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Marcos Cintra

Guerra Santa contra o Lucro Presumido

Tornou-se comum criticar a atividade unipessoal dentro do regime de lucro presumido comparando-o com a tributação da pessoa física assalariada. O argumento é que rendimentos de mesmo valor devem ser tributados igualmente. E o exemplo exaustivamente repetido é o de empresas unipessoais optantes do lucro presumido que deveriam ter os lucros tributados da mesma forma que seriam se fossem pagos como salário.


Nada mais equivocado. Tal argumentação oculta fatos e situações que passam desapercebidos ao analista menos cuidadoso.

O tema ganhou relevância com o debate acerca do PL 2337/21 que altera a legislação do Imposto de Renda. Vários exercícios aritméticos enganosos têm sido apresentados para justificar esta indevida suposição.


De fato, a tributação do trabalho assalariado é mais alta do que a dos lucros distribuídos a titulares de empresas optantes pelo lucro presumido. Contudo, não há por que serem iguais, já que são formas distintas de percepção de renda.


O trabalho assalariado tem características próprias claramente definidas na legislação brasileira, e que estão ausentes da percepção do lucro distribuído. Eis os mais importantes: pessoalidade, não eventualidade, subordinação jurídica, hierarquia funcional, certeza de recebimento e não exigência de investimentos. As relações assalariadas ainda incluem vantagens tais como benefícios trabalhistas de férias, 13º salário, cobertura previdenciária, FGTS, salário desemprego e uma pletora de benefícios não auferidos pelos empresários unipessoais.


Ademais, o regime do lucro presumido implica tributação sobre faturamento, independentemente de haver rendimento líquido na operação. E veda a possibilidade de compensação de prejuízos.


Por essas razões, o sistema tributário brasileiro prevê tributação diferenciada a partir destas distinções na substância econômica subjacente. Não fosse assim haver-se-ia que eliminar todos os tributos existentes sobre rendimentos e levá-los todos à exclusiva tributação na tabela do imposto de renda da pessoa física. Ou seja, a percepção de rendimentos do capital, do trabalho, de aluguéis ou de qualquer outra fonte deveriam ser tributados apenas na pessoa física beneficiária dos rendimentos recebidos qualquer que seja sua fonte, origem, riscos ou características de percepção. Tal opção, ainda que intuitivamente justificável sob a métrica da equidade, enfrentará inúmeros questionamentos seja do ponto de vista operacional quanto de sua justificativa conceitual.


A legislação trabalhista prevê claramente as diferenças apontadas acima, e caracteriza como crime qualquer tentativa de fraude à verdadeira relação de emprego.


A “pejotização” quando utilizada como disfarce para uma relação assalariada tem previsão na CLT, pois serão “nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos conceitos contidos na presente Consolidação”. A Lei Complementar 123 afirma com clareza não admitir a opção do Simples quando seus “titulares ou sócios guardem, cumulativamente, com o contratante do serviço, relação de pessoalidade, subordinação e habitualidade”. Assim, práticas dolosas contrárias à legislação são crime contra a organização do trabalho, implicando sanções previstas no Código Penal.


Não há portando que confundir uma situação em que há verdadeira justificativa para a existência de uma empresa unipessoal com outra onde há relação assalariada fraudulentamente disfarçada pela intermediação de uma pessoa jurídica.


Chama a atenção declaração recente de conhecido tributarista supostamente atuando em empresa optante pelo lucro presumido que se autoincriminou ao insinuar que se julgava injustamente beneficiado, como economista. Tal afirmação implica reconhecimento de que se beneficiava indevidamente de um regime tributário no qual não se enquadrava, ou seja, praticava um crime contra a organização do trabalho.


A legislação brasileira prevê com clareza as diferenças entre atividades assalariadas e não assalariadas, e por estas razões, não é de estranhar que haja diferenças tributárias entre elas. Se tais diferenças são refletidas, ou não, nos parâmetros dos distintos regimes de tributação é outra questão, a exigir outro tratamento que não a restrição à opção do lucro presumido.


Caberia, por exemplo, ajustar a regulamentação do lucro presumido atribuindo diferentes estimativas de lucro para atividades diferenciadas, tais como direitos de imagem, atividades artísticas ou pareceres profissionais. O que não se pode é simplesmente igualar todo e qualquer tipo de empresa unipessoal, pejorativamente denominada “pejotizada”, a um indevido privilégio vis-à-vis igual atividade prestada como trabalho assalariado. E se a legislação não estiver sendo observada, cumpre às autoridades fazendárias a devida fiscalização e punição. Seria absurdo extinguir um regime tributário legítimo simplesmente por distribuir, na forma de lucros ou dividendos, valores iguais a um assalariado sujeito a outra forma de tributação.


Vale adicionar ainda que atividades temporárias e circunstanciais, típicas do regime do lucro presumido, não podem ser equiparadas a um contrato permanente de trabalho assalariado. Um prestador de serviços eventuais como um advogado, economista, encanador, contador, ou artista não poderá jamais ser tido como um assalariado permanente ainda que sua atividade seja momentânea e materialmente a mesma de um advogado, economista, encanador, contador ou artista contratado pela CLT como um empregado.


Ademais, cumpre dizer ainda que o mundo digital vem apartando aceleradamente as relações laborais assalariadas das atividades autônomas da chamada “gig economy”. Também o empreendedorismo típico das modernas start-ups sofreria enorme tropeço se fosse considerado equiparável a uma relação assalariada.


O trabalho independente, em suas mais variadas formas, passa a ser mais comum a cada momento. Impor a todas estas novas configurações do mercado de trabalho o mesmo regime tributário do trabalho assalariado é grave equívoco lógico, conceitual e econômico, mesmo que em situação de auferimento de idênticos rendimentos.



Marcos Cintra é professor e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Foi deputado federal e secretário da Receita Federal (2019).

mcintra@marcoscintra.org


Artigo publicado no Jornal Valor Econômico



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