É surpreendente a candura com que vários empresários e economistas se referem à atual inflação no Brasil. Apesar de o índice de preços ao consumidor ter atingido 53% em dezembro e das previsões de que poderá chegar a incríveis 70% em janeiro, esses analistas afirmam que o Brasil não vive uma crise hiperinflacionária. Pelo contrário, afirmam que os mecanismos de indexação permitem uma convivência pacífica com as altas taxas de inflação, e se recusam a enxergar as enormes distorções introduzidas no sistema econômico pelas explosivas taxas de aumento de preços.
Essa atitude de complacência em relação ao fenômeno inflacionário é uma das razões pelas quais ele pode corroer a estrutura econômica do país. Ao se aceitar passivamente a continuidade do processo de elevação de preços, corre-se o risco de um completo colapso da economia.
A inflação brasileira destruiu a noção de valor. Ninguém é mais capaz de avaliar se um bem ou um serviço é caro ou barato; não há mais como verificar quais são os preços relativos na economia; as oscilações nos valores e nas relações de troca são intensas, desorganizando o funcionamento dos mercados. A simples passagem do tempo pode distorcer completamente os termos de um contrato; estes, por sua vez, têm de ser constantemente renegociados, ainda mais pelo fato de que a aceleração inflacionária está inviabilizando o atual sistema de indexação utilizado na economia brasileira. Como resultado de tudo isso, os custos de transação aumentam assustadoramente, reduzindo o nível de produtividade geral da economia.
A destruição da noção de valor arrasta consigo um importante conceito da economia, o da eficiência. Como mensurá-la? Como avaliar projetos, como planejar e como fazer contratos em situações de extrema instabilidade?
Tais preocupações podem parecer abstratas. No entanto, os reflexos dessa situação estão muito próximos de todos. Os consumidores desejam adquirir cada vez mais, na expectativa de que os preços lhes serão desfavoráveis no futuro. Estão corretos, pois afinal os salários ainda são precariamente indexados. Na realidade, apenas eles ainda não estão sendo corrigidos diariamente. Os demais preços são reajustados todos os dias e já caminham no sentido de correções instantâneas, não com base nos índices inflacionários pretéritos, como o IPC oficial de cada mês.
Por outro lado, os produtores adotam padrões de comportamento que inevitavelmente levarão a graves crises de desabastecimento. Os investimentos na ampliação da capacidade produtiva escasseiam; as empresas preferem formar estoques a contratar vendas, pois não conhecem seus preços de reposição; a onda de férias coletivas concedidas neste final de ano certamente se transformará em desemprego aberto, caso a desestruturação do setor produtivo continue. Os prazos se reduzem, o que implica a virtual destruição do sistema de crédito. Os juros reais elevados inviabilizam a intermediação financeira, promovendo apenas a atividade especulativa.
Feito este diagnóstico, como afirmar que o país ainda não está na hiperinflação? Será preciso a total paralisação do sistema econômico e o caos social para convencer a sociedade de que a hiperinflação já se instalou entre nós?
MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, 43 anos, é doutor pela Universidade de Harvard (EUA), diretor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e consultor econômico da Folha.