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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

A novela da URP

A eliminação, total ou parcial, da URP para o funcionalismo público federal vem sendo enfocada basicamente como uma medida para equilibrar o fluxo de caixa do Tesouro. Neste sentido, é um instrumento no combate do déficit público, tendo como meta final conter os efeitos inflacionários causados pelos excessivos gastos do governo.


Quanto à aplicação da URP no setor privado, empresários e assalariados selaram um pacto pela sua manutenção. A preservação do poder aquisitivo dos salários e do emprego é apresentada como justificativa para este acordo, que, contudo, contém um apelo conjunto para a institucionalização da livre negociação salarial.


Realmente é curioso o raciocínio do manifesto assinado por empregadores e empregados. Ao que consta, nada impede que os salários privados sejam livremente fixados, desde que a antecipação mínima, referenciada pela URP, seja concedida mensalmente. Neste sentido, a manutenção ou não da URP como um benefício concreto não depende da legislação trabalhista - depende apenas da vontade das partes.


A explicação para esta aparente contradição está no repasse dos aumentos de salários aos preços. Mesmo sem a obrigatoriedade da URP, as empresas poderiam conceder os aumentos salariais que julgassem suficientes para manter o nível de demanda desejado. Mas por sua própria conta e risco. Se derem aumentos mais elevados que seus concorrentes e tentarem repassar integralmente o aumento de custos aos preços, poderão perder mercado. Já com a obrigatoriedade da URP, todas empresas são forçadas a dar os mesmos aumentos, todos elevarão preços pelos mesmos índices de indexação e, assim, poderão conviver pacificamente, sem os inconvenientes da concorrência.


Esta estratégia é boa para as empresas - que mantêm tranquilamente margens de lucros aceitáveis; é enganosa para os trabalhadores, aos quais são concedidos apenas reajustes nominais, não reais, de salários; é péssima para o consumidor, que se vê privado dos efeitos salutares da concorrência.


Mas a URP ainda tem outros inconvenientes. Foi idealizada para ser um indexador num contexto de inflação baixa, pós-congelamento. Agora que a inflação se aproxima de 20% ao mês, os assalariados acumularam perdas progressivas. Março é o primeiro mês em que a URP foi maior que o aumento geral de preços, mas não se espera que isto seja uma tendência duradoura. Neste sentido, por ocasião das datas-base, os acordos salariais, bem como as decisões judiciais, vêm recompondo integralmente o valor real dos salários, incorporando inclusive a inflação de junho (26%) que o governo pretendia excluir. O fato é que esta tendência de recomposição integral vem, desde setembro do ano passado, recolocando os salários reais em patamares semelhantes aos do fim do Plano Cruzado. Mais seis meses e a totalidade dos trabalhadores terá seus rendimentos recompostos, contando ainda com a indexação mensal da URP.


Isto significa duas coisas. Primeiro, que o mercado interno será paulatinamente fortalecido com a progressiva chegada de contingentes de assalariados em suas datas-base. Alguns indicadores conjunturais já começam a mostrar uma inflexão no nível de atividade interna, mostrando que a economia brasileira já pode ter atingido o fundo do poço.


Em segundo lugar, cabe verificar que o baixo nível de investimentos nos últimos anos restringe a capacidade de crescimento da oferta. A expansão da demanda irá esbarrar, dentro de alguns meses, nas limitações de produção, como ocorreu durante o Plano Cruzado. Neste caso, estarão criadas as condições para um novo surto inflacionário de demanda que, via corrosão salarial, irá reequilibrar o mercado consumidor.


Por estas razões é que a URP deve ser extinta para todos os assalariados e substituída por livre e irrestrita negociação entre empregados e empregadores. Os setores que desejarem praticar uma política salarial mais generosa que o façam por sua conta e risco. O que não pode ocorrer é que empresas em setores mais competitivos, incapazes de repassar acréscimos de custos aos preços, sejam prejudicadas pela obrigatoriedade de correção de salários, deixando-lhes como única opção a rotatividade de mão-de-obra ou, então, a cessação de suas atividades. Além disso, é preciso cortar a automaticidade na espiral salários-preços, sancionada pela aplicação da URP, que apenas realimenta a inflação e eleva salários nominais.


 

MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, 41 anos, é doutor pela Universidade de Harvard (EUA), diretor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas e consultor econômico desta Folha.

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