Reforma tributária como está não traz benefícios ao Brasil, diz Marcos Cintra
Em entrevista à Jovem Pan, ex-secretário da Receita afirma que taxação de dividendos afasta investidores e prejudica a competitividade; apesar de críticas, economista diz que texto do Congresso corrige erros da versão original
Por Gabriel Bosa A nova versão da reforma tributária apresentada pelo deputado Celso Sabino (PSDB-PA), relator do projeto na Câmara dos Deputados, não traz benefícios para a economia brasileira, afirmou o economista e ex-secretário especial da Receita Federal, Marcos Cintra. Pelo contrário, a manutenção da taxação de 20% sobre os dividendos — conforme proposto pelo Ministério da Economia — arrisca prejudicar a competitividade do país, afastar os investidores internacionais e desestimular a produção interna. “Nós estaremos introduzindo uma distorção no sistema econômico. A sistemática brasileira era mais eficiente”, disse em entrevista à Jovem Pan. As mudanças no Imposto de Renda para Pessoas Físicas (IRPF), outro ponto mantido pelo deputado que já constava no original, também é classificado como um equívoco. “A essência do projeto são dois: tributar dividendos e corrigir a tabela [do Imposto de Renda]. Acredito que esses dois objetivos, da forma como estão sendo feitos, precisam de uma avaliação melhor.” Apesar das críticas, o antigo auxiliar de Paulo Guedes afirma que o texto modelado por Sabino corrige erros da proposta original desenhada pela equipe econômica. “Ele [o relator] fez uma faxina de coisas desnecessárias e polêmicas que não deveriam estar lá. Fez uma revisão grande de uma possível elevação da carga tributária”, disse o economista. As restrições de Cintra não se limitam a formatação do texto. Para o ex-secretário, o governo não trabalha a reforma tributária de um jeito amplo e não sabe onde quer chegar com as mudanças. “O governo está discutindo a reforma tributária de uma forma fragmentada. Ninguém tem uma visão do conjunto, e isso está errado”, diz. A solução seria engavetar o que foi feito até agora e recomeçar as discussões com a formação de uma comissão especial. Segundo Cintra, em aproximadamente três meses, esse “grupo de notáveis” conseguiria apresentar propostas mais adequadas. “Assim, iniciaríamos um debate amplo para fazer uma verdade reforma tributária. Isso que está sendo feito são correções parciais e isoladas que vão criar mais problemas que soluções.” A origem dos principais erros foi concentrar as mudanças na Receita Federal, avalia o ex-responsável pela área, o que levou a uma mudança liderada pela “burocracia arrecadatória”. “Na questão tributária, a Receita assumiu um papel que não cabe a ela”, afirmou. Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Marcos Cintra:
Qual a análise que o senhor faz do texto preliminar? O primeiro estava enviesado de detalhes operacionais, de restrições a atividades e a tributação de empresas, e isso foi sanado no relatório do deputado Sabino. De certa forma, houve uma melhora. Mas os principais pontos do projeto ainda continuam lá, que é a tributação de dividendos e a questão de Juros sobre Capital Próprio, e a correção da tabela da pessoa física. Nesses dois itens, que são fundamentais do projeto, ainda existem falhas técnicas gritantes que vão precisar ser corrigidas, além de algum debate sobre a essência das medidas. A tributação de dividendos é muito polêmica e acho que não deveria ser mexida frente ao quadro atual que nós temos.
O texto do relator corrige os erros que o ministro cometeu na proposta encaminhada ao Congresso? Ele corrige vários erros. Todos aqueles penduricalhos que a Receita aproveitou o momento para enfiar nesse projeto, pleitos que estavam sendo feitos há muito tempo, sem sucesso, o deputado retirou. A essência do projeto são dois: tributar dividendos e corrigir a tabela [do Imposto de Renda]. Acredito que esses dois objetivos, da forma que estão sendo feitos, precisam de uma melhor avaliação. O que eu tenho sugerido é que o governo faça o que qualquer país, e que o Brasil, sempre fez: uma reforma tributária tem que ser ampla, integrada, que considere todos os impostos. É um sistema com partes comunicantes. A gente mexe em um pedaço, atrapalha outro, então é preciso ter uma visão global. Para elaborar um projeto como esse, deveria ser criada uma comissão de especialistas independentes, que não representem nenhum setor. Essa seria uma solução de bom senso. Paralisar o processo, criar uma comissão independente de pessoas notáveis e respeitadas, que em um prazo de três meses apresentem um projeto. Assim iniciaríamos um debate amplo para fazer uma verdadeira reforma tributária. Isso tudo que está sendo feito são correções parciais, isoladas e que vão criar mais problemas do que soluções.
As mudanças atendem às demandas dos empresários? Sim. O relatório melhorou o projeto. Fez uma faxina de coisas desnecessárias e polêmicas que não deveriam estar lá. Fez uma revisão muito grande de uma possível elevação de carga tributária. O projeto melhorou muito, mas ainda existem dois erros técnicos fundamentais que é a forma de correção da tabela do Imposto de Renda para Pessoas Físicas e a questão da tributação de dividendos e dos Juros sobre Capital Próprio. A reforma tributária incluindo a taxação de dividendos não traz benefícios para a economia do país? Nenhuma. O próprio governo está cedendo para compensar o aumento da distribuição. Já se fala em reduzir 12,5 pontos percentuais a tributação do Imposto de Renda para Pessoas Jurídicas. O governo está tirando de um lado e dando de outro. A tributação vai ficar, eventualmente, a mesma. Mas está errado, porque existe uma distorção. Quando o lucro é gerado, ele tem duas destinações. Primeiro ele é tributado na geração, depois ele pode ser retido ou distribuído. Nós estaremos introduzindo uma distorção no sistema econômico. A sistemática brasileira era mais eficiente.
O que faltou na reforma? Faltou tudo. Reforma tributária tem que ser uma reforma sistêmica. No Brasil, a última comissão de alto nível criada para elaborar um projeto de reforma tributária foi em 1992, mas que não teve continuidade a partir do impeachment do presidente Collor. De lá para cá, nenhuma comissão de alto nível foi criada. É disso que nós precisamos agora, afinal de contas, o momento é inoportuno para uma alteração mais drástica do sistema tributário. Estamos tentando sair de uma pandemia e, nesse ínterim, poderíamos pensar em uma reforma tributária global, abrangente, feita por técnicos independente e sem interesses específicos para defender qualquer setor.
A reforma diminui ou aumenta a carga tributária? Essa é uma pergunta que nós não deveríamos estar discutindo. Seria obrigação do governo e da Receita Federal apresentar à sociedade números e planilhas abertas. Até hoje nós fomos apresentados com números que não encontram justificativas em qualquer relatório mais denso e tecnicamente justificável. O governo está pecando por falta de transparência nos debates, os números são apresentados de maneira muito superficial.
O fatiamento em etapas foi uma boa saída? É como escrever um livro. É preciso ter noção do que se quer escrever e depois fazer capítulo por capítulo. É preciso ter uma diretriz geral. Nós não sabemos onde o governo quer chegar com a tributação da Pessoa Física, com a Jurídica, com a questão da tributação do consumo, com a tributação do PIS/Cofins. Estamos, simplesmente, andando no escuro. É preciso ter uma visão do conjunto. Nada contra se fazer etapa por etapa, mas desde que seja dentro de uma visão planejada, coerente e consistente, e não da forma caótica como está sendo feito. É como um caleidoscópio onde as coisas vão caindo dependendo de como se vira o objeto. É uma reforma tributária que vai trazer muitas distorções no nosso sistema, piorar o que é menos ruim e introduzir muitos erros no que está funcionando bem.
E o governo sabe para onde quer ir? Não. O governo está pensando de maneira muito fragmentada, está olhando problemas específicos para resolver problemas pontuais e atender demandas políticas e imediatas, mas não está analisando o sistema tributário como um todo, que é o que um governo eficiente deveria estar fazendo. A reforma vai de encontro com o que havia sido discutido pela equipe econômica no início do governo? A reforma tributária foi controlada pela corporação da Receita Federal. Eu tenho o maior respeito por eles, são profissionais competentes, mas não são formuladores de política econômica, eles são arrecadadores de impostos, entendem da sistemática de funcionamento de empresas, contabilidade empresarial. Montar a política tributária não é a função da Receita. Na questão tributária, a Receita assumiu um papel que não cabe a ela. Evidentemente, o ministro permitiu que isso acontecesse, e nisso está a fonte de alguns dos mais importantes erros que estão sendo cometidos.