Passados dois anos, cabe indagar: afinal, a política econômica do governo Lula é de direita ou de esquerda? Essa pergunta vem sendo feita reiteradamente por analistas econômicos, impactados pela distância entre o discurso petista histórico e a prática econômica dos últimos dois anos. Está o governo seguindo, e até aprofundando, a política do segundo mandato de FHC? Cabe lembrar, para que não pairem dúvidas, que a política econômica do primeiro governo FHC foi um fracasso, apenas resgatada na lembrança da população pela proximidade do sucesso do Plano Real, do governo Itamar Franco, e pela oportuna confusão dos eleitores que identificaram a idealização e implementação do Plano Real por FHC/ministro da Fazenda com a política populista do FHC/presidente. A primeira salvou a economia brasileira de um ocaso certeiro; já a segunda foi tida, e com certa razão, como a mais desastrosa política econômica dos últimos 20 anos. Os equívocos da política econômica do primeiro mandato de FHC desembocaram na crise do final de 1998. Chegou a haver, em princípios de 1999, um ensaio de corrida bancária. O país somente não foi à lona por causa do providencial acordo com o FMI e do tratamento de choque implementado em 1999, que elevou a taxa de juros (Selic) para 45% ao ano e implantou o sistema de metas de inflação. A partir de então, a rigidez nas áreas fiscal e monetária e a liberação do câmbio foram os pilares da política econômica do governo FHC. Essa política foi mantida integralmente no governo Lula. Nesse sentido, fica uma pergunta no ar: está o governo Lula aprofundando a política "neoliberal" de consolidação do capitalismo e, por conseqüência, renegando a política agressivamente distributivista que o PT vendeu como sua plataforma de governo em todos os seus anos de trajetória oposicionista? Estaria o governo abrindo mão de seus ideais programáticos, constatando serem eles tão belos quanto irrealizáveis no mundo moderno? O governo cedeu ao pragmatismo da aritmética e aos aplausos da comunidade internacional. Não há espaço para quixotismos, e a única alternativa é o Brasil engatar-se na onda globalizante e integracionista do mundo moderno. Surfar nessa onda é claramente a opção escolhida pelo governo Lula. A manutenção do câmbio flutuante e a aliança com o capital financeiro internacional mostram que o PT se rende ao comando da economia de mercado. Não se cogita qualquer ação de controle à entrada e à saída de capital externo nem mecanismos de controle da paridade cambial, políticas veementemente defendidas pelo PT/oposição. Na área fiscal, o PT/situação aprofundou a rigidez orçamentária instituída com as metas de superávit primário acertadas com o FMI. O superávit primário médio de 3,6% do PIB nos quatro anos do segundo mandato do governo FHC saltou para 4,7% na média de 2003 até agosto de 2004. No que se refere à arrecadação de impostos, o PT/situação continua tributando com a mesma volúpia do governo anterior. O alarde sobre a queda do peso dos impostos em 2003 é pura balela, uma vez que o fenômeno é meramente um efeito estatístico causado pela revisão do PIB e por conta do fim de receitas extraordinárias que se concentraram em 2002 através do recolhimento de tributos em disputa judicial, principalmente com os fundos de pensão. De um modo geral, os impostos federais mantêm sua trajetória altista, iniciada no governo FHC, em busca das metas de superávit primário. A taxa Selic, que nos quatro anos do governo FHC foi de, em média, 20%, vem se mantendo próxima a esse patamar durante os dois primeiros anos do governo Lula. Os juros de mercado para pessoas físicas e jurídicas, que nos últimos três anos do governo FHC se mantinham, em média, em 46%, passaram no governo Lula para 49% até agosto último. Esses juros absurdos decorrem, sobretudo, do poder de mercado dos bancos no Brasil. O presidente Lula e o PT/oposição, que criticavam furiosamente a atuação dos bancos, hoje não se sentem incomodados com esse setor, que continua dando as cartas em relação aos rumos da economia e que consolida a manutenção de "spread" de mais de dez vezes o observado em outros países. Entre os atos que deixaram mais evidente a opção liberal do presidente Lula, um que merece destaque refere-se ao Banco Central. A decisão de nomear Henrique Meirelles para presidi-lo foi justificada como condição para o país manter sua credibilidade no mercado financeiro internacional. No entanto, depois de o PT/oposição ser lembrado como crítico ferrenho da subserviência do BC aos interesses dos banqueiros, o PT/situação nomeou para encabeçá-lo o presidente mundial do Banco de Boston. Essa instituição mantém em carteira o segundo maior estoque de títulos da dívida externa brasileira. Vale lembrar que, um ano após Meirelles assumir o BC, o valor desses papéis dobrou e seus detentores, como o Banco de Boston, lucraram. Aliás, é oportuno citar que, mesmo depois de assumir o BC, Meirelles continua recebendo do banco norte-americano rendimentos da ordem de US$ 750 mil por ano. Em outras épocas, essa situação seria motivo de pedido de CPI pelo PT/oposição. No tocante às metas de inflação, o governo FHC logrou sucesso nos dois primeiros anos de seu segundo mandato. Nos dois últimos anos, choques internos e externos, bem como a corrida presidencial, levaram o governo a praticamente abandonar o centro da meta. No governo Lula, a meta de inflação foi revista em 2003 e hoje vem sendo aplicada e perseguida de modo tão intenso quanto no início do segundo mandato de FHC. Tudo indica que o governo descobriu virtudes onde antes só denunciava vícios. No tocante à política comercial externa, o governo Lula age de forma dúbia, titubeante, oscilando entre o desejo de uma integração mais efetiva e um terceiro-mundismo ultrapassado à la Guerra Fria. Mas o distributivismo agressivo continua a fazer parte da retórica política. Ainda que os resultados das políticas sociais, que poderiam ter um efetivo impacto redistributivista, sejam reconhecidamente um fracasso, o governo mantém uma aparência interna e externa de esquerdismo um tanto démodé. Em seu balé político, o governo rodopia à esquerda, mas se encaminha com passos determinados para a direita. O PSDB e o PT tornam-se, a cada dia, mais parecidos. As brigas são como as do musical "West Side Story". Gangues de rua que disputam espaço, mas praticam as mesmas regras, condutas e seguem um mesmo pensamento, que, infelizmente, com FHC ou Lula, não melhorou a vida dos brasileiros.
MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.