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  • Marcos Cintra

Reforma tributária, projetos alternativos e a cumulatividade


Em seu discurso de posse no Congresso, Dilma Rousseff comentou sobre a necessidade de uma reforma tributária e declarou que a estrutura de impostos precisa ser simplificada, racionalizada e modernizada. Na ocasião, a presidente afirmou que é preciso ampliar a base de arrecadação tributária para desonerar as atividades que promovem o crescimento econômico.


Cumpre dizer que, recentemente o governo sugeriu uma reforma tributária fatiada, tendo como principais itens o reajuste do limite de faturamento para enquadramento de empresas no Simples, a desoneração da produção através da aceleração da devolução de créditos do PIS/Cofins e a redução do INSS sobre a folha de pagamentos com compensação no faturamento. Porém, essas medidas não representam uma reforma de acordo com o que o Brasil precisa. São apenas ações pontuais que não simplificam a estrutura de impostos, não combate a evasão de arrecadação, não reduz custos administrativos para as empresas e não redistribui o ônus tributário entre os contribuintes.


Em termos de reforma tributária propriamente dita, o que existe está consubstanciado na PEC 233, de iniciativa do governo em 2008. A linha mestra desse projeto é a unificação de tributos. Prevê-se a transformação do PIS, da Cofins, da CIDE e do Salário-Educação em um IVA federal e também do Imposto de Renda das empresas e da CSLL em um imposto só. Outro ponto a se destacar é o ICMS com legislação única para substituir as atuais 27.


A reforma tributária que o governo deseja tem um lado positivo porque simplifica um pouco o sistema. Felizmente esse é um conceito que está sendo bem assimilado pela sociedade em geral. Essa simplificação decorreria da centralização da legislação do ICMS no âmbito federal e pela transformação de seis tributos em apenas dois, um imposto único sobre o valor agregado (IVA-F) e outro sobre a renda das empresas, o que poderia resultar em economias operacionais e administrativas importantes para a União.


Se por um lado a proposta do governo simplifica por outro ela deixa a desejar sob o ponto de vista da universalização, do combate à sonegação e da redução da carga de impostos. O sistema permaneceria predominantemente declaratório e a base de incidência continuaria reduzida.


A unificação dos quatro tributos federais sobre o valor agregado criaria para o governo central um grande imposto cujo fato gerador seria em grande parte coincidente com a base do ICMS (a única exceção são os serviços que seriam tributados pelo novo IVA-F, e não pelo ICMS, com algumas exceções). O fato gerador desses dois impostos sofreria tributação estadual e federal, cujas alíquotas devem ser somadas para caracterizar a carga tributária total. Com certeza seria superior a 22%, o que estimularia a evasão e a sonegação.


A proposta do governo tem outros problemas a serem destacados. O projeto não abrange importantes tributos, há carência de dados para apurar seu impacto e gera incertezas. Alguns aspectos gerais para os quais chamo a atenção são:

1-A reforma é parcial, uma vez que não trata de tributos como o Imposto de Renda da Pessoa Física, o IPI e os impostos municipais e se constitui num quebragalho quanto à indispensável desoneração da folha de pagamentos;

2-Não há indicações quantitativas sobre os impactos das medidas, e nem sobre alíquotas, bases e formas de cálculo;

3-Altera critérios de partilha fiscal. Como ponto positivo inclui novos tributos federais nos mecanismos de divisão da arrecadação. Por outro lado, torna difícil a apuração para saber se Estados e municípios vão receber mais ou menos recursos;

4-Desconstitucionaliza critérios de partilha do ICMS. Isso prejudicaria as capitais e os grandes municípios brasileiros;

5-Critérios de partilha incertos. Os métodos de “enforcement” não estão claramente definidos principalmente porque os repasses não serão de cima para baixo (União para Estados e municípios). As transferências serão laterais (entre Estados). Não se sabe quanto vai custar a estrutura de fiscalização, quem irá fiscalizar e nem se os mecanismos de punição de Estados que não repassarem o

ICMS serão eficazes;

6-Incertezas dos impactos do ICMS no destino. As compensações pelo Fundo de Equalização são incertas e subjetivas, não dando garantias seguras aos Estados perdedores;

7-Abertura para a multiplicação de alíquotas. Os especialistas em IVA consideram ideal a existência de apenas uma alíquota, ou no máximo, duas ou três.


O balanço que se faz do projeto de reforma tributária do governo é que os aspectos negativos se sobressaem sobre os benefícios da simplificação. Se ela for implementada, o tema voltará à baila porque o sistema continuará caro e desigual, gerando anomalias que comprometem a competitividade do País e que castigam o contribuinte.

 

Alternativa ao projeto do governo  

Há uma alternativa ao projeto de reforma tributária do governo e ela foi oportunamente lembrada pelo presidente da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara (CFT), deputado Cláudio Putty, ao afirmar, durante sua primeira entrevista, que a principal tarefa da comissão em 2011 será contribuir para o debate visando a uma nova estrutura de impostos para o Brasil. O parlamentar citou a necessidade de ampliar a base de arrecadação tributária, lembrando que há duas propostas em discussão: uma é a do governo, onde ele destaca o IVA, e a outra é a do Imposto Único sobre a movimentação financeira.


Em relação ao IVA, Cláudio Putty ressaltou que a proposta “ao fundir várias contribuições sobre o valor agregado, simplifica o sistema tributário”. Quanto ao Imposto Único declarou se tratar de uma “boa iniciativa” e que “esse tipo de imposto tem a vantagem de ser democrático e progressivo, além de permitir que a Receita Federal exerça um controle sobre informações, que de outra maneira, não seria possível realizar, principalmente sobre a evasão de divisas e lavagem de dinheiro”.


No tocante ao Imposto Único sobre a movimentação financeira, cumpre dizer que se trata de um tributo proporcional. Ou seja, o contribuinte que movimenta maior volume de recursos pagaria mais em relação ao cidadão que transaciona um montante menor de recursos em sua conta corrente bancária.


Quanto à declaração de que o Imposto Único é democrático, o presidente da CFT tem absoluta razão, uma vez que todos pagariam e, por isso, todos poderiam ter uma carga tributária menor relativamente ao que ocorre hoje. Através desse projeto, a base de arrecadação seria expressivamente ampliada.


A unificação de tributos sobre a movimentação financeira é a ação mais eficaz para conter a evasão de impostos que impregna o sistema brasileiro. Essa delinquência tributária é a principal causa que leva a uma situação injusta onde o fisco tem que compensar a fuga de tributos provocada pelo sonegador através da cobrança de imposto adicional sobre os assalariados com carteira assinada e sobre o consumo.


Em termos de simplificação, o Imposto Único prevê a substituição de todos os impostos declaratórios de natureza arrecadatória por apenas um tributo cobrado sobre as movimentações financeiras. A cobrança seria automática, ocorrendo no ato do lançamento na conta corrente bancária e com a alíquota sendo dividida entre o débito e o crédito da operação. O repasse seria efetuado diretamente pelo sistema bancário para as contas dos municípios, Estados, União, INSS e Fundos.


Com o Imposto Único sobre a movimentação financeira a receita disponível para o poder público se elevaria, uma vez que o sistema implicaria em expressiva redução dos custos operacionais e os relacionados à fiscalização. Para os contribuintes também haveria redução dos gastos por conta da não necessidade de manutenção da atual estrutura administrativa necessária para atender os ditames da legislação fiscal.


Cumpre dizer que, há na Câmara dos Deputados a PEC 474/01 que propõe o Imposto Único no âmbito federal. Seria um ponto de partida para que mais à frente essa sistemática possa abranger também os tributos estaduais e municipais. O projeto foi aprovado por unanimidade em 2002 pela Comissão Especial criada para analisá-lo e poderia ser colocado em votação imediatamente.


Os benefícios do Imposto Único são infinitamente superiores à diminuta simplificação do projeto do governo. Seria interessante que a CFT confrontasse os dois projetos através de debates que reunissem defensores de ambos.

 

IVA versus cumulatividade  

A ideia de um imposto único sobre a movimentação financeira foi lançada em 1990 e ganhou adeptos no Brasil. Infelizmente, ela foi desvirtuada quando o governo se baseou na proposta para criar mais um tributo, o IPMF, tributo que depois foi rebatizado como CPMF. O que era para ser único virou mais um imposto.


Mesmo sendo odiado pelo contribuinte por se tratar de mais um tributo, a experiência do IPMF/CPMF foi de extrema valia para mostrar as qualidades desse tipo de imposto e serviu para desmentir várias previsões negativas a essa forma de arrecadação. Os críticos diziam enfaticamente que esse tributo provocaria inflação e desintermediação bancária e nada disso ocorreu.


Em termos da qualidade do tributo, vale citar um estudo da Receita Federal (CPMF – Mitos e Verdades sob as Óticas Econômicas e Administrativas - Texto para Discussão nº 15 – Setembro de 2001) revelando que ele é “altamente produtivo”, possui “excelente custo benefício” e que é “o único a alcançar a economia informal”. O trabalho analisa ainda o tabu da regressividade atribuído a esse tipo de imposto, desmistificando essa questão, e afirma que “é um imposto moderno, pois se adapta e alcança operações que somente agora estão se tornando comuns, como aquelas relacionadas ao comércio eletrônico”.


Mesmo tendo desmentido previsões catastróficas e ter se revelado como uma eficiente forma de arrecadação, a tributação sobre a movimentação financeira é criticada por ser cumulativa. Essa questão se tornou uma obsessão por parte dos críticos desse tipo de imposto. Porém, esse aspecto vem sendo desmistificado ao longo dos anos.


Alguns economistas, políticos, tributaristas e empresários acreditam que a cumulatividade é a fonte dos males do sistema tributário brasileiro. Os críticos dos tributos em cascata defendem o IVA afirmando que essa forma de cobrança é mais indicada por ser neutra em termos de impacto na atividade produtiva.


Vale ressaltar que a neutralidade não se verifica em nenhuma espécie de imposto. Tanto o IVA como os tributos cumulativos provocam distorções nos preços relativos. Por outro lado, ambas as sistemáticas possuem vantagens e desvantagens que devem ser circunstancialmente analisadas.


A alegação de que o IVA provoca menos distorção nos preços relativos pode ser verdadeira quando avaliada sob a condição "ceteris paribus" e considerando a hipótese de sonegação zero. Ou seja, teoricamente a aplicação do IVA será vantajosa em uma situação onde os demais fatores atuantes sobre a economia permaneçam inalterados, com todos os contribuintes pagando seus tributos.


Entretanto as hipóteses que confirmam a vantagem do IVA não são observadas na prática. A sonegação é um fenômeno disseminado na economia brasileira e a aplicação de um sistema de cobrança sobre o valor agregado, ao exigir uma alíquota absurdamente elevada, irá incentivá-la.


O valor agregado não representa uma base imponível ampla o suficiente para permitir uma alíquota baixa que desestimule a sonegação e a informalidade. Pelo contrário, em simulações que venho realizando há anos, a substituição de alguns dos atuais tributos por um IVA exigiria alíquotas exorbitantes e isso ampliaria a clandestinidade na economia.


A sonegação é um fenômeno que impõe vantagens competitivas determinantes para agentes produtivos que a praticam, originando um sistema injusto, com péssima incidência tributária, onde quem paga imposto tem que compensar pelos que sonegam. Essa situação cria um sistema onde uma empresa que investe em tecnologia para obter custos menores pode não ser competitiva diante de outra com custos mais elevados, mas que obtém vantagens sonegando.


Ademais, a suposta vantagem do imposto sobre valor agregado em relação ao menor impacto sobre os preços relativos é baseada na aceitação de que os mercados são competitivos perfeitos. Sabe-se, contudo, que os mercados não satisfazem essa hipótese. Nessas condições a teoria do "second best" revela que se torna impossível criar uma situação de ordenamento confiável de situações alternativas do mercado sem uma análise pontual e específica de cada cenário, o que não é feito quando se afirma que o IVA é mais eficiente que os tributos cumulativos.


A única base tributária capaz de enfrentar a sonegação é a movimentação financeira. Mesmo sendo cumulativo, esse imposto, ao permitir a aplicação de uma alíquota reduzida sobre um sistema não-declaratório e automático, minimiza a sonegação, criando um sistema mais justo, e reduz os custos administrativos para os agentes públicos e privados.


No tocante às distorções nos preços relativos, produzi simulações utilizando cálculos matriciais e dados das Contas Nacionais divulgados pelo IBGE para apurar o impacto sobre os preços de 110 produtos de um imposto cumulativo sobre a movimentação financeira com alíquota de 2,8% comparativamente a um sistema com IVA (ICMS, IPI e INSS patronal). No primeiro caso a carga tributária sobre os preços oscilou entre 9,9% e 20,3% e no segundo modelo a variação ficou entre 23,2% e 78,6%. Analisando os desvios nos preços relativos setoriais causados por cada um desses dois modelos, nota-se que foram de 2,38% no caso do imposto cumulativo e de 7,8% no caso do IVA. Essa simulação tem sua metodologia apresentada no livro Bank Transactions: pathway to the single tax ideal.


Ademais, é importante dizer que mesmo que o IVA fosse menos distorcivo é possível que, com base na teoria do bem-estar, um imposto cumulativo seja preferível se ele for capaz de eliminar a sonegação e tiver alíquota reduzida.


Portanto, a cumulatividade não é o problema a ser enfrentado na construção de um sistema tributário mais eficiente, já que as distorções nos preços relativos são bem menores que as causadas por um IVA. O foco deve ser a eliminação da evasão de arrecadação, a redução do custo operacional e a ampliação da base tributária imponível. Nesse sentido, tudo indica que, nas condições específicas da sociedade brasileira, é preferível um imposto cumulativo a um IVA.



 

Marcos Cintra é doutor em Economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

 

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