Na semana passada, neste mesmo espaço, viu-se que o Plano Verão corre o risco de repetir alguns dos mais sérios erros cometidos em outros programas de estabilização: a excessiva duração do congelamento de preços, a manutenção de um crescente atraso cambial e a implementação de uma perversa política relativa a aluguéis residenciais. Viu-se que, na forma como vem sendo posto em prática pelo governo, o Plano Verão revela facetas equivocadas do diagnóstico oficial sobre alguns problemas estruturais da inflação brasileira. Hoje, a política salarial será o tema analisado.
Salários indefinidos
Um eloquente sinal das distorções introduzidas na economia pelo Plano Verão acha-se na confusa discussão sobre a política salarial. O governo forçou o ajuste dos rendimentos do trabalho pela média do ano anterior. De fato, não há outra coisa a fazer em um programa de estabilização, e os critérios adotados foram razoavelmente corretos. No lançamento do Plano Verão, portanto, não houve perdas significativas.
Também foram proibidos reajustes por conta de alegadas defasagens verificadas antes do Plano Verão, e aumentos reais de salários não poderiam ser repassados a preços, decisões igualmente corretas.
Mas o governo negligenciou alguns pontos que se tornaram críticos. Não atentou para o fato de que inflação pós-choque seria maior que zero, e que, portanto, haveria necessidade de regras salariais claras para fazer frente à corrosão do poder aquisitivo do trabalhador. Também não previu corretamente o efeito devastador que a inflação de janeiro causaria no poder aquisitivo dos salários. Isto, de início, comprometeu totalmente o reajuste pelas médias que se tentava alcançar.
Além disso, quase 90 dias após a decretação do programa antiinflacionário, o governo ainda insiste em não definir a política salarial que adotará - livre negociação ou correções automáticas e obrigatórias. Prefere ir postergando a discussão, atrasando os aumentos salariais por mais algumas semanas, na ilusão de que assim estaria aumentando as possibilidades de manter a inflação sob controle por mais um mês. O ingrato jogo da administração do índice inflacionário, mas que afinal resulta apenas em inflação reprimida.
Livre negociação esquecida
O governo também parece estar voltando atrás em sua proposta de inaugurar um regime de livre negociação salarial. Alega que algumas categorias profissionais não teriam suficiente poder de barganha. Isso, contudo, é uma falácia, ainda mais numa conjuntura em que as taxas de desemprego exibem alguns dos mais baixos índices da década.
É provável que as negociações diretas entre patrões e empregados resultem mais vantajosas para os trabalhadores do que acordos coletivos. Nesta última modalidade, e numa conjuntura próxima de pleno emprego, restrições colocadas pelos setores empresariais mais frágeis podem emperrar a obtenção de maiores vantagens para o conjunto dos assalariados. Além disso, nesta sistemática de determinação de salários, a argumentação de ordem macroeconômica adquire maior peso, impondo restrições a setores que de outro modo estariam dispostos a conceder reajustes acima daqueles determinados coletivamente.
Ao tornar geral e impositiva a aplicação de reajustes salariais, o governo permite o surgimento de condições para que os aumentos sejam repassados a preços. Estes procedimentos alimentam o hábito da indexação automática e consolidam a cultura da inflação, embasando a percepção dos preços relativos e fazendo com que as decisões empresariais no espaço quantidade/preço se concentrem quase que exclusivamente nesta segunda dimensão.
De qualquer forma, uma análise da evolução salarial provavelmente demonstraria que os salários acham-se mais relacionados com a evolução conjuntural do que com as regras de reajustes automáticos definidas pelo governo. Daí a ingenuidade da equipe econômica em querer definir critérios gerais de reajustes, achando que com isto estaria protegendo os trabalhadores dos efeitos da reinflação. É provável que com isto esteja realimentando a inflação, e que, em realidade, esteja apenas tentando ganhar tempo para poder exibir índices inflacionários mais favoráveis, porém mais artificiais e menos sustentáveis.
MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, 43, é doutor pela Universidade de Harvard (EUA), diretor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e consultor econômico desta Folha.