A sociedade brasileira tem sido colocada sob constante sobressalto e perplexidade pelas ações do governo. Basta repassar os fatos ocorridos antes, durante a gestação e na fase atual do plano de estabilização.
Primeiro, repetiu-se a redução dos prazos de recolhimento dos tributos federais, medida que sempre exige ajuste na administração de caixa por parte dos contribuintes. Em seguida, veio a introdução de novo tributo -- o Impostos Provisório sobre Movimentação Financeira - IPMF -- e sua cobrança imediata, sem observância do princípio da anterioridade. O protesto foi geral, mas o recolhimento continuou, até ser considerado ilegal pelo judiciário, interrompendo sua cobrança no exercício de 1.993. Mas toda a perturbação causada pela insistência governamental em fazer um recolhimento irregular não foi anulada. Agora, assistimos à querela entre o governo e os bancos, em torno da devolução das importâncias indevidamente cobradas.
No decorrer do longo período de gestação do plano de estabilização, em que seu conteúdo foi sendo, fragmentadamente, divulgado, o congresso aprovou a proposta de majoração da alíquota do imposto de renda do contribuinte pessoa física. A partir de então, assistimos ao início e desenvolvimento da etapa das intimidações: anúncio de ação mais vigorosa contra diretores e gerentes de empresas que ganham acima de US$ 10 mil por mês; estreita vigilância sobre funcionários que tenham casa e empregados domésticos mantidos pelas empresas; anúncio da fiscalização de empresas que patrocinam jogadores e clubes de futebol, para ver se o dinheiro dispendido com esse auxílio é declarado como renda pelas pessoas e entidades beneficiadas, e concomitante revelação de dois clubes e 39 jogadores cujas contas fiscais serão examinadas; intensificação da fiscalização nos bancos, a começar por aqueles que se recusaram a enviar relatórios com dados do IPMF recolhido de seus clientes no ano de 1.993, sob alegação da quebra do sigilo bancário representada por essa exigência, porquanto já se sabia que o governo, a pretexto de saber a quem devolver o imposto recolhido ilegalmente, pretendia usar as listagens, também, como referência para bisbilhotar a vida fiscal daqueles correntistas que dele tenham pagado grandes importâncias -- o que permite concluir que essa anunciada vigília fiscal nos bancos não passa de retaliação por conta da recusa destes em fornecer aquela informação, atitude, aliás, acolhida em liminar que lhes foi concedida pelo judiciário; e, por último, declara a intenção de taxar o patrimônio das pessoas jurídicas e as grandes fortunas de pessoas físicas, sem, contudo, revelar parâmetros que poderiam balizar esse procedimento.
Recentemente, foi inaugurado o estágio das providências arbitrárias, através de medidas provisórias, submetidas à apreciação e deliberação do congresso. A IO número 391 aponta para as pessoas físicas ou jurídicas que deixem de emitir nota fiscal, recibo ou documento equivalente, referentes à venda de mercadorias, prestação de serviços ou a operações de alienação de bens móveis, às quais será aplicada multa equivalente a 300% do valor do bem ou serviço transacionado. Em face de indícios de omissão de receita, dá à autoridade tributária poder para arbitrá-la, segundo método por ele escolhido, a qual se submeterá à incidência dos impostos federais e contribuições sociais. Ademais, aponta para o contribuinte, proprietário de bens ali especificados, reveladores de sinais exteriores de riqueza, e que não exibir documentação hábil, comprobatória de gastos realizados a título de despesas com tributos, guarda, manutenção, conservação e outros indispensáveis à utilização de tais bens. O agente tributário, na falta dos comprovantes de despesas, poderá arbitrá-las para efeito de apuração de rendimentos não declarados pelo contribuinte, os quais comporão a base de cálculo mensal do seu imposto de renda. Já a número 427 permite a prisão de contribuinte suspeito de sonegação, sem que haja processo encerrado, portando a prova do delito. Esta medida fere as garantias do cidadão ao contrariar a Constituição Federal, que garante o devido processo legal, exatamente para proteger as pessoas do arbítrio dos governantes. Apesar de inconstitucional, não se falou em cuidar de sua retirada do congresso. Até os tribunais emitirem sua sentença de inconstitucionalidade, estará ela causando toda sorte de dissabores aos contribuintes sob desconfiança. Para coroar esta manifestação de radicalismo fiscal, o governo diz possuir uma lista de 20 casos graves de sonegação e ter pronto o pedido de prisão de 1.000 pessoas tidas como suspeitas de sonegação.
A maneira como foi sendo divulgado o teor do plano de estabilização, em fragmentos descosturados, impediu a obtenção de uma idéia de conjunto de seus instrumentos e mecanismos e de suas etapas de implementação. Mesmo depois de liberada sua divulgação, vem gerando dúvidas e bloqueando uma visão integrada das medidas nele preconizadas.
Generalizou-se, por conseguinte, uma situação de aguda incerteza, que piorou com o trâmite moroso do exame e aprovação do Fundo Social de Emergência pelo Congresso Nacional. Como seria de esperar, a insegurança levou a remarcações preventivas dos preços de bens básicos de consumo, as quais só podem ser atribuídas ao fato de o governo não ter conseguido divulgar de forma ordenada e explicar claramente seu plano. Ainda agora, o exame da MP 434 -- que cria a Unidade Real de Valor - URV, e trata da conversão dos salários por esta unidade de conta -- vem enfrentando demoradas e difíceis negociações e tropeçando na falta de quorum para conclusão dos entendimentos e subseqüente deliberação. Passou, assim, a se constituir em novo foco de incerteza e especulação. A propósito das remarcações, o governo não perdeu a oportunidade de exercer seu extremismo fiscal -- passou a ameaçar com devassa as empresas dos setores oligopolizados (produtoras de medicamentos, produtos de higiene e limpeza, alimentos c industrializados, bebidas, etc.), que teriam remarcado seus preços acima da inflação, em atitude tipicamente preventiva. Ao acenar-lhes, ainda, com o corte de créditos nos bancos oficiais, o governo esquece, rapidamente, de que foi ele que criou o clima nebuloso em torno das medidas embutidas no seu plano econômico. Parece, igualmente, desconhecer que, no mundo inteiro, tais setores estão organizados em oligopólios, em decorrência mesmo de suas próprias características, e que seus preços dependem de escala de produção, em circunstância de economia estável, estruturas definidas e apropriada distribuição de renda, entre outras, o que -- é forçoso reconhecer -- seguidos governos (inclusive este), com rótulos e lemas diferentes, não têm sido capazes de produzir.
Faz parte do combate governo versus contribuinte o primeiro anunciar, com estardalhaço, a caça aos sonegadores e demais medidas afins, como se perseguí-los, discreta e eficientemente, não fosse dever de rotina da Receita Federal, inspirando respeito na sociedade.
Importa notar que toda essa luta poderia ter sido evitada se o governo tivesse procurado alcançar o equilíbrio orçamentário (condição fundamental para o êxito de seu plano de estabilização), através de uma reforma verdadeira e simplificadora da estrutura tributária, com a adoção e implantação de um tributo de natureza não declaratória, de caráter democrático e universal, de alíquota baixa e de custo de arrecadação e administração irrisório -- o Imposto Único sobre Transações-IUT. Mesmo com o exemplo do enorme potencial de arrecadação de seu arremedo, o IPMF, deixou escapar a oportunidade, para persistir na manutenção deste e dos demais tributos antes existentes.
A furiosa exploração da questão fiscal tem excepcional apelo popular, assegura espaço na mídia, rende audiência político-eleitoral, mas costuma ter resultado desastroso na reação dos agentes econômicos, seja por estimular a busca de mecanismos de evasão de receitas, seja por empurrá-los para a economia informal, seja, enfim, por desestimular investimentos geradores de emprego, renda, consumo e, portanto, de receitas.
A sociedade, entretanto, já parece mostrar sinais de esgotamento com o permanente estado de tensão em que é mergulhada pelo governo e vem se perguntando para onde tem ido o dinheiro dos impostos e taxas que lhe têm sido cobrados, quando assiste ao estado de permanente e crescente deterioração das finanças públicas e, de consequência, às elevadas taxas inflacionárias, à demorada recessão, aos altos índices de desemprego e ao comprometimento dos serviços públicos básicos -- ensino, saúde, energia, transporte, comunicação, segurança e assim por diante.
Já é tempo de o governo -- aqui referido em sentido amplo, compreendendo os três poderes -- mostrar sensibilidade e procurar maior afinação, atuação mais objetiva ao encontro das aspirações sociais e convergência política para corrigir os rumos da nação.
Jornal da Tarde
MARCOS CINIRA CAVALVANTI DE ALBUQUERQUE, 48, é doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA), vereador da cidade de São Paulo pelo PL, e professor titular da FGV (SP). Foi secretário de Planejamento e de Parceria e Privatização do Município de São Paulo (administração Paulo Maluf). S.P., 21/03/94.