CM Entrevista: “O modelo tradicional de crédito no Brasil precisa ser transformado”
- Marcos Cintra
- 28 de jul.
- 6 min de leitura
Vice-presidente da FGV analisa os impactos da inflação, dos juros altos e da digitalização no endividamento das famílias, e defende uma revolução no sistema de crédito.
Jessica Chalegra | Julho 28, 2025
O crédito desempenha um papel central na economia brasileira. Ele funciona como alavanca para o consumo e crescimento, e ainda como termômetro da saúde financeira das famílias. Em um cenário de inflação acima da meta, juros elevados e perda de poder de compra, cresce a preocupação com o aumento da inadimplência e a sustentabilidade do modelo atual de concessão de crédito. Mesmo com os avanços da digitalização e a popularização de ferramentas de controle financeiro, milhões de brasileiros seguem enfrentando dificuldades para equilibrar o orçamento e manter as contas em dia.
Neste contexto, Marcos Cintra, economista e vice-presidente da Fundação Getúlio Vargas (FGV), analisa os principais desafios do cenário econômico atual e os impactos sobre o endividamento das famílias. Ele também discute como novas modalidades de pagamento, como o BNPL (Buy Now, Pay Later), e o imediatismo digital afetam a saúde financeira da população.
Impacto do crédito no consumo
Consumidor Moderno: Qual é a sua análise sobre o atual cenário econômico do Brasil e seus impactos no poder de compra do consumidor? O que isso influencia no comportamento financeiro?
Marcos Cintra: A economia do País cresceu 1,4% no primeiro trimestre de 2025 em relação ao quarto trimestre de 2024 e deve fechar este ano com expansão em torno de 2,4%, abaixo da boa média de 3,5% de 2021 a 2024. Por outro lado, o IPCA acumulado em 12 meses, de 5,35%, está muito acima da meta de inflação de 3%, fazendo com que a taxa de juro Selic se posicione em patamar muito elevado.
No mercado de trabalho há bons números, com a taxa de desemprego em níveis historicamente baixos, o que é um fator positivo. Mas, a sensação de aperto no orçamento persiste. A alta dos preços, especialmente de alimentos, impacta negativamente no poder de compra das famílias. Se, por um lado, a inflação limita o consumo dos chamados bens-salário, por outro, as elevadas taxas de juros comprometem a demanda por bens duráveis e tendem a aumentar o nível de endividamento das famílias. Essa combinação, ao reduzir o poder de compra, leva a mudanças no comportamento financeiro dos consumidores.
Em resumo, o cenário econômico brasileiro, embora apresente sinais positivos em alguns indicadores, enfrenta desafios que afetam o poder de compra do consumidor. Isso leva a um comportamento mais cauteloso e racional nas decisões de compra, com priorização de gastos essenciais e busca por alternativas mais econômicas.
CM: Na sua visão, quais fatores explicam o crescimento da inadimplência mesmo em um contexto de digitalização financeira e maior acesso a ferramentas de controle de gastos?
Apesar dos avanços na digitalização financeira e da popularização de ferramentas de controle de gastos, como aplicativos de finanças pessoais, bancos digitais e carteiras inteligentes, a inadimplência continua elevada no Brasil por uma combinação de fatores estruturais e conjunturais. Um dos principais fatores se refere a taxa de juros real, que segue elevada, o que encarece o crédito. Além disso, produtos de crédito como o rotativo do cartão e o cheque especial continuam sendo amplamente usados por uma parcela vulnerável da população, muitas vezes sem pleno entendimento do custo envolvido.
Importante citar também que, embora o acesso à informação tenha aumentado, o uso efetivo das ferramentas financeiras requer uma base mínima de educação financeira. Muitos brasileiros ainda não têm o hábito de planejar o orçamento, comparar custos de crédito ou entender a diferença entre preço à vista e financiado. Outro item que cabe citar é que a digitalização trouxe agilidade, mas também aumentou a exposição ao crédito fácil, muitas vezes sem avaliação adequada da capacidade de pagamento do consumidor. A concessão de crédito por canais digitais e fintechs, embora positiva em termos de inclusão, pode contribuir para o superendividamento.
Por fim, eventos como reajustes inesperados de preços administrados (energia, combustíveis), perdas de renda temporária ou gastos imprevistos (como saúde ou educação) também contribuem para o desequilíbrio orçamentário e o crescimento da inadimplência.
Riscos e transformação
CM: O crescimento de modalidades como BNPL (Buy Now, Pay Later) e o imediatismo digital aumentam o risco de inadimplência no Brasil? Qual a sua visão sobre isso?
Sim, o crescimento de modalidades como o BNPL e o imediatismo digital pode, de fato, aumentar o risco de inadimplência no Brasil. Especialmente em um cenário de fragilidade econômica, alto endividamento das famílias e educação financeira ainda limitada para boa parte da população. O avanço dessa modalidade e o imediatismo digital têm um papel duplo: democratizam o acesso ao consumo, mas exigem maturidade financeira para não se tornarem armadilhas de endividamento. Em um contexto de inflação, juros altos e renda pressionada, esses fatores ampliam a vulnerabilidade do consumidor e podem contribuir para o aumento da inadimplência – especialmente entre jovens e classes de menor renda.
CM: O crédito é um fator crucial para o consumo e crescimento econômico. Você acredita que o modelo tradicional de concessão de crédito está esgotado no Brasil?
O modelo tradicional de crédito no Brasil ainda é altamente baseado em garantias formais, score de crédito e histórico bancário, o que exclui milhões de brasileiros do acesso ou os coloca em condições extremamente onerosas. Isso leva a taxas de juros elevadas, mesmo em modalidades consideradas “seguras”, como o consignado ou o financiamento de veículos, porque o risco percebido é alto e a inadimplência estrutural é significativa. O crescimento de fintechs, bancos digitais, e crédito baseado em dados alternativos (como comportamento digital, histórico de PIX, e outros) mostra que há uma busca por modelos mais dinâmicos e personalizados.
O próprio Open Finance e o Cadastro Positivo caminham nesse sentido: compartilhar dados mais amplos e atualizados para melhorar a avaliação de risco e a oferta de crédito sob medida. O modelo tradicional de crédito no Brasil não está completamente superado, mas claramente precisa ser transformado. A realidade socioeconômica do País exige formas mais flexíveis, inclusivas e inteligentes de concessão de crédito, baseadas em dados mais amplos, tecnologia e compreensão mais profunda da capacidade de pagamento real dos indivíduos.
Crédito 4.0
CM: Qual o papel dos dados alternativos e do “score invisível” para promover o Crédito 4.0? E qual a importância dessa inteligência sobre o consumidor para a recuperação do crédito e redução da inadimplência?
A utilização de dados alternativos e o conceito de “score invisível” são peças-chave para viabilizar o chamado Crédito 4.0 – uma nova abordagem de concessão de crédito baseada em inteligência de dados, tecnologia e inclusão financeira. Eles são especialmente relevantes no contexto brasileiro, marcado por alta informalidade e exclusão do crédito tradicional.
Resumindo, são fundamentais para um sistema de crédito mais inteligente, inclusivo e sustentável. Eles transformam o modelo de crédito reativo e excludente em algo proativo e personalizado, com potencial de ampliar a base de tomadores, reduzir a inadimplência estrutural e fomentar o crescimento econômico com inclusão.
CM: Como o crédito pode ser um instrumento de inclusão e estímulo ao consumo consciente no Brasil?
O crédito, quando bem desenhado e utilizado, pode ser um instrumento poderoso de inclusão financeira e promoção do consumo consciente. Especialmente no Brasil, onde milhões de pessoas ainda enfrentam barreiras no acesso ao sistema financeiro tradicional.
No Brasil, o crédito pode – e deve – ir além do financiamento do consumo imediato. Ele tem potencial para ser inclusivo, ao integrar populações fora do sistema tradicional; responsável, ao ser ofertado com base em dados, perfil e capacidade de pagamento; e transformador, ao apoiar educação, geração de renda e consumo consciente. No entanto, isso exige ações combinadas entre setor público, instituições financeiras, fintechs e sociedade civil: com regulação adequada, inovação tecnológica e educação financeira contínua.
CM: Quais setores da economia tendem a ser mais beneficiados por uma evolução do crédito no Brasil e quais podem ser mais impactados caso a inadimplência continue alta?
A evolução do crédito no Brasil pode ter efeitos assimétricos entre os setores econômicos – beneficiando fortemente segmentos ligados ao consumo e investimento quando o crédito é acessível e sustentável, mas afetando negativamente setores mais sensíveis ao risco de inadimplência em cenários de endividamento elevado. Alguns dos setores que poderiam ser beneficiados com a evolução do crédito são o comércio varejista, construtoras e fintechs. Por outro lado, a manutenção da alta inadimplência afetaria negativamente o comércio varejista, a construção civil e segmentos de prestação de serviços como telecomunicações e educação.
Entrevista publicada no Consumidor Moderno.