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Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

A reforma tributária como farsa

Virou moda afirmar que a reforma tributária não acontece porque o governo não a deseja, por já estar arrecadando bem. Isso pode ser verdade, mas não pela razão alegada. Ninguém será contra uma reforma se ela for capaz de simplificar, reduzir custos, desburocratizar a arrecadação, eliminar a sonegação e melhorar os padrões de incidência tributária. Certamente, tal sistema seria apoiado por toda a sociedade, inclusive pelo governo. Por outro lado, quem defenderia uma reforma tributária se houvesse risco de queda de arrecadação e se ela implicasse elevação de alíquotas, criação de novos tributos, estímulos ao crescimento da sonegação e maior complexidade nos procedimentos de arrecadação? Ninguém a defenderia, principalmente o governo. Pois é exatamente isso que ocorre com os projetos da Comissão Especial de Reforma Tributária. O Ministério da Fazenda, como todo o país, deseja uma reforma. Mas não a que se encontra nas mãos do presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, cujas características básicas se assemelham aos aspectos negativos apontados acima. A posição do governo deve ser particularmente cautelosa. Tem a obrigação de condicionar seu apoio à garantia de manutenção dos atuais níveis de arrecadação, atualmente de cerca de R$ 250 bilhões anuais. Seria irresponsável e demagógico se o executivo admitisse alterações que pudessem colocar em risco as metas de equilíbrio fiscal que, a duras penas, foram atingidas nos últimos meses ou que, em sua avaliação, pudessem representar retrocesso no sistema tributário brasileiro em termos de economicidade. O principal obstáculo no caminho da reforma tributária não se encontra na inapetência do governo por uma reforma, mas na péssima qualidade das propostas apresentadas pela Comissão Especial de Reforma Tributária. Como diz Roberto Campos, os projetos apresentados conseguem apenas "aperfeiçoar o obsoleto". São, segundo o professor Ives Gandra da Silva Martins, o pior com o que já se deparou em 40 anos de atividade profissional. Vejamos alguns fatos: A Comissão Especial de Reforma Tributária vem desenvolvendo seus trabalhos desde 1995. O relator daquela Comissão, o deputado Mussa Demes, já apresentou quatro versões de seu parecer. Três delas não foram sequer apreciadas na Comissão por ausência de apoio parlamentar. A última, datada de novembro passado, foi votada e aprovada por 35 votos a favor e um contrário, o meu. Tal maioria em sua aprovação, contudo, não significou consenso técnico ou político ao projeto. Esse mesmo relatório foi logo em seguida alterado pela própria Comissão, que, ao término de seus trabalhos, encaminhou ao presidente Michel Temer um rascunho de uma "emenda aglutinativa", propondo ser esse, e não o relatório oficial, o texto a ser encaminhado ao plenário da Câmara. Cumpre explicar que o relatório de nº 4 foi aprovado depois de um processo traumático de discussões nas quais o PFL, partido do próprio relator, insurgiu-se contra a proposta, chegando a impedir sua leitura na data marcada pela Comissão. Chegou-se a um acordo no sentido de aprová-lo no dia seguinte, apesar das profundas divergências que foram suscitadas, tendo sido proposto que as correções seriam feitas na própria Comissão por votação de destaques e posteriormente em plenário da Câmara dos Deputados. Mas, como seria de esperar, essa ação acabou por desfigurar ainda mais o projeto original, tornando o inaceitável pelo governo e por vários setores da economia brasileira. Daí o surgimento de um projeto alternativo, porém igualmente ruim, a tal da "emenda aglutinativa". O resumo da ópera é o seguinte: a Comissão revelou-se incapaz de produzir um projeto razoável de reforma tributária. Apenas produziu dois projetos inviáveis. A proposta aprovada oficialmente pela Comissão é conservadora e ainda agrava os defeitos do sistema atual. Para substituir o IPI, o atual imposto estadual de circulação (o ICMS) e as contribuições sociais, essa proposta cria um IVA convencional, declaratório e burocratizado, um ICMS piorado. Contudo, para gerar a mesma arrecadação, a alíquota total sobre o valor agregado precisará ser excessivamente elevada. O setor de serviços, por exemplo, terá sua carga tributária dobrada. A evasão e a sonegação serão estimuladas. O projeto ainda contém falhas técnicas gritantes, como a introdução do método do 'barquinho" na arrecadação do IVA, que, no comércio interestadual, acarretará a geração de saldos credores sistêmicos, e certamente ilíquidos, contra o governo. E comete a mais arrematada insensatez ao criar novos impostos, como o Imposto de Vendas a Varejo, o IVV, um presente de grego para os municípios, que perderão o ISS e transferirão para os Estados e para a União a base tributária que mais cresce na economia moderna, os serviços. A emenda aglutinativa encaminhada como "sugestão" ao presidente Michel Temer busca uma proposta consensual e negociada com os Estados e corri União, busca que não haja comprovação de que tenha logrado desiderato. Trata-se de uma redação alternativa dos mesmos princípios contidos no projeto oficial. Na tentativa de incorporar s gestões isoladas para angariar apoios, o novo projeto perde coerência conceitual. Revela um detalhismo pouco usual em texto constitucional. Chega a ser exótico que, para remeter a arrecadação do novo IVA ao Estado destino, se proponha um texto constitucional que admite escolher entre alternativas excludentes, como a da utilização da técnica "barquinho", ou a da criação um fundo de compensação, quaisquer "outros procedimentos". Culminando o que poderia s classificado como uma anti-reforma, a proposta "informal" admiti a criação de 13 novas espécies tributárias, todas declaratórias, tecnocráticas e altamente sonegáveis, compensadas parcialmente com a extinção de apenas quatro. Se persistirem as pressões sob o presidente Fernando Henrique para aprovar a reforma tributária da Câmara dos Deputados, a melhor estratégia, a mais pragmática, seria aceitar sua imediata aprovação e enviá-la para o Sendo, onde, supostamente, haver esperança de uma reformulação para prevalecer um mínimo racionalidade e de bom senso. Mas, por via das dúvidas, o presidente Fernando Henrique Cardoso exigiu que a reforma tributária só passe a valer a partir de 2003. Se alguém tiver que ficar com mais essa batata quente nas mãos, que seja o próximo governo.

 

MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

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