“Gastar o dinheiro alheio constitui, sem dúvida, um dos privilégios mais deliciosos dos governantes.” John Randolph
Roberto Campos – 02/08/1992
Não é só em biologia que os híbridos são estéreis. Também na economia. É o que ocorre em relação ao imposto sobre transações financeiras. Concebido como único imposto arrecadatório, traria dramática redução dos custos burocráticos, incorporaria a economia informal ao universo contribuinte e eliminaria a corrupção fiscal. No projeto de reforma fiscal do governo será apenas mais um imposto, gerando natural reação do contribuinte, particularmente os aplicadores na poupança.
No projeto Marcos Cintra/Flávio Rocha, as aplicações financeiras e no mercado de capitais só seriam tributadas sobre o rendimento real, com uma alíquota de 25% não cumulativa, equivalente à atual alíquota média do Imposto de Renda sobre aplicações financeiras. Essa tributação só incidiria quando esse rendimento real fosse transferido para a conta de movimento do aplicador, passando depois a vigorar o regime do imposto sobre cheques e transações. Mas, em compensação, o aplicador seria beneficiado pela extinção de toda uma nefanda chorumela de impostos (Imposto de Renda, IOF, ICMS, ISS, IPI, contribuições sociais, et caterva...).
A hibridização complica o problema. Na proposta da Comissão de Reforma Fiscal haveria pelo menos uma simplificação. O imposto sobre transações financeiras substituiria todas as contribuições sociais. No projeto revisto pelo Ministério da Economia, nem isso. Em face da pressão dos setores de saúde e previdência, o imposto sobre transações financeiras teria de coabitar, num sujo concubinato (que se diz temporário), com o Finsocial, o PIS-Pasep, além da contribuição do empregador sobre o lucro. Desaparece a simplificação, há um aumento líquido da carga tributária e permanece o desincentivo à contratação de mão-de-obra.
As objeções à inovação revolucionária do Imposto Único sobre Transações se dividem em dois grupos: medo de inovação ("timor inventionis") e desconhecimento da sistemática proposta ("ignoratio elenchi").
Convém relembrá-las. Primeiro o medo da monetização. Supõe-se grotescamente que caminhões aportariam aos bancos para sacar dinheiro. Seria masoquismo. O sacador livrar-se-ia de um imposto de 1% sobre a transação e se exporia ao imposto do ladrão (100%) e ao imposto da inflação (22% ao mês). Segundo, o receio da verticalização das indústrias, para fugir do imposto em cascata. Mas, hoje, quem podia verticalizar já o fez para escapar ao Finsocial e ao PIS-Pasep (rujas alíquotas somam,2,65%). Terceiro, o receio dos endossos e dos cheques voadores. Naquele caso, basta dispor que o sacador final pague todos os endossos intermediários. Neste, basta premiar, com o dobro do valor, quem apresentar para desconto um cheque em branco, debitando-se o emitente pela multa correspondente. Quarto, o receio de que se criassem câmaras privadas de compensação extrabancárias de débitos e créditos. Além da mãode-obra e do risco envolvido, o fato é que as transações na economia real são unidirecionais e não bidirecionais. O fornecedor não compra necessariamente do seu comprador e este geralmente vende a terceiros. Compensações poderiam ocorrer dentro do mesmo grupo, mas este tipo de sonegação já existe no presente, e em muito maior escala, pois vivemos num manicômio fiscal. Quinto, a dificuldade de isenção fiscal para as exportações. Os atuais incentivos à exportação são muito menos eficazes do que se pensa. Não há isenção no caso de bens primários e semimanufaturas. Mesmo no caso dos produtos manufaturados incidem o Finsocial, o PIS-Pasep e o IOF. A isenção para as exportações se torna teórica quando há interrupções na cadeia produtiva. Isso ocorre hoje, pois máquinas e bens de produção são considerados bens de consumo final, e não insumos, interrompendo-se a cadeia dos créditos descontáveis. E quando há acumulação de crédito na ponta final de exportação, é difícil e lento o ressarcimento dos créditos fiscais. A exportação seria enormemente beneficiada pela dramática simplificação burocrática traz ida pelo Imposto Único. E, se forem necessários incentivos especiais, é melhor que tomem a forma de devolução ao exportador, de forma clara e transparente, dos impostos médios que em cada setor oneram a cadeia produtiva. Sexto, os obstáculos criados à formação do Mercosul. O argumento é espúrio. O que é indispensável para a integração são taxas cambiais compatíveis, convergência nas taxas de inflação e uma tarifa externa comum. A harmonização fiscal é desejável, porém não indispensável, e não foi até hoje conseguida na Europa.
Com nossa propensão a fórmulas salvadoras, criou-se o slogan "a reforma fiscal é a salvação". O problema é mais amplo. Precisamos de um choque "positivo" da oferta, pois o combate à inflação do lado da procura gerou hiper-recessão, sem curar a inflação. Indispensável é também se criar uma margem de flexibilidade nas empresas para redução de preços. Seria o programa dos três "D": destributação, do lado da receita; desmonte, do lado da despesa; e descomplicação burocrática. A preocupação dos autores da reforma fiscal parece ser tornar financiável o governo inchado; o necessário é desinchar o governo e destributar o setor privado. Isso poderia ser alcançado pela eliminação de três supertributações existentes:
• a supertributação da pessoa jurídica;
• a supertributação da utilização de mão-de-obra;
• a supertributação dos bens de produção;
Além disso, urge reativar-se a "operação desmonte", proposta sem êxito no governo Sarney após a Constituição de 1988, que depenou o Fisco federal. Sendo politicamente impossível, e economicamente indesejável, reabsorver o poder tributário transferido para Estados e municípios, só há duas alternativas.
Uma é amputar o orçamento federal das transferências voluntárias aos Estados e municípios e que em muitos casos correspondem a dispêndios típicos dessas esferas de governo. Na realidade, como o faz notar o ex-procurador-geral da Fazenda Dr. Cid Heráclito de Queiroz em recente artigo no O Globo, "o orçamento federal é um 'orçamento perdulário"'. A fantástica soma de Cr$ 35,9 trilhões, equivalente a quase toda a arrecadação do IPI, do IOF e do ITR, é consignada para despesas com encargos essencialmente estaduais e municipais. Há verbas de Cr$ 2,029 trilhões para sustentar Brasília, que já devia estar desmamada das tetas do Tesouro. Há verbas para um coral infantil em Roraima, para escolas de samba, para estradas vicinais e rodovias estaduais (que deveriam ser financiadas pelo ICMS, IPVA e IVV) e até para a criação de um "núcleo de amor à vida", numa capital nordestina!
A outra solução, que parece embutida disfarçadamente na proposta de "ajuste" (ou desajuste) fiscal, é aumentar-se a carga tributária global para acomodar o inchaço global – União federal perdulária, Estados e municípios gastadores. Isso corresponderia a uma asfixia do setor privado, preservaria simultaneamente a pressão inflacionária e a aflição recessiva, ou seja, a "estagflação". Seria o terceiro ajuste fiscal do governo Collor, que se caracterizou primeiro, por sustos fiscais e agora, por choques morais...