Creio não haver tema hoje mais temido do que a integração continental. Isso ficou evidente nos debates ocorridos durante a realização da Cúpula Parlamentar de Integração Continental, que reuniu nos últimos dias 19 e 20 na Câmara dos Deputados os presidentes dos parlamentos de quase todos os trinta e quatro países que integrarão a Alca.
Infelizmente, o debate não está respaldado em dados concretos ou em pesquisas confiáveis. É fundamental conhecer a eficiência produtiva dos parceiros do projeto e, consequentemente, avaliar a respectiva capacidade competitiva de cada um.
No caso brasileiro, teme-se que a maior produtividade global da economia americana inviabilize o setor industrial brasileiro. Na verdade, o Brasil possui nichos industriais e agrícolas de elevada produtividade, significativamente superior à encontrada nos EUA. Na agropecuária, a produtividade média da produção de grãos praticamente dobrou comparativamente a 1980, passando de cerca de 1,2 ton/ha para a casa de 2,6 ton/ha na virada do século, mostrando que a produtividade dos brasileiros é insuperável.
Segundo a CNA, a soja poderia gerar mais US$ 4 bilhões de recursos adicionais na exportação não fossem os subsídios nos EUA que deprimem os preços internacionais. A soja brasileira custa a metade da soja norte-americana; a carne de frango é três vezes mais barata, e a tonelada do aço nacional é US$ 59,00 mais baixa que a produzida nos EUA. A produtividade média do algodão brasileiro, que chega a 3300 kg/ha no Mato Grosso, só é obtida por países que irrigam as suas lavouras, como a Austrália. Segundo estudo da Camex, os ganhos do Brasil com a abertura dos mercados nos EUA seriam significativos: entre US$ 480 milhões e US$ 2,88 bilhões no açúcar, entre US$ 375 milhões e US$ 2,2 bilhões no álcool, US$ 1 bilhão no suco de laranja, entre US$ 500 milhões e US$ 1 bilhão na carne bovina, e US$ 1 bilhão na carne de frango.
Também no setor industrial é notória a competitividade brasileira nos têxteis, nos alimentos industrializados e no setor automotivo e de aviação de médio porte. Vale lembrar que a indústria norte-americana se concentra hoje nos segmentos de alta tecnologia, como informática, telecomunicações, química fina, fibras óticas, aeronáutica de grande porte e outros setores de alta relação capital/trabalho. Essas indústrias não concorrem com a indústria nacional. Portanto, o temor de alguns críticos à adesão do Brasil à Alca, em função da competitividade industrial norte americana, não se sustenta, ao menos nos setores nos quais hoje se concentra a produção manufatureira nacional.
O problema mais sério que o Brasil enfrenta com relação aos Estados Unidos diz respeito ao protecionismo e aos subsídios à agricultura norte-americana. Em 2000 o governo americano pagou aos agricultores daquele país US$ 32,3 bilhões, dos quais US$ 22 bilhões em pagamentos diretos aos produtores. Esse volume gigantesco de subsídio destinado à agricultura causa sérias distorções no mercado internacional. A abertura dos mercados protegidos é a questão que o Brasil precisa enfrentar com rigor.
Contudo, a instalação de uma área de livre comércio traz à luz preocupações de que os benefícios do processo possam ser apropriados de maneira desequilibrada entre os países-membros, ou então entre regiões de um mesmo país. Com efeito, a construção de uma área de livre comércio unindo alguns dos países mais ricos, mais pobres, maiores e menores do mundo é uma tarefa nada trivial. Cada nação registra enormes diferenças entre o grau de desenvolvimento tecnológico, nível de capitalização, poder de mercado dos agentes econômicos e grau de organização da economia, bem como a diversidade de políticas macroeconômicas, industriais, educacionais e creditícias no âmbito doméstico.
As discrepâncias entre os países americanos não existem apenas na esfera econômica. Há ainda enormes diferenças de natureza cultural, social e política que acentuam o desafio de se promover uma integração capaz de atingir os objetivos distintos manifestados pelas 34 nações democráticas participantes do processo de formação da Alca.
Nesse sentido, a Cúpula Parlamentar de Integração Continental discutiu inúmeras experiências nacionais e as perspectivas para se efetivar um processo de integração continental que viabilize não apenas o livre comércio na região, mas, sobretudo, potencialize uma integração abrangente, com benefícios sociais e econômicos para todas as partes.
A Cúpula Parlamentar de Integração Continental deixou quatro recomendações básicas:
Que a iniciativa se repita regularmente, com o objetivo de aprofundar discussões; afinal, caberá aos parlamentos do continente a tarefa de ratificar, ou não, os acordos a partir de 2005;
Que, a partir dessas discussões, os parlamentos se tornem partícipes ativos nas negociações, devendo elaborar documentos e position-papers que definam os limites e a abrangência do acordo de livre-comércio que sejam aceitáveis ao parlamento e permitam serem ratificados sem maiores objeções, uma espécie de TPA tupiniquim;
Que sejam criados fundos de compensação capazes de atenuar as principais disparidades produtivas e de infraestrutura física e social em favor das economias menores e mais pobres, bem como propiciar formas de reciclagem e retreinamento para os setores e para os segmentos populacionais mais fortemente afetados pelos impactos do livre-comércio nas Américas; e
Que se tomem as providências necessárias para a concretização da proposta de criação de um parlamento das Américas, conforme sugestão do presidente-eleito Luiz Inácio Lula da Silva quando de seu encontro com os integrantes da Cúpula Parlamentar de Integração Continental.
Nada deve ser temido pelo Brasil. É preciso confiar em nossa capacidade de identificar onde se encontra o interesse nacional e, a partir daí, agir como afirmou Luiz Haffers, sem preocupação de sermos gostados. Queremos, sim, ser respeitados, temidos se necessário, e até odiados se imprescindível.
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, Doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA) e Professor-Titular e Vice-Presidente da Fundação Getulio Vargas, é Deputado Federal pelo PFL/SP.
Internet: www.marcoscintra.org
E-MAIL: mcintra@marcoscintra.org