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Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Mudar para sobreviver


Nada como uma boa crise para estimular mudanças com ousadia e criatividade. Os riscos implícitos na atual crise política poderão trazer ventos de bom agouro à economia. Desde 1999, a política econômica vem sendo tocada sob o tripé formado pelo câmbio flutuante, pelas metas de inflação e pelas metas de superávit primário. O país recompôs suas reservas cambiais, controlou a inflação ao consumidor e amenizou o crescimento da relação dívida/PIB. No entanto produziu-se extremo desconforto em relação ao baixo crescimento da economia. Há uma armadilha montada. O sistema de metas de inflação força a manutenção do juro primário em níveis elevados, o que, por sua vez, fomenta a entrada de recursos externos na economia. O elevado retorno financeiro, o maior do planeta, aumenta a oferta de divisas e valoriza o real. Essa combinação de juros e câmbio deprime o consumo e o investimento privados. Além disso, as despesas públicas são fortemente pressionadas pelo fato de 55% da dívida mobiliária estar indexada à Selic. Em 2004, os juros nominais do setor público consolidado consumiram R$ 108 bilhões, mais de 6% do PIB. Nesse sentido, cabe avaliar dois aspectos importantes da questão: o déficit público e a rigidez orçamentária. A política fiscal brasileira vem se pautando pela busca de crescentes superávits primários para amenizar o crescimento da dívida pública. No ano passado, o resultado chegou a 4,58% do PIB, saldo que se transforma em déficit de 2,48% do PIB quando se acrescenta a despesa com os juros. Não há, portanto, equilíbrio fiscal. A proposta central que começa a ser discutida visa aprofundar o ajuste fiscal, ou seja, zerar o déficit nominal do governo num prazo de cinco anos ou mais. Para tanto, prevêem-se a flexibilização do Orçamento e o congelamento das despesas primárias em valores reais. Além disso, estuda-se a redução de despesas por conta do enxugamento do número de ministérios e a diminuição dos cargos de confiança, que hoje somam cerca de 20 mil. É evidente que muito mais terá de ser feito para obter déficit zero. A flexibilização orçamentária viria por meio da ampliação progressiva da DRU (Desvinculação das Receitas da União) dos atuais 20% para 30% ou 40% num prazo de cinco a seis anos. Atualmente, 80% do bolo arrecadatório é dinheiro carimbado e faz com que o ajuste tenha que se restringir às reduzidas parcelas livres do Orçamento, de apenas R$ 63,3 bilhões em 2005. Essa maior flexibilidade poderia viabilizar novos cortes de gastos e, concomitantemente, permitir mais investimentos em infra-estrutura produtiva. Esse novo regime fiscal implicaria importante mudança qualitativa, além de magnificar o aperto orçamentário já em curso. O maior volume de recursos para investimentos, gerado pela ampliação da DRU, e o equilíbrio fiscal, imposto pelo déficit zero, permitiriam a redução dos juros e da relação dívida/PIB. Estima-se que a redução do juro real do atual patamar de 13% para 6% liberaria R$ 50 bilhões e o endividamento cairia para cerca de 45% do PIB em seis anos. Além dos impactos positivos que as medidas poderão causar nos juros e no endividamento, tornar-se-á possível reduzir a carga tributária, que vem sendo aumentada para acomodar os juros altos e a atual rigidez orçamentária. O debate envolvendo o déficit zero e ampliação da DRU não deve obscurecer um ponto fundamental para o país: a necessidade de empreender uma profunda reforma tributária. Há que implementar um novo sistema que reduza a carga individual de impostos e enfrente o problema da informalidade e da sonegação. A unificação tributária ensaiada no Congresso por meio da criação de um IVA nacional não é uma proposta funcional. A base de um novo imposto de larga abrangência deve ser a movimentação financeira. Tal linha de ação, que defendo há muito temo e que se encontra na pauta da Câmara para ser votada, poderia ser importante instrumento para recuperar a abalada imagem pública do governo. Segundo apuraram os institutos Datafolha e CNT/Sensus, essa filosofia tributária reúne simpatizantes em todo o Brasil. Cerca de 64% das pessoas que o conhecem são favoráveis a ela. A reforma tributária baseada nos princípios do Imposto Único sobre Transações, cuja sistemática o economista Edgar Feige, da Universidade de Wisconsin, chamou de tributo do século 21, consiste num projeto que poderia ser implementado gradualmente, a começar pela substituição dos tributos que oneram a folha de salários das empresas. O INSS patronal seria um primeiro passo para a redução da informalidade e o aumento do emprego formal. O governo aponta o alvo correto na área fiscal quando ensaia enfrentar o déficit público e o engessamento orçamentário. Resta repensar a reforma tributária, sob pena de termos, mais à frente, uma nova armadilha. Imerso em crise de credibilidade, o governo não tem alternativa senão fazer valer os resultados positivos que poderia alcançar se mostrar coragem e ousadia na economia.

 

MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

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