações típicas descritas em lei, estarão sempre desafiando a capacidade legislativa do poder público. A solução aqui proposta não envereda pelo caminho tradicional de edição de legislações cada vez mais complexas, mais burocráticas e mais caras para tentar enquadrar os casos excepcionais que insistem em ser inesgotáveis.


Pelo contrário, em vez de buscar o enquadramento da realidade à legislação, a solução aqui proposta inverte o procedimento e enquadra a legislação à realidade predominante, como indica o bom senso. Além disso, a proposta altera a lei de forma a torná-la mais consentânea com a realidade do dia-a-dia das empresas, evitando as bizantinas discussões acerca do local de sede, do domicílio, do estabelecimento prestador ou de outras pendências que não encontram fáceis respostas no mundo moderno. Onde está a sede de uma empresa no mundo global? O que é um estabelecimento?


Não obstante, não se tem a pretensão de esgotar os casos polêmicos. Perduram sérias dúvidas sobre como tributar serviços como internet, serviços de informática, produtos virtuais como livros e música, serviços de criação artística etc. Muitos desses serviços são disponibilizados de forma virtual para todos os consumidores que desejem acessá-los. Nestes casos, como tornar viável a tributação onde o serviço é disponibilizado se o mesmo encontra-se espalhado muitas vezes em ondas eletromagnéticas flutuando pelo espaço virtual e real? Como identificar e captar o contribuinte em tais casos? Tais situações poderão ser as exceções, cuja tributação pelo ISS ocorrerá no "estabelecimento prestador" dos serviços.


Em outras palavras, no sistema atual, a exceção é a tributação no destino (art. 3° da L.C. 116/04), e a regra geral é a imposição no domicílio do contribuinte. No sistema que propomos, a regra seria a tributação no local da prestação e a exceção, a do estabelecimento do contribuinte.


 

Marcos Cintra Economista, professor titular e vice-presidente da Fundação Getúlio Vargas


Ives Gandra da Silva Martins Prof. Emérito das Univ. Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército-ECEME e Pres. do Centro de Extensão Universitária



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