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  • Marcos Cintra

Economia digital e tributação (II)


Marcos Cintra

Doutor em Economia pela Universidade Harvard (EUA)

e professor titular da Fundação Getulio Vargas.


O Imposto sobre Movimentação Financeira (IMF), por sua universalidade de incidência e facilidade de arrecadação, possibilita a substituição de impostos e contribuições de natureza declaratória por uma aplicação sobre transações bancárias. Pode ser utilizado tanto como um substituto pontual de tributos de baixa produtividade e alto custo, quanto, em sua forma mais radical, como um imposto único. Os tributos declaratórios convencionais seriam extintos e a receita que eles gerassem seria obtida mediante a criação de um único imposto, incidente sobre as transações bancárias realizadas nas contas movimento dos clientes.


A adoção do IMF será acompanhada de um tratamento diferenciado em relação à transação envolvendo moeda em espécie e aos mercados financeiros. Em relação ao segundo caso, haverá uma conta investimento na qual o dinheiro irá circular sem a incidência desse tributo, sendo cobrado o Imposto de Renda sobre os ganhos das aplicações. Apenas quando esse dinheiro retornar para operações na conta movimento, o IMF voltaria a incidir. Quanto ao primeiro caso, a proposta prevê a cobrança de uma alíquota adicional sobre os saques e depósito para compensar o período que, em média, o papel­moeda ficará em circulação até seu retorno para o sistema bancário. Ademais, cabe esclarecer que a aplicação do IMF exigiria proteção legal, no sentido de tornar obrigatória a circulação pelo sistema bancário de qualquer operação comercial para que ela tenha validade e legitimidade. A ideia é extinguir tributos como:


1. Federais:

a) IRPF;

b) Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ): lucro real e presumido;

c) Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL): lucro real e presumido;

d) INSS sobre folha de pagamentos, produção rural, faturamento e outros;

e) Salário-­Educação;

f) Sistema S;

g) IPI;

h) Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide);

i) Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguros (IOF);

j) Cofins (cumulativa e não cumulativa);

k) Simples; e

l) Outros impostos e contribuições.


2. Estaduais:

a) ICMS;

b) Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA); e

c) Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).


3. Municipais:

a) ISS;

b) Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU); e

c) Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).


Da atual carga tributária brasileira, que corresponde a 33% do PIB, os tributos substituídos pelo IMF representam cerca de 26% do PIB. Permaneceriam existindo impostos necessários para a execução da política industrial, como: i) os incidentes sobre comércio exterior; ii) as contribuições previdenciárias individuais dos servidores públicos e para o INSS; iii) as taxas; vi) os tributos que se configuram como poupança do trabalhador, como é o caso do FGTS; v) o Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT); e vi) o Imposto de Renda sobre o mercado financeiro. Esses tributos equivalem a 7% do PIB.


A reforma tributária: Imposto sobre Valor Agregado (IVA) e os críticos do IMF


A disfuncionalidade da estrutura tributária brasileira é um consenso entre os que a avaliam. Porém, há duas vertentes de pensamento quanto aos modelos alternativos: uma propõe unificar tributos sobre uma base tradicional e restrita que é o valor adicionado, criando um IVA, e outra defende uma base ampla e inovadora para essa fusão que são os pagamentos nos sistemas eletrônicos bancários, o IMF.


Há tempo tem­se observado nos meios de comunicação em geral uma sucessão de comentários e críticas dos adversários do IMF. Os defensores do IVA dizem que essa é uma forma de tributação que não provoca distorções na atividade produtiva e que no final o consumidor é que arca com o ônus.


Em relação ao IMF rotulam­no como um imposto ruim, mas não apresentam evidências técnicas nesse sentido. Em relação ao IVA a afirmação de que ele não causa distorções demanda uma situação onde sua alíquota deve ser universal, não haja qualquer tipo de exceção e a sonegação não exista. Em termos de alíquota estima­se, por exemplo, em 25% a 32% no caso da PEC 45/2019 em discussão na Câmara dos Deputados. Primeiramente vale ressaltar que esse patamar seguramente irá impactar significativamente sobre o setor de serviços, que representa 73% do PIB brasileiro, é o maior gerador de empregos e o grande fornecedor da indústria do país. Ou seja, ainda que traga alguma economia operacional na gestão tributária para o setor produtivo em razão da unificação tributária, o IVA aumenta fortemente o ônus para prestadores de serviços, cujo principal insumo, a mão de obra, não gera crédito tributário, e esse custo irá se propagar para toda a atividade produtiva. Na hipótese de aplicação de uma alíquota menor para os serviços a ideia de não causar distorção na produção desmorona ao perder­-se o conceito de unicidade de alíquota para garantir neutralidade.


Ainda em relação à alegação de que o IVA não causa distorção na produção vale lembrar que a sonegação é uma realidade que não será enfrentada com tributos declaratórios e com alíquotas elevadas. Mesmo frente ao argumento de que haveria auto-fiscalização com esse tipo de imposto o prêmio para o sonegador com uma alíquota de 25% ou mais seria extraordinário. Por fim, cabe afirmar que a alegação que o consumidor é quem efetivamente arca com o custo do imposto não encontra respaldo econômico. A adição da tributação sobre os preços livres de impostos tem impacto sobre a oferta do produtor. Os preços se elevam e uma parte do imposto é pago pelo consumidor e outra recai sobre o ofertante por meio de preços recebidos menores. Numa situação onde a demanda é mais elástica, a incidência do imposto recai mais sobre o produtor. Contrariamente, a oferta mais elástica impõe maior ônus para o consumidor. Nessa questão o ponto a ser ressaltado é que todo tributo tem efeito sobre a produção e um debate em alto nível deve comparar qual forma de tributação causa menor impacto sobre a atividade produtiva.


Comparando os impactos que o IVA e o IMF provocam na atividade produtiva torna­-se oportuno definir uma alíquota equivalente para o IMF frente ao IVA universal de 25%, como proposto na PEC 45/2019. Tendo uma base eletrônica de pagamentos de mais de R$ 30 trilhões nos bancos o IMF precisaria de uma alíquota de 1,4% incidindo no débito e no crédito de cada lançamento nas contas bancárias para substituir os tributos que o IVA propõe. Assim, com base numa matriz de relações intersetoriais com 128 setores, o IVA causaria um ônus médio de 36,67% frente aos 9,55% do IMF, isto é, 74% menor. Quanto à distorção que ambos provocam no IVA ela seria de 4,56% e no IMF de 1,58%.


Portanto, o IMF é um tributo menos distorcivo que o IVA. É uma conclusão baseada em avaliações empíricas.


Além de comparar os sistemas, é preciso desmistificar uma série de ataques que tributos como o IMF vem sofrendo de modo contundente, mas sempre sem respaldo técnico. Dizem que ele é cumulativo, onera o mercado financeiro, não permite desonerar exportações, estimula a verticalização e provoca desintermediação.


Quanto à cumulatividade, essa característica costuma ser potencializada por meio de raciocínio primário que simplesmente soma uma quantidade de etapas produtivas e encontram um produto utilizando uma determinada alíquota. O fato é que cadeias produtivas não podem ser definidas como curtas ou longas. Elas são infinitas. Matérias­-primas se combinam com insumos num processo sem fim e o que determina a carga de tributos cumulativos é a relação dos insumos e do valor agregado. Quanto mais é agregado valor a um insumo menor será o peso do imposto, e considerando que um tributo do tipo IMF tem alíquota reduzida a carga tende a ser muito baixa. Por exemplo, um IMF de 1% no débito e no crédito em um setor que agrega 10% (hipótese meramente ilustrativa) em cinco etapas tem 9% de imposto e em dez etapas há 13% de imposto. Já com a mesma alíquota e agregando 100% (observado no mundo real) em cinco etapas há 3,81% de tributação e em dez etapas, 3,86% de tributo. O fato é que o total de impostos cai expressivamente com maior valor agregado e se torna imperceptível em cinco ou seis elos da cadeia.


Vale citar que os IVAs comportam em todos os lugares do mundo em que são praticados diversos regimes especiais, o que lhes confere graus apreciáveis de cumulatividade. Além disso, cumpre lembrar que o Brasil tem uma série de tributos cumulativos, entre os quais alguns são odiados (parte do PIS/Cofins), outros tolerados (ISS, parte do ICMS e do IPI) e outros ainda apreciados, como se não fossem cumulativos (IRPJ presumido e Simples). A tributação sobre movimentação financeira não é diferente deles sob esse aspecto, mas exibe vantagens como a simplicidade, o baixo custo e a total ausência de contencioso.


Quanto ao mercado financeiro, é muito estranho os críticos não atentarem para o que ocorreu no Brasil entre outubro de 2004 e 2007 quando a Lei no 10.892/2004 criou a conta­-investimento para isentar os investidores da incidência da CPMF. Muito simples isto. As aplicações continuarão pagando o Imposto de Renda sobre os ganhos como ocorre atualmente. Em relação às exportações, um IMF permite que se obtenha o peso do tributo em cada produto a partir de uma matriz intersetorial utilizada para calcular os impactos sobre os preços. A partir dessa informação, basta destinar créditos aos exportadores por meio de rebates fiscais.


No tocante ao estímulo à verticalização, vale questionar aos críticos se eles acham que uma empresa deixará de focar seu negócio principal (core business) e investir pesadas somas para expandir suas plantas apenas para economizar 1% ou 2% de imposto. Certamente que não. O processo decisório pende para questões de natureza tecnológica, como ganhos de especialização e de escala, em relação às quais o IMF é irrelevante. Difícil imaginar, por exemplo, uma montadora de automóvel voltar a produzir aço, borracha, pneu e vidro para fugir do tributo.


Por fim a desintermediação: dizem os críticos que um IMF fará com que as pessoas e empresas vão deixar de utilizar os bancos e trabalhar com dinheiro. Afirmam eles que em outros países isto teria ocorrido. Primeiramente é falsa a afirmação que esse tipo de tributo gerou monetização. Na Argentina a arrecadação é constante desde 2002 com alíquota de 0,6% em cada lado de uma operação bancária. Na Colômbia o tributo com alíquota de 0,3% em 2001 e 0,4% a partir de 2004 manteve-­se inicialmente em 0,7% do PIB e depois saltou para 0,9% do PIB e aí se manteve. No Peru a receita foi declinante em razão de a alíquota ter sido reduzida de 0,15% para 0,005% para se tornar um instrumento de fiscalização contra a sonegação.


Quanto aos possíveis estímulos ao uso de dinheiro em espécie cabe lembrar que hoje os setores de serviços, o comércio e a indústria o prêmio ao sonegador pode ir de 26% a 37% em razão dos atuais tributos. Por que com cerca de 2% de um IMF haveria maior incentivo?


Além disso, vale a pena uma empresa utilizar um carro forte para pagar seus fornecedores e receber de seus clientes para economizar o IMF? Andar com sacolas de dinheiro há riscos de roubo, perda e falsificações. Também vale dizer que todo esse “estímulo” que os críticos dizem pode ser enfrentado com medidas dissuasivas como a cobrança de alíquotas dobradas nos saques e depósitos de dinheiro em espécie, tornar obrigatório as transações transitarem pelos bancos para terem reconhecimento jurídico, como é exigido hoje com as notas fiscais (quem se arriscaria a não usar bancos e eventualmente precisar executar judicialmente um fornecedor se a transação não tem legalidade?). E ainda é possível retirar de circulação cédulas de valor elevado como as de R$ 50 e de R$ 100.


Adicionalmente, os críticos da tributação sobre a movimentação financeira levantam a questão da possibilidade das criptomoedas substituírem as moedas nacionais. Sem dúvida que a ameaça é real, mas ela diz respeito a qualquer sistema tributário, seja eletrônico, cumulativo, declaratório ou sobre o valor agregado. O impacto potencial das moedas digitais vem sendo analisado por instituições como os bancos da Inglaterra e do Canadá, o Federal Reserve e o Departamento do Tesouro nos Estados Unidos e controles devem disciplinar seu uso visando preservar a capacidade de arrecadação pública.


O Brasil demanda uma reforma tributária em sintonia com a economia globalizada e digital. O IVA foi uma inovação no início do século passado quando a economia era regional e a tecnologia, analógica. Hoje ela está cada vez mais desmaterializada e é cada dia mais impossível definir fato gerador e base de cálculo que viabilize o IVA. Trata­-se de um tributo anacrônico e que gera mais distorções comparativamente a um IMF.


O IMF é uma forma de tributação que atende às necessidades da economia moderna, garante receita estável para o poder público e permite baixo ônus para os contribuintes. Seus opositores insistem em críticas que efetivamente não se sustentam.


Considerações finais


Parte expressiva do pensamento tributário contemporâneo estacionou em teorias e dogmas vigentes em meados do século passado, mantendo-­se presa a conceitos e princípios ultrapassados que não se ajustam ao mundo contemporâneo. Ainda que os métodos administrativos de controle e a atividade do Fisco tenham sido operacionalmente modernizados, as estruturas conceituais sobre as quais estão assentados os paradigmas usualmente defendidos nas propostas convencionais de reforma tributária continuam em grande parte em desacordo frente à realidade do novo modo de produção e circulação de bens e serviços que surge na sociedade atual.


O antigo paradigma fordista de produção industrial ainda inspira os modelos tributários convencionais, a exemplo dos métodos de arrecadação e controle baseados no sistema autodeclaratório com auditoria. No Brasil, a ausência de sintonia entre o pensamento tributário­-burocrático vigente e o mundo real permeou as discussões sobre a reforma tributária ao longo dos últimos anos e hoje se mantém quando o tema volta à tona. Nos últimos anos, medidas isoladas atingindo questões tributárias pontuais visaram, sobretudo, aumentar a arrecadação sem que aspectos relacionados à eficiência alocativa dos recursos econômicos fossem levados em consideração. Nestas condições, tais iniciativas foram na contramão das necessidades do país. Não houve simplificação, custos não foram reduzidos e a iniquidade se aprofundou.


O cenário econômico global, baseado na tecnologia digital, exige uma forma de tributação inovadora, como o IMF, que traz inúmeras vantagens. A fiscalização torna­-se mais simples, os critérios de taxação ficam mais transparentes e os custos por parte do poder público, e principalmente do setor produtivo privado, tornam­-se menores. A simplificação do processo fiscal é evidente quando toda a arrecadação se concentra em um único tributo, incidente sobre uma única base que dispensa declarações, guias e controles burocráticos.


O IMF eliminaria virtualmente a sonegação, a corrupção fiscal e a economia informal, com custos administrativos ou de fiscalização pouco significativos. A arrecadação tributária seria efetuada automaticamente a cada lançamento de débito e de crédito no sistema bancário, e, a cada transação, a conta credora e a conta devedora seriam debitadas em uma porcentagem fixa. Assim, em toda transação efetuada mediante cheque, cartão magnético ou qualquer outro tipo de ordem de pagamento, o sistema automaticamente transferiria o produto de arrecadação à conta dos Tesouros federal, estaduais e municipais, segundo critérios predefinidos.


Em resumo, o IMF é uma forma de tributação inovadora, em sintonia com a sociedade moderna, capaz de gerar expressivos ganhos de eficiência na condução da política fiscal do país e de desonerar a produção doméstica e os salários. Transformá-lo como base da estrutura tributária do país criaria uma viga mestra para que a economia brasileira possa alcançar a almejada retomada do crescimento econômico de longo prazo.




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