É preciso reconhecer o pragmatismo do presidente Lula. Seu governo fez o que ninguém, principalmente os petistas, jamais esperava que fosse feito. Resgataram o Brasil do desastre quase certo. Por quanto tempo, ninguém sabe. Mas evitaram a derrocada que, no fim do ano passado, chegou a ser considerada inevitável. Há exatamente um ano o mundo não apostaria nenhum tostão furado no futuro da economia brasileira. No final do ano passado, o dólar explodiu, as Bolsas desabaram, os juros galgaram as alturas, a dívida pública chegou a 63% do PIB, a inflação voltou aos dois dígitos, o risco Brasil nos mercados financeiros internacionais atingiu mais de 2.400 pontos, atrás apenas da Argentina e da Nigéria. Ninguém investia, os aplicadores estrangeiros repatriaram seus recursos livres, todos vendiam, ninguém comprava. Alguns culpavam a política econômica de FHC e os efeitos do populismo de seu primeiro mandato. Outros atribuíam ao FMI os males advindos da política de austeridade que fora exigida após as duas operações de salvamento que o organismo coordenou a favor do Brasil, em 1998 e 2002. Outros ainda imputavam a crise ao discurso do PT, às suas estapafúrdias propostas pré-eleitorais de governo, e apostavam que seu comportamento oposicionista irresponsável e oportunista seria prova segura do tipo de governo que estaria sendo instalado. Mas o fato é que, quando a oposição virou situação, as perspectivas para a economia brasileira eram as piores possíveis. O PT assumiu o governo e rezou pela cartilha do FMI. Apertou a política monetária e aprofundou a contenção fiscal. A inflação medida pelo IPCA caiu de 2,25% em janeiro para 0,34% em agosto; o dólar desabou de R$ 3,50 para R$ 2,90; o risco Brasil deslizou para cerca de 600 pontos. O desemprego bateu 13% da PEA, e a taxa de crescimento estimada pelo mercado mergulhou para menos de 1%. Tudo exatamente como esperado pela receita do PT/FMI. Hoje a crise é outra. E a discussão também. Apenas nove meses após a transição de governo o debate que se trava é se o acordo com o FMI deve ou não ser renovado. Há diferenças significativas entre o momento atual e as crises do passado. Pela primeira vez as discussões sobre o FMI não ocorrem em cenário emergencial de instabilidade monetária ou de crise nas contas externas. Pelo contrário, houve notável melhoria na evolução do balanço de pagamentos. A queda nos investimentos diretos ainda não foi recuperada, embora as perspectivas de retomada do crescimento econômico para os próximos anos indiquem, para breve, provável inversão. A necessidade de uma política de austeridade fiscal e de realismo cambial foi amplamente assimilada por todos. Já há uma percepção generalizada acerca da inviabilidade de uma política de expansão da atividade econômica fora de um ambiente de estabilidade monetária e de equilíbrio nas contas externas. Nesse sentido, cabe indagar qual a razão para a prorrogação do acordo com o FMI. No "Memorando Técnico de Entendimento" assinado entre o Brasil e o organismo internacional, o principal critério de desempenho, o superávit primário, foi voluntariamente elevado pelo governo de 3,75% para 4,25% do PIB e vem sendo cumprido com folga. Nos primeiros sete meses de 2003 o setor público consolidado apresentou superávit primário acumulado de 5,05% do PIB. É provável, portanto, que política econômica continue a mesma, e assim os aportes financeiros de um novo acordo serviriam apenas para aumentar as reservas internacionais. Também não há como argumentar que a renovação do acordo implicaria reforço de credibilidade internacional, pois o Brasil já granjeou respeito de todos os organismos internacionais. As últimas colocações de títulos do governo nos mercados externos têm sido feitas com quedas significativas de custos. Entre abril e setembro deste ano a taxa acima dos T-Bills americanos exigida pelos investidores para a compra dos títulos brasileiros caiu de 7,83% para 6,33%. Até mesmo o diretor-gerente do FMI, Horst Köhler, já declarou que o Brasil não necessita de acordo, e a vice-diretora-gerente, Anne Krueger, chamou os resultados obtidos de "commendable policy performance". É razoável supor que a continuidade dessa política independeria de qualquer monitoramento internacional. A não-renovação do acordo, portanto, poderia até reforçar a sinalização a favor da livre opção pela responsabilidade fiscal e monetária, sem imposições de terceiros, como afirmou Armínio Fraga. Há que estar atento ao inevitável crescimento das importações de equipamentos e matérias-primas que a retomada do crescimento causará. Ademais, apesar dos sinais positivos emitidos pela conjuntura internacional, principalmente no Japão, as incertezas políticas do momento, os focos de beligerância e a aversão ao risco que acometeu os investidores internacionais ainda não estão superados. Espera-se, contudo, que a posição estratégica do país como liderança emergente na economia mundial reforce a disposição dos organismos internacionais em acudir o Brasil na eventualidade de uma crise exógena. A renovação do acordo com o FMI não é necessária. É possível até que um novo acordo seja indesejável, se forem mantidas algumas das descabidas metas de desempenho incluídas no acordo de 2002. Alguns dos critérios de desempenho implicam indevida interferência em assuntos de política econômica interna, que compete exclusivamente ao governo decidir, como a retirada da cumulatividade do PIS e da Cofins, a venda de bancos públicos, a busca de alternativas de arrecadação para a CPMF e a criação de fundos de pensão complementares para servidores públicos. A não-renovação do acordo ainda poderia facilitar a remoção de sérios obstáculos para a retomada dos investimentos públicos por parte de empresas estatais e de governos estaduais ou municipais. Hoje, empresas públicas com recursos disponíveis encontram dificuldades para investir (apenas a Petrobras foi excluída dessas limitações), e o limite do endividamento público estabelecido em resoluções do Senado, do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional impedem por completo a contratação de operações de crédito por parte de governos estaduais ou municipais absolutamente saudáveis e capazes de demonstrar adequada capacidade de pagamento. Nesses casos, transfere-se à população o sacrifício do ajuste na forma de carência de serviços públicos com elevada taxa de retorno social e econômico. Recolocar o país na trilha do crescimento é imperativo econômico e político para o atual governo. Não há mais razões que o impeçam de agir ativamente nessa direção. A renovação do acordo com o FMI não parece ser necessária ao prosseguimento da implementação do ajuste econômico, mas poderia implicar algum desnecessário constrangimento na retomada dos investimentos públicos. Melhor seria prosseguirmos sozinhos.
MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.