Há menos de um mês, em 12 de janeiro, neste mesmo espaço, no artigo intitulado "Euforia", chamei a atenção para a fragilidade do otimismo que havia tomado conta da economia brasileira: os indicadores de renda e emprego não melhoraram, a dívida pública continuava em patamares preocupantes e a estabilidade recém-conquistada parecia estar ameaçada. Não passaram 30 dias e o clima de grande otimismo deixou de existir. Surgiram indícios de remarcações de preços causadas pelos impactos inflacionários da alteração na cobrança da Cofins. Em seguida, a continuidade da estabilidade de preços foi posta em dúvida pelo Banco Central em sua fatídica ata que não endossou nova redução da taxa Selic. Rapidamente a euforia cedeu espaço à decepção. O desarranjo tributário causado por recentes alterações em alguns impostos foi um dos principais fatores determinantes dessa reviravolta. O tempo vem comprovando, até mais rapidamente do que se poderia imaginar, a tese que venho defendendo há anos: a de que, nas circunstâncias sociais, econômicas e culturais do Brasil, a substituição dos tributos cumulativos por incidências não-cumulativas é um erro que poderá produzir conseqüências inesperadas. Os defensores da não-cumulatividade do PIS/Cofins, profundamente decepcionados com os resultados práticos da adoção das medidas que vinham preconizando havia tanto tempo, rapidamente deslocaram o eixo do debate para a questão do exagero na fixação das alíquotas dos novos PIS e Cofins, que multiplicaram as alíquotas cumulativas por um fator igual a 2,53. Pretendem, com isso, fazer crer que a meta da não-cumulatividade é correta e que o erro se situa na ganância do governo, que pretende aumentar sua arrecadação a qualquer custo. Embora não se possa desqualificar o argumento sobre as intenções da administração, é preciso esclarecer que as alíquotas não-cumulativas atuais são equivalentes às alíquotas cumulativas anteriores, fazendo-se a devida correção para garantir a mesma base de incidência, como demonstrado em recente estudo da Receita Federal (nota Copat/Copan 88/ 2003). O aumento da arrecadação, segundo o documento, ocorreu porque o novo PIS/Pasep passou a gravar as importações, como aliás não poderia deixar de acontecer se se aceita a tese de que no comércio internacional a tributação deve ocorrer sempre no destino. Há que notar que a sistemática adotada pelo governo é inerente à técnica não-cumulativa da tributação. Em outras palavras, o governo está fazendo exatamente o que vários setores do empresariado nacional vêm defendendo há anos. Agora, contudo, eles são os primeiros a sofrer na carne os efeitos das propostas que preconizaram de forma irrefletida, quase preconceituosa, condicionada por raciocínios cerebrinos e distantes da realidade brasileira. Roberto Campos certa vez se referiu à intrigante distinção feita no Brasil entre dois tipos de cascata. Uma, tida como maligna, inclui os odiados CPMF, PIS e Cofins. Contra eles são disparadas as mais violentas críticas. Por outro lado, existem tributos cumulativos unanimemente aplaudidos e tidos como notáveis contribuições brasileiras à ciência tributária. São eles o Simples e o Imposto de Renda das empresas tributadas pela modalidade do lucro presumido. Cumpre observar que nesses dois casos a opção é exclusivamente das empresas e que, ao fazerem essa escolha, estão reduzindo suas obrigações tributárias. Merecem, portanto, rasgados elogios, ainda que, do ponto de vista técnico, o Simples e o IR sobre o lucro presumido sejam tributos em cascata tanto quanto a CPMF e a Cofins. As contradições encontradas nas análises sobre a reforma tributária são produto de uma campanha de massificação de mitos patrocinada por grupos de interesses. Como explicitado pelo economista Domério Nassar de Oliveira em um texto intitulado "Preconceito Tributário", "preconceitos se difundem por slogans, pela rotulação que inibe e ilude a opinião pública, confinando-a aos interesses de determinados grupos. O debate sobre a atual reforma tributária está contaminado por preconceitos que escondem conflitos entre lobbies de todas as espécies. O imbróglio resultante, não raro, leva seus principais interlocutores a afirmações contraditórias, conforme o momento ou o imposto específico em discussão". Na esteira dessa incrível esquizofrenia tributária, a alteração do PIS/Cofins, tornando-os não-cumulativos, terá profundas implicações distributivas e alocativas. Se, por um lado, a retirada da cumulatividade poderá favorecer os setores produtivos com fortes laços de complementaridade com outros setores fornecedores de insumos e matérias-primas, por outro essa medida implicará brutal elevação da carga tributária nas atividades do setor terciário, no qual a compra de insumos representa pequena parcela do faturamento bruto. Os impactos desestabilizadores dessas medidas são evidentes. A discriminação contra os prestadores de serviços é explícita, como pode ser verificado em uma declaração, dada a um jornal, de um alto dirigente da CNI (Confederação Nacional na Indústria) ao afirmar que "o setor empresarial vem defendendo nos últimos dez anos o fim da cumulatividade e tem consciência de que haveria impactos diferenciados". Trata-se de afirmação surpreendente, pois aquele órgão admite assim que já previa, e aceitava, que setores como os prestadores de serviços e o comércio, entre outros, poderiam ser fortemente prejudicados pelas medidas. Ao que parece, contudo, aquele organismo apenas passou a discordar do novo PIS/Cofins quando constatou que alguns ramos do setor industrial também poderiam ser prejudicados, fazendo-o mudar de posição e passar a criticar a não-cumulatividade da Cofins. O incidente Cofins não foi o único responsável pela inversão das expectativas. Mas certamente foi o estopim para a eclosão do atual clima de decepção e de incertezas.
MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.