Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque
DA EAESP/FGV
Este artigo apresenta critérios que permitem destacar do total dos gastos do governo aqueles que são orientados para o atendimento da população de baixa renda (chamados de gastos sociais). Ao não incorporar essa distinção, os dados apresentados pelo governo (e também por instituições como o Banco Mundial) não permitem avaliar a verdadeira prioridade social do governo. Utilizando a conceituação de "gastos sociais" contida no artigo e tomando setores da habitação e do saneamento como exemplos, é possível demonstrar que a política social do governo brasileiro não tem sido orientada no sentido de suprir as necessidades da população carente, mas sim as das camadas de classe média.
I - INTRODUÇÃO
A análise dos gastos públicos nas atividades consideradas "sociais" no Brasil revela uma situação de grande ineficácia, de iniquidade e, acima de tudo, de imprecisão quanto aos objetivos a serem alcançados e à avaliação dos gastos efetuados.
Segundo o Banco Mundial (1988), o governo brasileiro, nos três níveis, gasta aproximadamente US$ 50 bilhões anuais em programas sociais, cerca de 18% do PIB, conforme os dados constantes da Tabela 1. Este padrão de dispêndio aproxima-se do observado em economias desenvolvidas (20,4% do PIB) e é significativamente mais elevado do que a média das economias em desenvolvimento (8,9% do PIB).
Ainda segundo o Banco Mundial, o padrão observado em 1986 não é atípico, ao menos no que se refere aos gastos federais, que, como percentagem do PIB, foram ainda mais elevados no período 1981/83 — quando superaram 10% do PIB — do que os observados em 1986 (9,4% do PIB). Porém, não obstante este volume de "gastos sociais", a população goza de baixos níveis de bem-estar.
Jaguaribe (1986) demonstra que 20,3% das famílias brasileiras vivem na miséria (caracterizada como tendo rendimento de até um salário mínimo mensal), enquanto que outras 24,3% vivem em estrita pobreza (até dois salários mínimos de rendimento). É preciso acrescentar a este quadro a extrema concentração pessoal da renda, bem como as enormes desigualdades regionais.
Outros trabalhos, como os relatórios sobre a situação social do país, produzidos pela Unicamp (1987 e 1988), evidenciam com meridiana clareza o fracasso do país em seus esforços para erradicar a pobreza e obter maior equidade na distribuição da renda e dos benefícios do crescimento econômico. Segundo dados da Seplan (1987), mais de 90 milhões de brasileiros sofrem de déficit alimentar, consumindo menos do que o nível calórico mínimo recomendado de 2.240 calorias/dia (FAO/OMS), e 55% das crianças de menos de cinco anos sofrem de desnutrição, sendo 86,5% no Nordeste.
Neste trabalho, apresentamos uma nova caracterização acerca do conceito de "gastos sociais", com o objetivo de estabelecer parâmetros capazes de dimensionar o impacto dos gastos do governo nas camadas mais vulneráveis da população. Com isso, espera-se evitar paradoxos como o notado acima, qual seja, o de um país que aparentemente aloca uma significativa parcela de sua renda em atividades ditas sociais, mas que, no entanto, padece de extrema miséria. Na realidade, ao não fazer a importante distinção dos gastos sociais dentre os demais gastos públicos (como explicitado na figura adiante), dados como os do Banco Mundial podem mascarar a realidade.
O que se pretende, apelando para os casos da habitação e do saneamento, é demonstrar que, ao adotar os critérios de classificação e análise aqui sugeridos, os "gastos sociais" nesses setores foram inexpressivos — apesar de as estatísticas oficiais mostrarem a alocação de vultosos recursos — e absolutamente ineficazes no sentido de suprir as necessidades das camadas mais vulneráveis da população. Nossa tese é que, no Brasil, não apenas se subordina a política social à política econômica, como sugere Azeredo (1988), mas também que se canaliza para programas efetivamente orientados à população carente um montante de recursos mais reduzido do que parece.
A CONCEITUAÇÃO DE "GASTOS SOCIAIS"
Considera-se como gastos sociais os dispêndios efetuados em programas que tenham como objetivo fundamental atender às necessidades básicas dos indivíduos menos privilegiados na distribuição de bens e serviços gerados pela sociedade. Esta conceituação se distingue das definições usualmente aceitas, que aqui são chamadas de "gastos em bens e serviços de uso social". A distinção adquire os seguintes contornos:
a) A caracterização de um "gasto social" ocorre ao nível da definição da população-alvo de um determinado programa, e não das características implícitas de cada tipo de ação. Assim, por exemplo, não se considera como "gasto social" um programa habitacional público (embora possa ser um gasto em bens ou serviços de uso social), exceto se for orientado especificamente para a população com renda familiar mensal de até três salários mínimos. O mesmo se aplica à política educacional, de saúde, de previdência e outras.
A classificação sugerida na figura adiante não pretende dar prioridade, em termos de importância para a sociedade, aos vários tipos de gastos do governo, mas sim tornar mais nítida a distinção em termos de impacto que causam nos diferentes segmentos econômicos da sociedade. Ao apresentar dados de programas sociais que não fazem essa distinção, dificulta-se a avaliação de sua eficácia como instrumento de atendimento à população de baixa renda. Para serem considerados como integrantes de um orçamento "social", torna-se necessário que os gastos sejam orientados para o atendimento de camadas populacionais carentes, previamente definidas e identificadas. Isto exclui automaticamente os dados apresentados pelo Banco Mundial e pelo governo brasileiro como bons indicadores da prioridade concedida pelo poder público ao atendimento dos segmentos de baixa renda, pois não fazem essa distinção.
b) Nestes casos, não se deve exigir do beneficiário de "gastos sociais" uma contrapartida integral para a cobertura de custos. Isso significa que um determinado programa poderá ser implantado com a cobrança parcial ou nula de custos. Cabe notar que idênticos serviços, se prestados a indivíduos não previamente identificados como carentes, devem implicar a cobertura integral de custos mediante cobrança de taxas, tarifas ou outros tipos de valores a título de contrapartida pela prestação desses serviços.
Os gastos sociais, como conceituados acima, revelam-se de primordial importância em pelo menos dois aspectos: em primeiro lugar, na medida em que, sendo prestados a segmentos carentes da população, sem a necessidade de qualquer contrapartida de cobertura de custos, tornam-se importantes fatores de correção da perversa distribuição de renda que caracteriza a economia brasileira (de fato, são componentes do "salário indireto" recebido por esses indivíduos); e, em segundo, na medida em que vários programas com tais características condicionam o potencial de concorrência da população carente em um mercado competitivo, corrigem-se as distorções na distribuição inicial de fatores de produção entre indivíduos (na realidade, trata-se de garantir a todos os indivíduos o acesso potencial aos bens e serviços gerados pela comunidade, dando-lhes condições menos desiguais de competição e aumentando seu potencial produtivo).
No Brasil, os chamados "programas sociais" não têm atendido a essas exigências, nem correspondido às expectativas neles depositadas. Têm falhado como programas de redistribuição de renda, da mesma forma que têm contribuído para aumentar o estoque de capital humano nas parcelas mais carentes da população.
Apesar da proliferação de planos e programas oficiais — apenas na Nova República os mais importantes já chegam a seis — o padrão de gastos do governo nas áreas consideradas "sociais" não satisfaz critérios mínimos de avaliação. Em geral, em todos os trabalhos de avaliação das políticas do governo nas áreas "sociais", são diagnósticos praticamente consensuais que os programas têm se caracterizado pelo excessivo centralismo, pela regressividade de seus mecanismos de financiamento, pelo burocratismo e pela ineficiência em sua implementação. Além disso, não têm sido orientados de forma adequada para o atendimento das necessidades básicas dos segmentos mais carentes da população, não podendo, em sua maioria, ser considerados "gastos sociais".
Por essas razões, e apesar da abundância de custosos planos e programas, a questão social no Brasil vem se agravando ano a ano. Segundo o relatório da Unicamp (1987, p. 26), "o espectro dos programas sociais no Brasil é hoje já bastante amplo. Teoricamente, estariam asseguradas as necessidades básicas dos trabalhadores e suas famílias, frente aos riscos de perda relativa de renda, desde o nascimento até a morte, passando por alimentação, nutrição, habitação, além de saúde e educação. Levantamento recente identificou, em 1984, programas sociais, incluindo os de caráter assistencial destinados às populações de baixa renda, mas sem considerar as iniciativas a cargo dos estados e municípios, particularmente abundantes nos primeiros anos da década. Apesar dessa extensão dos serviços e benefícios sociais, vale ressaltar desde logo os reduzidos valores de benefícios e a baixa qualidade dos serviços prestados."
A política social brasileira é mal dirigida ou mal orientada, no sentido de que, por força de várias distorções acumuladas no passado, acaba não chegando adequadamente aos grupos mais carentes da população. A origem dessas distorções está em uma política social voltada sobretudo para os participantes do mercado formal de trabalho.
Outra razão das distorções da política social brasileira é que ela parte da premissa de que todos os serviços providos pelo Estado devem ser gratuitos. Porém, por uma série de razões de caráter cultural e social, esses serviços acabam sendo acessíveis às classes de poder aquisitivo que não são as mais pobres da sociedade. Isso ocorre particularmente na educação e na saúde.
Para corrigir essas e outras distorções, propõe-se a adoção de um sistema de recuperação de custos em que as classes de maior poder aquisitivo passem a pagar pelos serviços prestados pelo Estado. Trata-se, portanto, de diferenciar claramente os serviços a serem prestados à população carente — que devem ser oferecidos sem contrapartida monetária — dos que irão atender a camadas da população com capacidade de pagamento. Não se trata de dar uma "lógica financeira" aos serviços sociais do governo, como alegado por Azeredo (1988), mas sim de gerar recursos de forma não regressiva para ampliar o atendimento das necessidades da população de baixa renda.
II. O EXEMPLO DA POLÍTICA HABITACIONAL
O conceito moderno de habitação deixou de abranger apenas a construção da moradia propriamente dita para incluir também uma série de outros serviços. Estes complementos são os serviços urbanos, que englobam itens básicos de saneamento — como abastecimento de água potável, esgoto e serviços de coleta de lixo —, além de outros, como transporte, fornecimento de energia elétrica, pavimentação, lazer, controle de poluição, educação básica e serviços assistenciais como creches e atendimento de saúde. É todo esse complexo de serviços que precisa ser adequadamente considerado ao se formular uma política habitacional capaz de atender às necessidades da vida urbana moderna.
Cabe lembrar que o problema habitacional no Brasil não está restrito às áreas urbanas. Pelo contrário, em termos relativos, constata-se que, nas áreas rurais, as carências habitacionais podem ser mais graves do que nas cidades, principalmente no que se refere aos serviços complementares de saneamento. Não obstante, considerando-se as altas taxas de urbanização observadas no Brasil, é nas cidades onde se concentra, hoje, a maior parte do déficit habitacional brasileiro — cerca de 10 milhões de unidades, contra cerca de quatro milhões nas áreas rurais. Por essa razão, e considerando-se ainda que a gravidade da questão da sub-abitação é amplificada pela concentração populacional de alta densidade, típica das cidades brasileiras, o problema da moradia será abordado fundamentalmente como uma característica urbana.
As estimativas acerca do déficit habitacional no Brasil são alarmantes. Albuquerque (1986) calculou as necessidades habitacionais para o período 1980/90 por classe de renda familiar, constatando a necessidade de produção de 17,3 milhões de moradias na década de 80, sendo 13,6 milhões o total das necessidades urbanas. Esta estimativa inclui não apenas as moradias para atender ao crescimento vegetativo da população e à reposição dos imóveis depreciados, mas também aquelas para erradicar a subabitação, que, segundo o IBGE, atingia quatro milhões de unidades no início da década e vem mostrando grande expansão, a ponto de atingir cerca de 50% da população das grandes metrópoles como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e outras. As estimativas oficiais apontam um déficit atual de 7,5 milhões de unidades, além de 2,0 milhões em urgente necessidade de reforma [cf. Seplan (1987)]. No total, são quase 60 milhões de pessoas vivendo em condições habitacionais precárias, situação que se agrava cada vez mais, como atesta o acelerado crescimento das favelas e cortiços nas cidades brasileiras.
A Tabela 2 indica que 77% do déficit habitacional está concentrado nas famílias com faixa de renda de até três salários mínimos mensais. É interessante observar que a faixa de até cinco salários mínimos concentra praticamente a totalidade do problema habitacional (88,9%), embora englobe apenas 70,5% das famílias brasileiras.
O modelo operacional do SFH (Sistema Financeiro da Habitação) perdeu sua característica de programa social — como definido acima — na medida em que admite que uma parcela ponderável dos recursos captados e aplicados (aproximadamente 75%) esteja no âmbito do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), baseado na captação de recursos pelas cadernetas de poupança, pouco atuantes nas faixas de baixa renda, como mostrado por Albuquerque (1986).
A estrutura operacional do SFH é marcada por características que não contribuem para seu eficiente funcionamento como um programa social. Embora seu objetivo primordial tenha sido o atendimento à demanda populacional de interesse social, uma parcela preponderante de seus recursos é orientada para os mercados de famílias de renda mais elevada.
Dentro das atividades orientadas à produção habitacional, a participação do BNH/CEF (Banco Nacional da Habitação/ Caixa Econômica Federal) no equacionamento do déficit nos segmentos populacionais de interesse social foi inexpressiva. Constatou-se que 88,9% do déficit habitacional brasileiro encontram-se nas faixas de renda familiar de até cinco salários mínimos, sendo que aproximadamente 77% daquele total concentram-se nas famílias de até três salários mínimos. No entanto, as aplicações do SFH não têm sido compatíveis com este perfil da carência habitacional, configurando um dos mais notórios exemplos de mistargeting na política social brasileira.
Como mostra Albuquerque (1986), uma parcela crescente dos recursos do SFH é captada e aplicada pelo SBPE, cujos objetivos não se enquadram no atendimento à habitação de interesse social. Além disso, a nível de BNH/CEF, somente cerca de metade de seus recursos, captados via depósitos do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), é orientada para a moradia, enquanto outros 20% são direcionados para operações complementares.
A Tabela 3 mostra a evolução da participação dos programas de interesse social nos financiamentos habitacionais totais. Vale lembrar que, ainda que na categoria de "outros programas" estejam incluídas atividades orientadas para faixas de interesse social (Ficam, Promorar, Terreno, João de Barro e outros), a conclusão fundamental é que, na melhor das hipóteses, apenas cerca de 1/3 dos financiamentos habitacionais do SFH atendem às populações carentes de baixa renda.
Estas estimativas são corroboradas por dados oficiais constantes do PAC [cf. Seplan (1987)], onde se admite que entre 1982 e 1986 a faixa da população com renda de um a três salários mínimos recebeu apenas 17% dos financiamentos concedidos e que a faixa entre três e cinco salários mínimos recebeu outros 17%. Os 66% restantes foram concedidos para segmentos da população com renda familiar mensal acima de cinco salários mínimos.
O problema é ainda mais grave levando-se em conta o valor dos financiamentos concedidos. Albuquerque (1986) estima que, até os primeiros anos da década de 80, apenas cerca de 12% dos recursos globais do SFH eram orientados para as aplicações habitacionais de interesse social, que, em última análise, deveriam constituir o cerne da política habitacional pública. A Tabela 4 mostra que, em 1985, o saldo do valor dos financiamentos concedidos a famílias de até cinco salários mínimos não ultrapassava 20%.
Fica claro, portanto, que a política habitacional brasileira padece de um sério problema de mistargeting, não estando orientada para atender aos interesses das classes menos privilegiadas, como estipulado nos objetivos formais do SFH.
Apesar da gravidade do problema habitacional brasileiro, as estatísticas mostram que, a partir do início da década de 80, os gastos habitacionais sofreram uma sensível desaceleração (Tabela 5). A virtual paralisação do SFH desde os primeiros anos da década, a extinção do BNH em 1986 e a indefinição quanto à estratégia de ação na área habitacional por parte do governo revelam a ausência de perspectivas para o setor, transformando a questão habitacional em um dos mais sérios desafios para os formuladores da política econômica e social nas próximas décadas.
III - O EXEMPLO DA POLÍTICA DE SANEAMENTO
Como mencionado acima, o conceito moderno de habitação inclui vários serviços complementares, como saneamento, transporte, segurança, lazer e educação. Isso não significa, contudo, que, do ponto de vista da formulação de políticas sociais, como definimos anteriormente, seja desnecessário adotar procedimentos sequenciais. A escassez de recursos impede que, como seria desejável, se reproduzam para as populações carentes as condições ideais de habitabilidade. Nesse sentido, é imprescindível que se estabeleçam prioridades, cabendo ao item moradia prioridade na condução da política habitacional.
O saneamento, incluindo o suprimento de água potável e os meios de escoadouro de águas servidas, adquire uma condição prioritária, não apenas como um componente habitacional, mas também como determinante fundamental das condições de saúde da população.
Como mostra a Tabela 6, o Brasil possui uma alta taxa de mortalidade infantil, mesmo entre países com níveis de renda semelhantes ao seu. Além disso, exibe uma baixa esperança de vida ao nascer, principalmente nas regiões mais pobres (Tabela 7). Mais grave ainda, a partir de 1982, o coeficiente de mortalidade infantil começa a mostrar uma tendência de elevação (Tabela 8).
Segundo Jaguaribe ( 1986), o problema do saneamento afeta diretamente a taxa de mortalidade infantil, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, onde cerca de 40% das mortes de crianças com menos de um ano de idade devem-se a doenças infecciosas intestinais, sendo esta a principal causa da mortalidade infantil nas duas regiões.
Cabe apontar ainda a extrema desigualdade na distribuição pessoal e regional de renda no Brasil, o que sugere um quadro ainda mais angustiante nos indicadores de bem-estar das populações na base da pirâmide de rendimentos.
É interessante observar que as condições de habitação e saneamento apresentaram certa melhoria, embora ainda revistam-se de gravidade. Contudo, a evolução positiva, principalmente na década de 70, deveu-se mais às condições econômicas favoráveis do que à intervenção governamental (Tabela 9).
Estimativas do IBGE/Unicef (1986) indicam que, durante a década passada, investimentos em água e esgoto atingiram um volume da ordem de US$ 3 bilhões. Segundo o documento, "o crescimento dos sistemas de saneamento básico foi bastante acentuado... o que representou, sem dúvida, mais um fator de redução no potencial de transmissão das doenças infecciosas e parasitárias, com reflexos decorrentes sobre os níveis de mortalidade infantil". Ainda de acordo com o IBGE/Unicef (1986, p. 55), o Censo Demográfico de 1980 registrou um "decréscimo relativo de 22,8% na mortalidade infantil na década, que aparentemente teve continuidade na primeira metade da década de 80, quando, segundo os resultados preliminares da PNAD/84, a probabilidade de morte antes do primeiro ano de vida baixou de 87,9 por mil em 1980 para 68,1 por mil, ou seja, um declínio relativo de cerca de 22,5% em apenas quatro anos."
Não obstante, as condições de habitabilidade dos domicílios brasileiros ainda são inadequadas, principalmente nas zonas rurais — onde a maior parte da população não dispõe de água encanada ou de instalações sanitárias — e nas regiões mais pobres do país (Tabela 10). Embora menos agudo, o problema também é visível nas cidades, onde a carência de condições apropriadas de salubridade pode ter consequências graves devido à alta concentração populacional. Segundo o Censo de 1980, quase 45% das habitações urbanas não eram servidas com água encanada, 21% não possuíam qualquer tipo de instalação sanitária e quase 10% utilizavam instalações sanitárias coletivas.
Tais índices de precariedade nas condições de saneamento são ainda mais acentuados nas regiões menos desenvolvidas do país e nas zonas rurais. Esses dados tornam a questão do saneamento — água potável e esgoto — um dos problemas que exigem urgente atenção das autoridades, não apenas como um componente importante da habitação, mas também, e principalmente, pelo seu impacto nas condições de crescimento e desenvolvimento das crianças.
Os gastos públicos em 1986 na área de saneamento (água e esgoto) foram estimados pelo Banco Mundial (1988) no valor de US$ 1,3 bilhão, ou cerca de 3% do total dos programas sociais nos três níveis de governo. Apesar do relativo sucesso obtido nesta área, como pode ser constatado pela evolução do número de famílias atendidas, o estudo aponta o declínio na parcela dos gastos federais com saneamento. Em 1981, esses gastos absorveram 4,3% do gasto social federal, caindo para 2,3% em 1984, 3,7% em 1985 e 2,8% em 1986.
Da mesma forma que ocorreu na área de habitação e urbanização, os gastos em saneamento vêm sofrendo perdas relativas que poderão resultar no agravamento de vários importantes índices de bem-estar da população brasileira, principalmente se for considerado que o problema se concentra pesadamente nas populações carentes. Isso transforma os dispêndios públicos em saneamento em típicos gastos sociais, conforme a conceituação aqui apresentada.
Atividades de saneamento são exemplos típicos de bens públicos. O que os diferencia de um bem privado e, consequentemente, faz com que surjam "falhas de mercado" não é o fato de que a demanda por um bem público seja sentida coletivamente — em contraste com bens privados, onde a demanda é sentida individualmente. A diferença surge no fato de que, no caso de um bem público, os benefícios gerados pelo consumo não se restringem a um consumidor individual, mas se estendem também a outros indivíduos. Além disso, o caso do saneamento implica sensíveis economias de escala.
Dessa forma, os consumidores não externam voluntariamente sua disposição para pagar pelo uso desses bens, uma vez que: a) sua exclusão não prejudicaria o custeio do serviço, pois o custo seria rateado por um grande número de consumidores; e b) sua inclusão entre os consumidores não altera as quantidades disponíveis para os demais. Trata-se da questão chamada na literatura de "free-rider".
Nestas condições, surge o problema de como fazer o consumidor revelar suas preferências. Indaga-se também sobre a definição dos mecanismos institucionais para o atendimento dessa demanda e de como custear tais serviços. No Brasil, a questão do saneamento tem sofrido dois tipos de tratamento. Nas áreas urbanas consolidadas, os serviços de água e esgoto vêm sendo implantados pelo poder público, dentro do Plano Nacional de Saneamento, e com o auxílio de uma estrutura altamente centralizada de companhias estaduais de saneamento básico.
O esquema operacional em prática implica alguma recuperação de custos, juntamente com tarifação diferenciada em função do nível econômico do consumidor. Por outro lado, o governo é o maior responsável pelos investimentos e arca com o ônus de captação das verbas financeiras exigidas. Vê-se, portanto, que, no caso de áreas urbanas consolidadas, os investimentos são feitos, em sua maior parte, com recursos governamentais, como seria esperado no caso de um bem público, como o saneamento.
Os procedimentos são distintos, contudo, no caso de áreas de expansão urbana, onde o modelo é essencialmente baseado em critérios de mercado. A responsabilidade por obras de infraestrutura vem recaindo sobre a iniciativa privada (construtores e loteadores), num modelo de "urbanização privada" onde os custos são repassados aos adquirentes de imóveis e no qual os padrões técnicos de qualidade e uniformidade dos equipamentos não são atendidos a contento. Em geral, daí advém grande parte das causas da enorme desorganização e ineficiência dos padrões de atendimento da demanda por serviços públicos urbanos.
Esta forma de ação — que adota, ademais, que os investimentos efetuados pelos incorporadores privados sejam, em seguida, doados às companhias de saneamento oficiais — acarreta, além de sérios problemas de padronização e outras exigências técnicas, grande iniquidade com relação às famílias residentes ou adquirentes de imóveis na periferia ou em regiões de expansão urbana. Em realidade, exige-se delas o custeio total dos investimentos com obras de saneamento, ao passo que isso não ocorre no caso de áreas urbanas consolidadas, onde se concentram os segmentos da população com rendimentos mais elevados. Assim, grande parte dos gastos com saneamento nas regiões de expansão urbana não satisfaz os critérios exigidos para serem considerados gastos sociais, trazendo para uma outra realidade os demonstrativos de investimentos "sociais" do governo, usualmente aceitos como indicativos das prioridades do setor público.
De fato, como demonstrado por Lucena (1985), os proprietários de terra urbana absorveram, como renda econômica, a valorização dos imóveis habitacionais, embora nas áreas urbanas consolidadas isso tenha sido o resultado de investimentos públicos. Atendo-se ao mercado habitacional, o autor conclui que os gastos públicos em infraestrutura urbana deveriam ser concentrados nas áreas periféricas, como forma de aumentar a oferta de terrenos edificáveis e, portanto, dado um nível da demanda, reduzir seu preço. Segundo Lucena (1985, p. 171), "a análise desenvolvida nos leva a concluir que a atenção do governo deveria concentrar-se prioritariamente no fornecimento de serviços, pelos quais é responsável — infraestrutura básica (água, luz, esgoto), transporte e lazer — pois somente assim seria possível induzir a um aumento no consumo de habitações através da diminuição dos preços implícitos pagos por tais serviços e consequente queda no preço final das unidades habitacionais".
A conclusão, portanto, é que o governo deve reorientar seus investimentos a fundo perdido nas áreas de expansão urbana, praticando, assim, uma efetiva redistribuição indireta de renda, desfazendo-se do atual modelo de "urbanização privada". Tal reorientação não deve abrir mão da forma de recuperação de custos toda vez que a população-alvo do programa de saneamento não for de interesse social. Apenas neste último caso justifica-se a concessão de subsídios, como já abordado em outras partes deste trabalho.
IV - DIRETRIZES PARA UMA POLÍTICA EFICAZ DE MORADIA E SANEAMENTO
Nesta parte final, são apresentadas algumas diretrizes gerais para transformar itens importantes do orçamento governamental em gastos sociais, conforme definidos aqui.
Mayo et alii (1986), após examinarem a política habitacional adotada em vários países em desenvolvimento, identificaram alguns problemas na área da moradia e nas respectivas linhas de ação tradicionalmente adotadas para superá-los. Em primeiro plano, apontam a notória carência, ou déficit, habitacional. Como reação, a tendência é o Estado assumir a construção de projetos habitacionais.
Cabe notar que o fenômeno pode surgir a partir do crescimento da demanda frente a uma oferta relativamente inelástica, resultando em acentuada elevação nos preços, o que é particularmente visível no mercado de terras urbanas. Alternativamente, o problema pode surgir a partir de uma demanda potencial estruturalmente não lastreada na capacidade de pagamento da população de baixa renda. A expansão das mais variadas formas de subabitação é um reflexo dessa ocorrência.
Frente aos custos dos serviços de habitação — que ao longo do tempo vêm mostrando tendência de elevação face às expectativas e exigências da vida moderna — o déficit habitacional é gerado essencialmente pelo baixo poder aquisitivo das populações de baixa renda dos países mais pobres. Nestes casos, a questão deve ser considerada um "merit good". Nos demais casos, não há por que supor que a produção pública seja capaz de atender com maior eficiência à expansão da demanda por serviços habitacionais. No máximo, caberia ao governo intervir a nível de insumos habitacionais, como no mercado de terras, materiais de construção e disponibilidade de financiamentos, onde as distorções são frequentes.
No entanto, cabe ao Estado o fornecimento da infraestrutura urbana, como serviços básicos de saneamento e outros, sempre mediante uma política de recuperação de custos — exceto nos casos de gastos sociais como aqui conceituados — e a partir de uma criteriosa análise da capacidade de pagamento do usuário dos serviços.
A experiência em vários países em desenvolvimento mostra que a construção pública de projetos habitacionais não é capaz de atender à demanda efetiva das populações carentes. Em geral, são projetos caros e voltados ao padrão de vida da classe média. Restam como alternativas a atuação nos processos autoconstrutivos ou na urbanização de favelas e nas melhorias de outras formas de subabitação. O importante, contudo, é que a atuação do poder público seja restrita à remoção de distorções nos mercados de insumos e de crédito, ou ao fornecimento da infraestrutura de caráter público, como saneamento e outros tipos de infraestrutura urbana.
Cabe destacar a importância do problema fundiário na superação do déficit habitacional urbano. Em geral, a mera remoção de favelas não contribui para minorar a questão da falta de moradias — apenas causa sua realocação. O fundamental é permitir a regularização das posses para atribuir às construções existentes — ainda que precárias — algum valor de mercado. Por si só, essa providência é capaz de suscitar maiores investimentos por parte dos moradores, contribuindo para superar as baixas condições de habitabilidade que caracterizam as favelas e outras formas de submoradias.
Confrontadas com condições de habitabilidade precárias, as autoridades públicas tendem a estabelecer códigos de obras e restrições de uso do solo urbano altamente exigentes, exigindo ainda dos incorporadores privados a colocação de equipamentos urbanos públicos. Evidentemente, trata-se de uma política altamente equivocada, pois, além de não ser respeitada, introduz elementos causadores de aumento de custos, o que agrava, em vez de minorar, as condições já precárias de moradia da população de baixa renda.
Seja no caso de exigências construtivas, de fixação de requisitos mínimos de infraestrutura urbana ou de restrições nos padrões de ocupação do solo, tais políticas são, em geral, incompatíveis com o poder aquisitivo da população de baixa renda. Impossibilitando o incremento da oferta de habitação de baixo custo, tais restrições reduzem os investimentos privados e impulsionam a prática da ilegalidade imobiliária.
Urge, portanto, a fixação de exigências e restrições compatíveis com a renda das populações-alvo e com as características socioeconômicas das diversas áreas urbanas, evitando cercear indevidamente o direito dos cidadãos de viverem de acordo com seus meios.
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