Roberto Campos
Com sua inexcedível verve, Carlos Lacerda me acusava de ter suficiente capacidade de mistificação para transformar a política econômica do governo Castello Branco "de um Frankenstein em uma Vênus de Milo". Verifico que não tenho o monopólio dessa metamorfose, pois outro ex-ministro do Planejamento, o senador José Serra, que foi o relator da Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças da Constituinte de 1988, parece atribuir estética venusina ao Frankenstein tributário que dela resultou. É o que se depreende de seu artigo recente na Folha(14/10).
A Carta Magna de 88 foi um exercício de hiperfiscalismo, pois (a) criou cinco novas figuras tributárias, (b) instituiu uma colunata tributária em três níveis -o sistema convencional, o previdenciário-social e o sindical- com substancial incidência de bitributação e (c) desorganizou os investimentos na infra-estrutura pela supressão da participação federal em várias fontes tributárias.
Eliminaram-se os Fundos Rodoviário e de Eletrificação, cessou a tributação federal sobre minérios, sobre comunicações e sobre transportes interestaduais e intermunicipais, além da extinção subsequente da Taxa Rodoviária Única, que passou a ser o IPVA estadual.
Serra está certo em dizer que o sistema de impostos únicos "partilhados" vinha sofrendo deterioração ao longo do tempo, pelo represamento de alíquotas (tática antiinflacionária equivocada), por subsídios cruzados e sobretudo pela tendência federal de criar contribuições parafiscais (Finsocial, Pis/Pasep e Fupe) para evitar a partilha de receita com os Estados.
Mas o aconselhável seria uma cirurgia plástica e não uma amputação drástica da capacidade tributária federal. Descentralizadas as receitas sem descentralização de atribuições, o resultado previsível foi o colapso de investimentos federais na infra-estrutura. Para ilustração, os investimentos federais em transportes, que imediatamente antes da Constituição atingiam 0,6% do PIB, hoje representam menos de 0,2%. Após várias patéticas e frustradas tentativas de remendar os estragos da reorganização tributária de 1988, o ministro dos Transportes acaba de propor um imposto emergencial sobre o consumo de combustíveis. Constituir-se-ia um "Fundo Nacional de Transportes", que na prática ressuscitaria o sistema dos impostos partilhados.
O presidente Sarney chegou a proclamar o país "ingovernável", em resultado da nova Constituição. E tornou-se quase consensual entre os economistas a percepção de que a inflação passara de crônica a estrutural, e o déficit fiscal, de conjuntural a genético. Esse efeito "devastador" foi também reconhecido pelo tucano-mor FHC, que subordinou o lançamento do Real à prévia aprovação do Fundo Social de Emergência (hoje transformado em Fundo de Estabilização Fiscal), visando recuperar parte da receita transferida a Estados e municípios.
Pode-se assim dizer, curiosamente, que o esquema patrocinado pelo senador Serra como relator da Comissão Tributária da Constituinte é incompatível com a estabilização de preços!
É impossível negar que o maior beneficiário da reorganização tributária de 1988 foi São Paulo, pelo simples fato objetivo de ser o maior consumidor de energia, eletricidade, transportes e comunicações e de deter a maior frota de veículos. Os tributos anteriormente partilhados com a União, ou redistribuídos a outros estados segundo critérios de renda, população e território, passaram a ser cobrados, por meio do ICMS, como receita de âmbito puramente estadual. Além disso, as alíquotas dos antigos impostos energéticos foram elevadas para 25%. Se, apesar dessas vantagens, o crescimento anual da receita do Estado foi a "menor entre todos os Estados da Federação", como alega o senador Serra, isso só é explicável ou por uma crônica recessão ou por incompetência da exatoria, ou uma combinação de ambas... O fato de ser São Paulo hoje o Estado mais endividado, representando 59% do programa federal de consolidação de dívidas estaduais, simplesmente demonstra um paradoxo: seu setor privado é o mais evoluído do país e seu setor público, dos mais desorganizados.
São Paulo sempre foi para mim um mistério cultural. É o fulcro dinâmico do capitalismo brasileiro, mas produz ministros anticapitalistas. O "Plano Cruzado", de Dilson Funaro, o primeiro dos "planos heterodoxos" da década perdida, foi uma agressão à economia capitalista.
Congelando preços, salários e câmbio, redundou num dirigismo estatal incompatível com a lógica do mercado. E logo a seguir proclamou-se a moratória unilateral da dívida externa, grotescamente chamada de "moratória soberana". Essa lesão de nossa credibilidade internacional até hoje nos aflige, pois passados dez anos continuamos pagando juros e "spreads" mais altos que países economicamente mais débeis.
Se Funaro desorganizou o sistema de preços, Zélia Cardoso de Melo, quatro anos depois, desferiria um golpe mortal no sistema de poupança por meio do sequestro temporário de ativos financeiros privados. Foi um pecado capital contra o capitalismo...
São Paulo é hoje o pivô de dois debates que revelam o recrudescimento de tensões federativas. O primeiro envolve um "diálogo de pássaros", ou seja, uma disputa entre dois tucanos, num diapasão às vezes estranho aos ouvidos de reles mortais. O tucano Covas exige compensação maior pela "perda de receitas" do ICMS em virtude da desoneração de exportações.
O tucano Kandir alega que os cálculos paulistas excedem a fórmula do "seguro de receita" aprovado em lei e que o governo paulista busca converter um "seguro de receita mínima" numa garantia de receita das previsões orçadas. Não é forte, certamente, a lógica dos governadores chorões. De um lado reconhecem que não se exportam tributos e que, por isso, se não desoneradas, nossas exportações perderiam competitividade e tenderiam à estagnação ou ao declínio.
Ao mesmo tempo, pleiteiam a manutenção das receitas projetadas como se esse efeito negativo não ocorresse. Isso se parece com o caso da mulher que só consente na ablação do útero canceroso se o médico lhe garantir que a procriação não será afetada...
A outra tensão federativa tem a ver com o acordo de saneamento fiscal e consolidação da dívida paulista, ora em exame no Senado.
Segundo o relator, senador Waldeck Ornellas, representantes de Estados mais pobres se perguntam: 1) se é justo que São Paulo (que hoje responde por 36% a 37% do PIB) represente 59% do estoque total de dívidas que o Tesouro consente em refinanciar; 2) se o comprometimento da receita líquida real do Estado mais rico deva se limitar a 13%, quando Estados mais pobres (Pará, Sergipe, Mato Grosso, Rondônia e Goiás) acordaram num comprometimento de 15%; 3) se o prazo de amortização de 30 anos concedido a São Paulo não é um prêmio à irresponsabilidade financeira, dado que Estados mais carentes como Pará, Pernambuco, Piauí e Rondônia tiveram rolagem de apenas 15 anos; 4) se, além do subsídio "implícito" dado a todos os Estados pelos juros reais de 6% ao ano (metade do custo efetivo pago pelo Tesouro ao mercado), São Paulo merece um subsídio "explícito" de R$ 3,8 bilhões, representado pela diferença entre o valor da dívida assumida pela União e a dívida refinanciada pelo Estado de São Paulo?
Há também quem questione a relativa benemerência do governo central em facilitar a esse Estado reter para privatização seus ativos mais rentáveis -como os de eletricidade e gás, entregando ao governo federal, a título de amortização antecipada, apenas ativos de difícil monetização, como Fepasa e Banespa. Isso parece reforçar o brocardo popular de que o credor é "prepotente" face ao pequeno devedor e "impotente" face ao grande devedor...
Num ponto o senador Serra não comete injustiça. É ao dizer que em minha "Lanterna na Popa" há "muita energia e pouca luz". Só que essa luz foi suficiente para que eu antevisse, com décadas de avanço, a vitória do capitalismo liberal e das economias de mercado, enquanto o ilustre senador se entregava a farras ideológicas juvenis na UNE, defendendo doutrinas de nacional-estatismo e proto-socialismo que hoje passaram (merecidamente) ao lixo da história...
Roberto Campos, 80, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).