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Marcos Cintra

Livro: A tragédia do Cruzado (1/x)

APRESENTAÇÃO: MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE

ORGANIZADOR

Há um ano, com a decretação do Plano de Estabilização Econômica de 28 de fevereiro de 1986, iniciou-se um dos mais importantes programas antiinflacionários já tentados no país. Por refletir uma nova linha de pensamento sobre a inflação — a teoria inercial — o Plano Cruzado foi observado com enorme interesse tanto aqui como no exterior. Juntamente com o Plano Austral argentino, foi uma tentativa de acabar subitamente, e de forma não convencional, com um processo inflacionário crônico, sem recorrer a medidas recessivas. Após doze meses, sabe-se que o programa fracassou.

Os textos incluídos nesta coletânea foram publicados pela Folha de S.Paulo a partir do final de 1985, quando a inflação deu sinais de mudar de patamar e a aplicação de um "choque heterodoxo" começou a ser considerada com insistência. Desde então, a Folha de S.Paulo passou a ser um dos mais importantes veículos de avaliação crítica da estratégia antiinflacionária do governo.

Foram escolhidos cerca de 130 artigos e editoriais que, de distintos pontos de vista, analisam os antecedentes e a evolução do Plano Cruzado. Cabe lembrar que, por razões de espaço, só foi possível reproduzir uma pequena parte dos artigos e editoriais que mereceriam ser incluídos neste livro. Pela mesma razão, também não foram aproveitados alguns excelentes textos que, embora sob o prisma dos efeitos do Plano Cruzado, tratavam de questões setoriais e localizadas.


OS ANTECEDENTES DO PLANO CRUZADO

Os textos neste capítulo referem-se à situação econômica imediatamente anterior à decretação do Plano Cruzado. Dupas (10/11/85) expõe um quadro favorável dos primeiros sete meses da política econômica do governo Sarney. O editorial "Rumos da inflação" (7/12/85) é menos otimista ao mostrar os perigos da aceleração inflacionária e pede reformas em profundidade, incluindo "um choque semelhante ao adotado na Argentina". Munhoz (1/12/85) analisa o pacote fiscal de novembro de 1985, e Bresser Pereira (10/12/85) afirma que as medidas tomadas configuram uma política econômica coerente. Sayad (22/12/85) mostra otimismo, mas reconhece que a inflação é uma forte ameaça.

Na seção "Inflação inercial e choque heterodoxo", Rangel (5/11/85) discorda dos teóricos inercialistas; nas matérias da redação da Folha de 20/12/85, os ministros da área econômica negam veementemente os boatos sobre a desindexação; Longo (27/12/85) critica a inoperância do governo; Dornbusch (3/1/86) propõe uma reforma monetária no Brasil e é criticado por Dupas (12/1/86); Joelmir Beting (19/12/85) discorda de um congelamento de preços, juros e salários para combater a inflação; Bresser Pereira (31/12/85) examina os pré-requisitos para um choque heterodoxo e não crê que seja aplicado a curto prazo no Brasil; Mendonça de Barros (5/1/86) e Cavalcanti de Albuquerque (9/2/86) acham, por razões diferentes, que uma política de choque tem alta probabilidade de fracassar; Martone (9/2/86) aponta dificuldades, mas afirma que um choque poderá ser benéfico ao país; Fraga Neto (9/2/86) preconiza o congelamento e a desindexação, mas dentro de um programa ortodoxo de estabilização, ao passo que Sargent (26/1/86) sugere ao ministro da Fazenda a convencional austeridade.

No bloco "O desgaste do governo Sarney", Fernando Henrique Cardoso (2/2/86), o editorial de 16/2/86 e Dimenstein (19/2/86) mostram a corrosão no prestígio do governo entre políticos, empresários e população em geral, tornando insustentável o adiamento de decisões na área econômica.


A ECONOMIA EM 1985:


NOVA ECONOMIA TEM BALANÇO FAVORÁVEL EM 7 MESES.

GILBERTO DUPAS

10/11/85

O balanço dos primeiros sete meses da política econômica da Nova República é muito favorável. Embora ainda exija muitos cuidados e precise enfrentar opções difíceis, a Nova Economia alcançou resultados positivos que permitem um horizonte mais folgado para reajustes futuros. A inflação, contida num patamar de 8 a 10% ao mês, acumulou (apesar dos 14% de agosto) uma taxa de 84,2% (abr/out/85), comparada com 96,7% do mesmo período do ano anterior. Afastado o espectro de uma escalada hiperinflacionária a curto prazo, as atenções se voltam para o reajuste das tarifas públicas, o preço dos produtos agrícolas e os salários, três fatores decisivos para o desempenho futuro da inflação.

Os reajustes no salário mínimo, no período do novo governo, acumularam uma taxa anual de 260,29%, garantindo uma evolução real (sobre o INPC) de 12%. Os dados da Fiesp apontam 25,2% de crescimento real na massa de salários na indústria, comparando abr/out/85 com o mesmo período do ano anterior. Além disso, o desemprego decresceu de 7,3% para 5,39%. São indicadores muito importantes que revelam a recuperação dos salários após a brutal recessão e o arrocho executados no governo anterior. Até agora, as eventuais pressões inflacionárias decorrentes foram absorvidas. Nessa área é preciso avançar com cuidado, mas é inevitável e importante avançar.

O aquecimento da economia é evidente e salutar. A indústria de transformação cresceu 7,5% até set/85, contra 5% no mesmo período de 1984. O comércio vendeu, até jul/85, 25,9% a mais (em termos reais) do que no período anterior. A safra de grãos foi boa, fechando com 69,2 milhões de toneladas (30,8% a mais que em 1984). Embora as exportações tenham caído 7,1%, a economia soube crescer contendo ainda mais suas importações (10,8% de queda). As reservas estão mantidas ao nível de US$ 11,9 bilhões. A arrecadação de tributos federais cresceu 15,1% (em termos reais) e o ICM, 15,9%.

As taxas de juros estão em sensível queda. A demanda de crédito não é alta, dada a liquidez folgada de alguns setores industriais. O crescimento do setor de máquinas e equipamentos demonstra que a indústria está investindo em equipamentos sem pressionar as importações. Finalmente, o Produto Interno Bruto (PIB) deverá crescer cerca de 7%, contra 4,5% do ano anterior.

Como se vê, ao contrário do que afirma Delfim Neto (pretendendo confundir e renascer das cinzas), a política econômica mudou muito. E para melhor. Os resultados são significativos e permitem clara evidência de que o caminho seguido é correto. Especialmente após a homogeneização da equipe econômica, com a entrada de Dilson Funaro. Vários problemas terão que ser superados, porém, para que continuemos a crescer sem perder o controle da inflação e das contas externas. A herança é muito pesada.

A dívida interna e o déficit de caixa continuam a merecer as maiores preocupações. A convicção da nova equipe econômica é de que o déficit efetivo é menor do que tem sido propalado. Porém, o aumento das receitas do governo parece, infelizmente, indispensável. Juntamente com o aperto nos controles do setor público e das estatais, é preciso viabilizar um pacote tributário socialmente justo, que não pressione a inflação e possa ser aprovado pelo Congresso.

Quanto ao setor agrícola, a grave seca deste ano (a maior desde 1955) poderá ter consequências sérias no comportamento dos preços dos produtos agrícolas. A antecipação da colheita de cana e o não plantio de grãos em áreas de renovação de canaviais acentuou o desemprego rural, especialmente em São Paulo. O governo terá que recorrer à importação de alguns produtos primários como forma de conter os preços.

Na área externa, a política de desvalorização do dólar conseguiu efeitos parciais em relação às principais moedas europeias. Esse quadro ainda é favorável para as exportações brasileiras. O déficit comercial americano, porém, continua em forte crescimento. Se ocorrerem medidas protecionistas pelo governo Reagan, haverá sinais de perigo para a nossa balança comercial.

As negociações com o Fundo Monetário Internacional foram empurradas para frente. E demos claros sinais de que a política econômica terá como prioridade o crescimento, sem maior interferência do Fundo Monetário ou do Banco Mundial.

Esse é o balanço atual da Nova Economia. Um saldo suficiente para gerar otimismo moderado e afastar, por um tempo, alguns espectros que continuam a nos rondar. A rota, porém, é correta.



RUMOS DA INFLAÇÃO

EDITORIAL

7/12/1985


A liquidação de três instituições financeiras - Comind, Auxiliar e Maisonnave -, decretada pelo Banco Central no dia 19 de novembro, fez as autoridades monetárias injetarem Cr$ 8,1 trilhões de recursos no sistema para garantir a sua liquidez. O Banco Central, que até 28 de novembro havia colocado no mercado Cr$ 6,5 trilhões de novos títulos, passou de repente de vendedor a comprador de Cr$ 1,6 trilhões. Com isso, o crescimento mensal dos indicadores monetários ficou sendo, de longe, o mais elevado do ano, tendo sido superado apenas pelo recorde histórico ocorrido no "estouro" de dezembro de 1984.

Mais que prenunciar uma inflação galopante, essa variação colossal nos indicadores constitui prova cabal de que o governo não tem controle sobre a sua base monetária (dinheiro e reservas) e os meios de pagamento (dinheiro e depósitos à vista). Sendo o montante da primeira, em outubro, de somente Cr$ 16,4 trilhões, percebe-se que o socorro de liquidez custou nada menos que 50% desse valor. Portanto, é praticamente impossível, diante da magnitude desse vazamento, compensá-lo através de operações no mercado aberto.

A evolução daqueles mesmos indicadores em bases trimestrais sugere um crescimento gradual e inequívoco a partir de abril, auge dos congelamentos decretados pelo ministro Dornelles, após as liberalidades fiscais e monetárias do último governo, cujo impacto sobre a inflação se fez sentir nos primeiros três meses do ano. O perigo de um repique inflacionário agora não pode ser descartado.

As taxas anuais de crescimento da base monetária e dos meios de pagamento saltaram, nos últimos seis meses, de um patamar comum de 200% para 250% e 300%, respectivamente. Em termos trimestrais, a taxa de crescimento da base monetária passou de 70% ao ano no trimestre março/maio - o que refletia a fúria monetária dos ex-diretores do Banco Central - para 315% no período setembro/novembro. Os meios de pagamento, que cresciam a 160% ao ano em março/maio, passaram a aumentar 345% no último trimestre.

Até hoje, a inflação mantém-se estabilizada na casa dos 220% ao ano, mas, em termos trimestrais, a taxa de crescimento anual do Índice Geral de Preços da FGV passou de 160% no período abril/junho para 240% no último trimestre. Portanto, a manutenção da inflação ascendente na trilha dos indicadores monetários dependerá crucialmente da evolução do déficit público. Entretanto, não se conhece satisfatoriamente esse valor, cuja indefinição se agravou nos últimos meses com a absoluta falta de divulgação das contas consolidadas das empresas estatais.

O déficit de caixa do governo federal, medido residualmente pela soma do aumento da dívida pública e da base monetária, atingiu em novembro cerca de Cr$ 65 trilhões, dos quais Cr$ 45 trilhões em colocação de títulos e Cr$ 20 trilhões em aumento de base. Aparentemente, essas contas estão sob controle, pois há vários meses se projeta um déficit de Cr$ 70 trilhões (5,4% do PIB) até dezembro.

Para 1986, o governo estimou, há tempos, um déficit de Cr$ 211 trilhões, que conservadoramente pode ser elevado para algo em torno de Cr$ 250 trilhões. Para financiá-lo, enviou ao Congresso na última hora um pacote fiscal, complicado mais do que o necessário, sem metas quantitativas. Através das declarações à imprensa, o ministro Funaro e seus representantes afirmaram, entretanto, que o pacote prevê Cr$ 109 trilhões de aumento de recursos - descarta-se, por irrealista, a previsão de que Cr$ 35 trilhões adviriam da queda dos juros. O grosso desse aumento de arrecadação virá da elevação de impostos indiretos e aumentos de tarifas.

Se o governo implementar esse pacote, terá condições de reverter o processo de aceleração inflacionária. Dada a sua magnitude, certamente terá um oportuno impacto contencionista sobre uma economia interna superaquecida. Admitindo-se que, na prática, o pacote seja reduzido pela metade, ainda assim poder-se-ia reduzir o déficit de caixa em 1986 de Cr$ 250 trilhões para os Cr$ 211 trilhões. Neste caso, o déficit seria financiado com cerca de Cr$ 121 trilhões em colocação de títulos, sendo Cr$ 90 trilhões monetizados (o que corresponde a um aumento anual de 200% da base monetária). Apesar de otimista quanto à possibilidade de conter a inflação no próximo ano, esse cenário é instável, pois não contorna restrições básicas da economia: elevadas taxas reais de juros e alto patamar inflacionário. A adoção de uma política fiscal restritiva - admitindo-se que o pacote seja implementado - e de uma política monetária passiva é insuficiente para reduzir os juros na ausência de maior poupança externa ("new money") e revisão da política cambial (abandono da desvalorização anual do cruzeiro). Ademais, os juros reais aplicados sobre uma dívida indexada fazem com que o endividamento do governo cresça exponencialmente, a partir de um nível já elevado (50% do PIB). Reformas em profundidade, inclusive um choque semelhante ao adotado na Argentina, são condições necessárias para se evitar a camisa de força da indexação.


MEDIDAS SAÍRAM DEPOIS DE LONGA EXPECTATIVA

DÉRCIO GARCIA MUNHOZ

10/12/85

Após longa expectativa, finalmente deu-se o parto do temido pacote econômico. E pode-se desde logo dizer que o pacote não decepcionou, já que, à moda dos velhos tempos, caiu com forte impacto explosivo, espalhando estilhaços por todos os lados.

Ressalve-se que, desta vez, o pacote veio embrulhado em papel perfumado, já que foi acompanhado por uma série de propostas de medidas de grande alcance social, com programas de alimentação, saúde e educação voltados para grupos de baixa renda. Em contrapartida, essas mesmas pessoas de baixa renda, se assalariadas, tenderão a enfrentar índices de reajustes distorcidos pelas alterações nos critérios de cálculo, além de possíveis novas pressões inflacionárias.

As medidas pretendidas pelo governo envolvem uma ampla gama de diferentes campos, o que requer uma visão mais global para conclusões menos incertas. Por isso, os principais aspectos são comentados a seguir, permitindo um primeiro balanço de "ganhos e perdas" para os diferentes setores da sociedade.

Mudança no índice de preços

Primeiramente, o governo alterou o índice utilizado para correções salariais, substituindo o INPC-restrito pelo INPC-amplo. Isso significa que, agora, os salários em geral serão reajustados não mais por um índice baseado no padrão de consumo das famílias de menor renda (até cinco salários mínimos), onde pesam mais os alimentos, mas por um novo índice, que considera o consumo das famílias com renda de até trinta salários mínimos. Nesse grupo, os gastos com alimentação têm menor peso, e os dispêndios com veículos próprios, serviços urbanos e educação são mais significativos. Ora, se no momento os preços dos alimentos estão subindo mais rapidamente, é evidente que a mudança nos critérios tende a forçar os índices de reajustes para baixo.

Outro aspecto foi a substituição do índice de preços da Fundação Getulio Vargas pelo novo INPC-amplo para a correção monetária. Isso resultará em uma correção menor nos depósitos de poupança, nos depósitos corrigidos e nas aplicações a prazo com correção pós-fixada, já que o INPC antigo vinha ficando abaixo das taxas de inflação apuradas pela Fundação. No entanto, os aplicadores mais informados tenderão a procurar taxas de juros mais altas para compensar um índice menor de correção, na medida em que este se situe abaixo das taxas de inflação. Afinal, o parâmetro que orienta os ganhos de capital não são índices decretados, mas a inflação observada. A principal diferença registrada entre os índices é que os primeiros encerram a coleta de preços na metade do mês, muitas vezes ficando subestimados quando o governo libera produtos com preços controlados após o fechamento da pesquisa do IBGE. Isso, aliás, afetou os reajustes salariais dos últimos meses, pois os índices aplicados em reajustes salariais recentes não são tão elevados como se poderia supor, levando muitos assalariados a festejar ganhos reais, enquanto, de fato, o salário real nem sequer se recompôs.

Impostos

Os impostos serão aumentados de modo geral, com muita justiça no que se refere ao Imposto de Renda sobre aplicações financeiras. No entanto, por que o governo, em vez de tributar aplicações de curtíssimo prazo em títulos públicos, não emite papéis com remuneração real negativa para os aplicadores "cativos", resolvendo assim a questão dos déficits públicos?

O Imposto de Renda sobre as pessoas jurídicas de grande porte será aumentado, com o critério de apuração semestral dos balanços. Isso representaria, em teoria, uma sobrecarga de cerca de 40%, mas na prática será menor, já que as empresas estão no regime de antecipação do Imposto de Renda, embora não com base nos lucros correntes. O problema é que as grandes empresas, que normalmente exercem certo controle de mercado, poderão repassar esses custos para os preços, gerando pressões inflacionárias adicionais, com a "conta" recaindo sobre os assalariados. No entanto, não há estimativas concretas do impacto dessa sobrecarga sobre a renda global do país, o que dificultaria avaliar os possíveis reflexos sobre os salários reais.

O Imposto de Renda sobre pessoas físicas sofreu profundas alterações, especialmente a partir de 1987 (ano-base de 1986). De início, as pessoas com renda líquida de até pouco mais de 2,5 salários mínimos ficarão isentas. Outros grupos não tiveram redução de imposto, como equivocadamente interpretado em algumas áreas com base em informações incompletas. Haverá apenas uma redução no desconto em folha, o que não afeta o imposto a ser pago, tanto quanto um adiantamento maior de salários no fim da semana não altera o poder de compra do trabalhador.

Uma questão importante no Imposto de Renda de pessoa física é que, a partir de 1987, não mais haverá correção do imposto retido na fonte, e o imposto apurado na declaração será corrigido monetariamente de forma aproximada pela inflação semestral. Nos níveis atuais de inflação, isso representará um aumento de cerca de 80% no imposto a ser pago na declaração, agravado pela não correção da retenção na fonte, configurando uma verdadeira "derrama" fiscal sobre a classe média. Essa sobrecarga será mitigada pela mudança na tabela de imposto progressivo, com redução das alíquotas. Mesmo assim, a penalização será significativa para muitos grupos, já que o imposto será calculado semestralmente com correção monetária.

Déficit público

As medidas propostas visam reduzir os déficits públicos, estimados em Cr$ 211 trilhões no orçamento para 1986. Desse total, Cr$ 120 trilhões referem-se a encargos financeiros da dívida interna e Cr$ 90 trilhões a déficits de outras origens que nunca foram devidamente explicados.

Aplicações na área social

O programa do governo de investir Cr$ 76 trilhões na área social em 1986 é de grande importância, correspondendo às expectativas da Nova República. Porém, não ficou claro por que esses gastos não elevaram o déficit orçamentário para Cr$ 290 trilhões, sugerindo que as verbas já estavam previstas no orçamento aprovado pelo Congresso.

Uma nova postura do governo

Apesar das críticas quanto ao tempo exíguo para a apreciação das medidas pelo Congresso, a proposta foi encaminhada ao Legislativo, sinalizando uma postura política mais civilizada.


PACOTE FISCAL SEM MILAGRES

Luiz Bresser Pereira

10/12/85

O pacote fiscal aprovado pelo Congresso na última semana não permitirá eliminar o déficit público, mas deverá ser o marco de uma progressiva redução do déficit; não resolve o problema da inflação, mas contribui para que se evite uma nova aceleração inflacionária; não garantirá uma queda substancial da taxa de juros, mas permitirá uma nova redução dessa taxa; não permitirá que a opção social da política econômica do governo assuma um caráter radical, mas possibilitará que seus gastos sociais aumentem significativamente em termos reais; não estabelece a justiça fiscal neste país, mas assegura ao sistema tributário um caráter mais progressivo. Com este pacote fiscal, a política econômica da Nova República começa de fato. Está no rumo certo, na medida em que se procura reequilibrar as finanças públicas, principalmente através do aumento da carga fiscal – que no Brasil é muito baixa – e secundariamente da redução das despesas públicas, já que o campo de manobra nesta área é limitado. Sem dúvida, é possível reduzir a despesa pública, mas apenas marginalmente. A despesa corrente, de custeio, só poderia ser reduzida com dispensas em massa de pessoal, que não se justificam: poderão ocorrer demissões setoriais e a redução de mordomias, mas o efeito dessas medidas necessárias sobre as finanças públicas é pequeno. Já a redução dos investimentos públicos poderia ser mais significativa, mas implicaria em criar pontos de estrangulamento em setores-chave da economia: na siderurgia, na exploração de petróleo, na produção de energia elétrica, no transporte. Haveria ainda a alternativa de uma redução dos gastos sociais do governo, mas, em um país como o Brasil, onde a miséria e a fome estão diretamente relacionadas com a omissão do Estado, tal tipo de “economia” seria um escândalo.


Para reduzir o desequilíbrio fiscal do Estado, é necessário, portanto, além de lograr a baixa da taxa de juros – já que o déficit fiscal é constituído essencialmente de juros –, aumentar a tributação – e aumentá-la progressivamente. Foi o que foi feito, penalizando-se as rendas mais altas, os lucros no mercado financeiro e os ganhos de capital.Além disso, entretanto, era necessário defender as receitas do Estado contra a erosão inflacionária. Em todos os processos hiperinflacionários que se conhece, o déficit público tende a aumentar como consequência da inflação, à medida que esta se acelera, devido à existência de um espaço de tempo entre o fato gerador do imposto e o momento de seu pagamento. À medida que aumenta a inflação, dado esse intervalo, reduz-se a carga tributária real. Por isso o governo procurou mudar a cobrança do Imposto de Renda para bases correntes. Por isso, as empresas deverão fazer declarações de renda semestrais.Em síntese, existe agora uma política econômica coerente por parte do governo – coerente internamente e coerente com a análise que os economistas da oposição vinham fazendo nos últimos anos do regime autoritário. Essa política não fará milagres, mas mostra que o processo gradual de ajustamento da economia brasileira foi retomado.


A INFLAÇÃO É O GRANDE DESAFIO DO ANO NOVO

João Sayad

22/12/85


Foi com uma honesta sensação de orgulho que assisti, na última semana, a uma reportagem do “Jornal Nacional” mostrando depoimentos de operários do ABC paulista. Com expressões animadas, os personagens contavam como haviam recuperado seus postos de trabalho nas linhas de montagem, depois de anos de desemprego ou de quebra-galhos. Lembrei-me de um artigo publicado nesta mesma Folha, quando ainda secretário da Fazenda de São Paulo, no qual dizia que nenhum princípio de política econômica poderia justificar o desemprego e a humilhação a que estavam submetidos milhões de trabalhadores brasileiros.

Passados nove meses do governo da Nova República, o fantasma da recessão está afastado. Estamos fazendo mudanças. Mudanças no sentido do crescimento econômico, da geração de emprego e da distribuição dos resultados do desenvolvimento. São esses os pontos básicos sobre os quais se elaborou o 1º Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República, para o período de 1986/89. O plano expressa, assim, a convicção de que é possível e, mais que isso, é indispensável manter um crescimento econômico sustentado, de modo a gerar todos os anos os empregos demandados pelos brasileiros que se apresentam no mercado de trabalho.

O balanço de 1985 é, portanto, muito positivo. O produto está crescendo a taxas superiores a 6% ao ano, esta a meta mínima que o governo havia fixado. Cresce em toda parte a oferta de emprego. A política monetária mais recente propiciou a redução das taxas de juros, providência que, associada a um conjunto de medidas do programa econômico do governo, favorece o investimento produtivo e desestimula a especulação financeira. As exportações continuam mostrando bons resultados, confirmando que ainda há espaço para se produzir para o mercado interno, sem comprometer os necessários saldos comerciais.

De outro lado, o governo conteve seus gastos neste ano, com exceção dos investimentos nos programas sociais. Conforme a firme determinação do presidente José Sarney, explicitada logo no início de seu governo, elaboramos o Programa de Prioridades Sociais. Um conjunto de ações nas áreas de alimentação, saúde e habitação, para os brasileiros mais pobres. Estava previsto no orçamento deste ano o gasto de Cr$ 6 trilhões nas áreas sociais. Dobramos esse valor, concluindo o ano com a satisfação de verificar que os programas sociais superaram as dificuldades de falta de verbas e começam a mostrar resultados.

Mas ainda não foi suficiente. O presidente Sarney determinou que 1986 fosse o ano dos programas sociais. Assim, as prioridades de 86 contarão com recursos orçamentários de Cr$ 76 trilhões, o dobro, em termos reais, do que se investiu neste ano. Todos os programas foram reforçados e criaram-se novos, entre os quais se destacam a distribuição de um litro de leite diário para as crianças carentes, a expansão da merenda escolar – a ser servida todos os dias úteis do ano e também para os irmãos menores dos alunos do 1º grau – e a distribuição gratuita de medicamentos básicos.

Finalmente, o programa econômico proposto pelo governo e aprovado pelo Congresso Nacional coloca sob controle o déficit público. Com a forte contenção de gastos públicos e a contração fiscal (que, entretanto, não penaliza a grande maioria dos assalariados), as contas do governo estão equilibradas e a dívida não aumentará mais do que o Produto Interno Bruto.

Considero também, a despeito das dificuldades do final do ano, que obtivemos êxito parcial no combate à inflação. É preciso lembrar o quadro de março de 1985. A sociedade trabalhava então com uma expectativa explosiva de inflação, que ameaçava avançar para 400%. Foi possível conter essa expectativa e segurar a inflação no mesmo patamar do ano passado – mas com crescimento econômico e recuperação real de salários.

Não há dúvida, entretanto, de que ao iniciarmos 1986 a inflação é o nosso maior problema. Aqui, a ação principal do governo está na formulação e execução de uma política de abastecimento que garanta estoques regulares de alimentos e preços agrícolas estáveis. O objetivo é impedir variações repentinas de preços de alimentos, que constituem hoje a principal dificuldade para o controle da inflação. Temos de combinar, portanto, uma política de importações oportunas com o apoio à agricultura. Não se trata de forçar baixas artificiais nos preços de alimentos, porque isso, se controla a inflação de hoje, prejudica a agricultura brasileira e atrapalha mais adiante. Nosso objetivo é obter preços agrícolas estáveis por longos períodos – e isso levará seguramente a uma redução dos índices inflacionários.

Paralelo a isso, o governo está modernizando sua política de controle de preços, de modo a torná-la mais transparente, mais eficaz e compatível com o tamanho e a complexidade atuais da economia brasileira.

Finalmente, o governo, em 1986, continuará apostando na busca de um amplo entendimento social que sustente sua programação econômica com o objetivo de manter o crescimento, o aumento de salários compatível com a evolução da economia e levar à redução da inflação. Isso é o que o governo está fazendo. O resto é falta de assunto.


INFLAÇÃO INERCIAL E CHOQUE HETERODOXO

AINDA A INFLAÇÃO INERCIAL

Ignacio Rangel

5/11/85

A teoria da inflação inercial parece que lançou raízes. Raízes temporárias das modas, que são esquecidas tão pronto se tornam vitoriosas, mas raízes, em todo caso. Parecem duráveis, como as dos nossos jacarandás e como as dos carvalhos de outras plagas. Tem, para isso, o fato de ser plausível, de fácil aceitação, especialmente no que se convencionou chamar de "economia indexada".

Para os economistas, essa teoria é um verdadeiro achado, porque retira o problema da inflação do campo da economia, remetendo-o ao campo da psicologia social. Problema a resolver-se, não por medidas econômicas, mas por artifícios que conduzam a uma miraculosa reversão de expectativas. A partir do momento em que consigamos persuadir as pessoas de que os preços tendem a baixar, ou simplesmente a não subir ou a subir menos, estaria salva a pátria. E este não é assunto para os economistas, mas para os psicólogos sociais ou para os políticos. Se a coisa não der certo, a culpa é destes, não dos inventivos economistas, criadores do mito.

Porque é de um mito que se trata. Quem dedicar alguns minutos ao gráfico da página 50 de meu "Milagre e Anti-Milagre" (Jorge Zahar Ed.), verá que nossa inflação reflete fielmente — ou talvez servilmente — as mudanças da conjuntura, que não constituem problema de psicologia social ou de política, senão de estrito sentido de política econômica. Em outros termos, a inflação é um fato puramente econômico, o qual, consequentemente, só com meios econômicos pode ser abordado. Uma pena para nossa profissão, que não pode distribuir por alheios ombros o peso do problema.

O paradoxo fundamental da nossa inflação reside no fato de que ela se exacerba nas fases recessivas dos ciclos, amainando quando passamos às fases expansivas ou ascendentes. Em outras palavras, a taxa de inflação se eleva quando a demanda torna-se mínima e declina com o advento das fases "a" dos ciclos — nossos ciclos breves ou "jugulares brasileiros". Ora, se, como se tornou elegante dizer, não temos ciclos e nem sequer nos detivemos a correlacionar os movimentos de conjuntura com os da inflação, então esta se converte, de fato, num fenômeno incompreensível, passível de numerosas explicações que não descem ao fundo da questão, mas podem ser mais ou menos plausíveis, embora insustentáveis, como essa inefável teoria da inflação inercial.

Compreende-se que seja indigesto pretender que a inflação é indiferente — ou, pior ainda, comporta-se ao contrário — frente aos movimentos da demanda global. A coisa mudará de aspecto se, em vez de cogitarmos apenas nos níveis absolutos da demanda, o que nos conduziria ao paradoxo supra, cuidarmos dos níveis relativos da oferta e da demanda globais. Em outras palavras: se, conjunturalmente, ao entrar a economia na fase recessiva, declina a demanda, como é esperado, mas declina, mais que proporcionalmente, a oferta, terá havido uma expansão relativa daquela, suficiente para, muito ortodoxamente, exacerbar a inflação. Isto posto, ficamos com o problema — econômico, não de psicologia social — de saber por que, na fase recessiva do ciclo, a oferta se contrairia, nas condições indicadas, isto é, mais que proporcionalmente à demanda.

Nosso ponto de partida está na constatação do fato de que a economia brasileira está fortemente oligopolizada, podendo, em certos casos, operar como se monopolizada fosse (no sentido de monopólio e monopsônio). Em outros termos, o empresariado, quando confrontado com uma demanda (ou uma oferta) atomizada, pode concertar-se para fixar preços administrados do seu interesse, isto é, mais altos, de modo a compensar a contração do volume dos negócios, assim como a elevação dos custos unitários implícita nessa contração.

Mas isto seria apenas o ponto de partida, que não estaria presente no caso de uma economia de competição perfeita, ou quase. Oligopolista ou não, o empresariado, se confrontado com boas oportunidades de investimento, procuraria produzir vultosos excedentes de caixa para aproveitar aquelas oportunidades, e isso representaria uma ameaça à coalizão capaz de fazer o oligopólio operar como se monopólio fosse. Assim, tudo vai ficar na dependência de saber se a economia oferece ou não boas oportunidades de investimento. Isto nos traz, de volta, ao problema do ciclo — do típico ciclo breve brasileiro, que, nas fases recessivas, confronta o empresariado com uma área de capacidade ociosa (sem oportunidades de investimento, portanto) e uma área de pontos de estrangulamento (carregada, portanto, de oportunidades potenciais de investimento, pendentes, entretanto, de condições, inclusive institucionais, para se tornarem efetivas).


PARA FUNARO, AINDA NÃO SE PODE PENSAR EM DESINDEXAÇÃO

Da Redação da Folha

20/12/85

O ministro da Fazenda, Dilson Funaro, 54, disse ontem, à saída do gabinete do presidente Sarney, no Palácio do Planalto, que o Brasil somente pode pensar em desindexar sua economia quando conseguir reduzir a inflação anual para um nível de aproximadamente 10% (equivalente a uma média de 0,8% ao mês). Antes disso, "não podemos pensar seriamente em desindexação".

Funaro negou categoricamente que houvesse proposto um choque heterodoxo para a economia brasileira, através de um "congelamento dos preços e dos salários por algum tempo". Segundo o ministro, embarcar em uma medida deste tipo seria entrar numa aventura. Ele acredita que há perspectivas seguras de que o país pode perfeitamente manter um bom nível de crescimento econômico e ao mesmo tempo reduzir a inflação.

Funaro afirmou que as turbulências enfrentadas hoje pelo comportamento dos preços são passageiras e decorrentes da quebra da safra do centro-sul, "que enfrentou a maior seca dos últimos vinte anos". Para ele, contudo, dentro de sessenta a noventa dias, a inflação retornará ao patamar de 9% a 10% ao mês, que parece ser o índice da inflação inercial brasileira, ou seja, aquela inflação repetitiva, decorrente da indexação da economia.

"A seca não vai durar eternamente", disse. Em breve, o governo dará início à execução de uma nova política de abastecimento, marcada nesta primeira fase por um elevado nível de importação de alimentos. Em seguida, virá a safra e o início de uma nova etapa de aprimoramento dos mecanismos de controle de preços, e a inflação voltará a um nível perfeitamente aceitável. Não há, portanto, segundo Dilson Funaro, razões para que empresários mantenham expectativas de uma inflação de 300% para o próximo ano.

"Nunca passou pela cabeça do governo deflagrar um choque heterodoxo em nosso país. Seriamente, não estamos pensando nisso", disse Funaro. Para o ministro, "o Brasil não é a Argentina, e o Plano Austral não se aplica ao nosso país, simplesmente porque a realidade econômica dos dois países é muito diferente. Os argentinos reduziram drasticamente a inflação e estão também registrando um crescimento econômico de praticamente zero, sem muitas perspectivas de recuperação a curto prazo. Nós, ao contrário, optamos por manter a inflação estável num primeiro momento, reduzindo-a em seguida, mas de modo a garantir durante todo o tempo um crescimento econômico de aproximadamente 6% ao ano, para que possamos gerar novos empregos para os nossos jovens que estão chegando hoje ao mercado de trabalho. Eu nunca falei em choque heterodoxo ou em congelamento de preços e de salários para o Brasil", disse Funaro.


O DIA FOI MUITO TENSO EM BRASÍLIA

Da Redação da Folha

20/12/86

Há nervosismo em Brasília. O governo já sabe que a inflação de janeiro poderá chegar aos 20%, a mais arrasadora taxa da história. É preciso segurar isso de algum jeito. Para frear essa escalada, cogitaram-se duas medidas. Primeira: a desindexação da economia (fim da correção monetária) com o nivelamento dos dissídios salariais e controle de preços. Segunda: liberação total do câmbio.

Faltou consenso e coragem para ir adiante. Não há como prever as consequências. Estudou-se também, como paliativo, a possibilidade única de congelamento de preços e salários por tempo determinado. Os preços seriam congelados, via tabelamento. Os salários, provavelmente através de um decreto-lei. "Não propus, sou contra e acho isso um absurdo", afirmou o próprio ministro da Fazenda em Brasília.

Havia uma profunda irritação ontem entre o pessoal do Ministério da Fazenda. "Congelamento não se anuncia, faz-se". Esta era a frase mais ouvida. A declaração do ministro interino do Planejamento, Andrea Calabi, publicada nesta quarta-feira pelos jornais, teria causado prejuízos. Calabi falava em congelamento de preços, de salários e também em uma reforma monetária. O próprio ministro Funaro admitira na véspera a possibilidade de se promover uma desindexação da economia para conter a alta inflacionária. Mas não se faz isso com inflação superior a 10%, disse depois. Entretanto, o fato de ele ter falado no assunto teria sido a senha para Calabi lançar a hipótese do congelamento, que ele nunca desmentiu oficialmente.


"A Proposta é 'Falta de Assunto'", diz SayadDA REDAÇÃO DA FOLHA20/12/86

"Falta de assunto." Foi com esse comentário que o ministro do Planejamento, João Sayad, 39, respondeu às perguntas sobre o anunciado propósito do governo de adotar o choque heterodoxo – congelamento de preços, salários e reforma monetária – como alternativa para reduzir a inflação. Lembrando que a ideia havia sido lançada por Luiz Gonzaga Belluzzo, chefe da assessoria econômica do Ministério da Fazenda, Sayad reiterou: "Isso é coisa de quem não tem o que fazer". Para o ministro, o choque heterodoxo constitui "um pesadelo".

A preocupação do ministro é com a repercussão dessa notícia no mercado, na medida em que exacerba a especulação, estimula as aplicações no dólar paralelo e no ouro, desviando os investidores das atividades produtivas, como a Folha apurou no Ministério do Planejamento. "É apenas mais uma maneira de fazer inflação", disse Sayad.

A proposta de congelar preços e salários por um determinado período, até quebrar a espinha dorsal da inflação, foi inicialmente feita por Gonzaga Belluzzo e posteriormente assumida pelo próprio ministro Dilson Funaro, com a ressalva de que a adoção da medida dependeria de uma consulta prévia à sociedade, sobretudo aos setores diretamente interessados, como empregados e empregadores.

O secretário-geral da Seplan, Andrea Calabi, enquanto exercia interinamente o cargo de ministro do Planejamento na última segunda-feira, admitiu a possibilidade de o governo adotar o choque heterodoxo, caso a inflação se mantivesse, por meses seguidos, em taxas mensais de 12% a 13%. Todavia, a colocação de Calabi foi rejeitada por Sayad, que se apressou em negar que o governo tenha, em algum momento, examinado a questão.

Nos EUA

Na entrevista coletiva concedida ontem à tarde, no Palácio do Planalto, após ser recebido pelo presidente Sarney, o ministro do Planejamento fez um rápido balanço de sua recente viagem aos Estados Unidos, salientando os contatos feitos com o Banco Mundial, do qual o país receberá, nos próximos dois anos, cerca de US$ 4,3 bilhões em financiamentos, incluindo US$ 800 milhões de cofinanciamentos, recursos parcialmente obtidos de bancos privados para o programa energético brasileiro, por iniciativa do próprio banco.

Sayad disse que o aumento do fluxo de recursos do Banco Mundial poderá, em princípio, substituir a falta de dinheiro novo dos bancos privados e atender às necessidades mais urgentes de investimentos públicos. De qualquer forma, são recursos complementares, que terão de ser incentivados para repor a participação da poupança externa no financiamento do desenvolvimento econômico.

O ministro também mencionou os contatos com autoridades norte-americanas do Departamento de Estado e do Federal Reserve, afirmando ter feito uma exposição sobre o "pacote" econômico e obtido, em princípio, uma receptividade positiva. Contudo, admitiu que as autoridades americanas insistiram que o Brasil negocie com o FMI, ressaltando que essa é uma condição importante para uma negociação com os bancos.

Pazzianotto pede competência e moderaçãoDA REDAÇÃO DA FOLHA20/12/86

O ministro do Trabalho, Almir Pazzianotto, 49, recomendou ontem aos empresários e lideranças sindicais "agirem com competência e moderação em 1986" para evitar um reaceleramento da inflação. Segundo ele, se os trabalhadores se excederem na corrida pela recomposição salarial e os empresários no aumento de seus lucros, todos os ganhos de 1985 estarão perdidos. "Contendo a inflação, o governo poderá manter os ganhos reais dos trabalhadores de forma gradativa e firme", disse Pazzianotto, salientando que, se os trabalhadores exigirem aumentos exagerados, estes serão repassados aos preços, causando inflação e transformando o que os trabalhadores chamam de ganho real em ganho nominal.

Ele opinou que o trabalhador brasileiro ganha muito pouco em relação aos trabalhadores de países ricos, mas que o seu poder aquisitivo não pode ser aumentado à custa da economia. Pazzianotto informou que se encontraria à noite com o ministro da Fazenda, Dilson Funaro, para discutir a proposta de congelamento de preços e salários.

Pazzianotto, que tem se mostrado contrário ao congelamento de salários, informou que o ministro da Fazenda lhe disse que "jamais afirmou à imprensa que o governo pensa em tomar tal atitude" – a despeito do que foi publicado em todos os jornais de ontem –, mas que o governo estaria disposto a tomar qualquer medida necessária para conter a inflação.


Chega de procrastinar

CARLOS ALBERTO LONGO

27/12/85

A economia vem crescendo surpreendentemente bem, os superávits comerciais mantêm-se elevados e o emprego aumentou 7% em 1985. Esse desempenho favorável deu ao governo o direito de regozijar-se e, ao mesmo tempo, eximir-se de eventuais dissabores no "front" inflacionário. Antes que o sucesso lhe suba à cabeça, é preciso reconhecer que o crescimento atual começou em 1984, após o choque de estabilização praticado em 1983 – maxidesvalorização e arrocho salarial. Portanto, não cabe à Nova República, e muito menos à nova equipe da Fazenda, parcela substancial desse dividendo social.

Apesar das insistentes afirmações de que a inflação está sob controle, o governo não conseguiu ainda convencer os principais agentes econômicos dessa possibilidade. Suas exortações para que empresários e trabalhadores arrefeçam suas reivindicações, a projetada ampliação dos seus instrumentos de controle de preços e abastecimento, e suas promessas de que os gastos serão cortados são, ao final, absolutamente ineficazes, se não forem acompanhadas de outras iniciativas.

Com efeito, a inflação trimestral já se instalou na casa dos 340% ao ano, e o governo respondeu, por enquanto, com um pacote financeiro cujos efeitos imediatos não contribuirão para a redução dos preços.

A inércia inflacionária incorporada ao sistema de indexação, cada vez mais abrangente, impede que a inflação recue, mas não que ela suba, num horizonte de tempo razoável – seis meses a um ano. Se o governo continuar insistindo na sua política gradual de combate à inflação, não poderá evitar que tarifas e preços administrados continuem sendo reajustados com maior frequência e, talvez, acima da inflação, para recuperar a compressão dos últimos anos. Os preços agrícolas e industriais seguirão inevitavelmente a mesma tendência, a despeito das intenções dos órgãos controladores. No mercado financeiro, onde os reajustes de preços são diários, a tendência também é de alta – os juros e o câmbio não cedem e, diante de qualquer boato, se elevam.

Essa dinâmica impede, e torna irrealista, esperar que os trabalhadores possam aceitar acordos que contemplem o retorno à semestralidade ou congelamentos. Neste momento, só as estatísticas oficiais projetam uma inflação abaixo de 220% para o ano que vem.

Discussões de políticas de estabilização envolvendo mudanças institucionais – reformas monetária, bancária, cambial, tributária etc. – têm sido descartadas na área econômica, como sendo de alto risco neste momento. Entretanto, é justamente para evitar os riscos de uma inflação galopante e de ver suas reservas minguarem que o governo deveria, agora, mudar sua estratégia. A prioridade dessas reformas decorre da completa exaustão dos seus mecanismos de política fiscal e monetária – a dívida, os gastos e os meios de pagamento crescem automaticamente.

Ressalte-se que o alto nível de crescimento do produto, emprego e salário real permite, ao contrário do caso argentino, mudanças profundas nas regras do jogo, sem sacrificar demais certos segmentos da sociedade. Ademais, questões técnicas relacionadas a essas reformas não são mais complicadas do que as inerentes à Constituinte ou ao eventual pacto social. Enquanto o governo anterior primava pela falta de senso político, este abusa da cautela e da procrastinação. Paradoxalmente, agindo sob pressão, cai no mesmo erro, como na inoportuna troca dos índices e no encaminhamento do recente pacote ao Congresso.


REFORMA MONETÁRIA NO BRASILRUDIGER DORNBUSCH03/01/86

Os ventos da reforma sopram no Brasil. Longe vão os dias em que o desespero com a inflação levou um funcionário do governo a afirmar: "Se a inflação fosse um cavalo, eu já a teria domado." A nova abordagem é expressa em termos de um forte interesse nas reformas monetárias efetuadas em Israel e na Argentina. Ao mesmo tempo, espalha-se um rumor crescente de que algo desse gênero está para acontecer, digamos Cr$ 10.000 = 1 cruzado. O extraordinário sucesso econômico e político das reformas em Israel e na Argentina, atualmente em seu sétimo mês de vigência, certamente encoraja o Sr. Funaro a fazer sua própria tentativa, o que se afigura cada dia mais viável, considerando-se que a ideia de uma estabilização heterodoxa (= ortodoxa + bom senso) tornou-se procedimento aceito até por um FMI inteiramente cético.

Igualmente estimulante é o fato de existir no Brasil uma compreensão e uma tradição intelectual sofisticadas que já tornaram a economia monetária heterodoxa um produto de exportação. A indexação e a rejeição da recessão prolongada levaram os economistas no Brasil a construir uma tradição própria, cujo sucesso inicial foi a estabilização quase sem custos de 1963-4. Há, presentemente, uma enorme oferta de produtos à disposição, desde questionamentos aos fundamentos teóricos dos programas do FMI até receitas para pôr fim à inflação com e sem explosão.

As hiperinflações clássicas dos anos 20 e 40 diziam respeito a taxas inflacionárias de 20.000 ou até mesmo 50.000% mensais. Em termos comparativos, a Argentina e Israel conviviam com taxas inflacionárias de apenas 2.000 a 3.000% anuais no momento em que passaram a adotar o programa de estabilização em junho de 1985. O Brasil encontra-se longe dessas cifras, com taxas de apenas 200 a 300% anuais. Trata-se de algo desconfortável, na medida em que inexistem ainda as vantagens do caos completo: inexiste a necessidade óbvia de se estabilizar agora; amanhã ou o ano que vem são opções igualmente convenientes. E é terrivelmente difícil promover uma estabilização, uma vez que a economia assemelha-se a um trem que corre a duzentos quilômetros por hora e onde cada vagão é empurrado pelo que segue. A inflação de inércia — o conceito introduzido por Felipe Pazos (o nome mais poderoso após Fidel Castro, antes de se tornar o "expert" latino-americano mais criativo em inflação) — acha-se em funcionamento na medida em que os ajustamentos para a inflação passada colidem com a ortodoxia monetária, dando origem a um choque assustador que destroça a prosperidade econômica.

Os meios tradicionais de que se dispõe para pôr termo à inflação consistem no controle rígido da oferta de moeda e em taxas cambiais fixas. A taxa fixa coordena as expectativas da economia em direção a um novo nível de preços. Mas a Argentina e Israel compreenderam que isso não bastava. Martinez de Hoz utilizou taxas fixas em 1978-80 para eliminar a inflação; o resultado dessa opção foi uma supervalorização desastrosa, fuga de capitais e destruição da estabilidade econômica. Aridor cometeu exatamente o mesmo equívoco em Israel. Os dois países tiraram desses fatos a inevitável lição: a ortodoxia monetária deve ser acompanhada por controles de salários e preços como forma de se assegurar que a supervalorização das taxas cambiais não constitua um risco. Um congelamento nos salários e preços não se constituiu em grande problema porque as duas economias já se encontravam indexadas ao dólar em bases mensais ou até mesmo quinzenais.


Consideremos, entretanto, o problema brasileiro. Os ajustamentos demandados pela inflação são realizados semestral ou trimestralmente, razão pela qual não se pode proceder a um congelamento; sempre haverá alguém que obteve acréscimos consideráveis e alguém na posição oposta. O congelamento dos salários dos trabalhadores em termos dessas posições seria politicamente inaceitável. Resulta daí a ideia desesperada de que a inflação deveria ser elevada a um nível suficientemente alto — 2.000 ou 5.000% — para tornar mais fácil a tarefa de sincronização e estabilização. Trata-se de uma ideia terrível. A injustiça e o trauma da transição constituem a imposição de ditadores loucos, jamais a opção de políticos responsáveis. É certo que no Brasil essa política levaria o país em direção à dolarização, uma medida de difícil reversão e de custos extremamente onerosos mesmo após qualquer possível estabilização. Tal opção fortaleceria os elementos autoritários presentes na sociedade e certamente não constitui a forma de se fortalecer um governo visto como frágil.

A outra ideia inaceitável consiste em se pôr fim à indexação após o sucesso da estabilização. Trata-se de uma sugestão extraordinária, inteiramente desprovida de sentido e de responsabilidade política. Não é segredo para ninguém que a distribuição de renda, riqueza e oportunidades no Brasil situa-se entre as piores de todo o mundo. A indexação tem ajudado a mitigar o impacto de choques sobre as rendas reais dos mais pobres de uma forma que o Congresso, através da legislação fiscal, não estaria disposto a fazer. A indexação é, na realidade, uma garantia política e social que tem evitado conflitos sociais traumáticos até o presente momento. De fato, é difícil compreender por que razão a indexação deveria ser eliminada após a estabilização. Não há dúvida de que o principal efeito da eliminação da indexação dos salários seria a promoção de níveis mais elevados de confrontação nas relações de trabalho, na medida em que os trabalhadores se organizariam para concretizar suas reivindicações. O argumento válido para os trabalhadores é igualmente válido para os mercados financeiros. A permanência da indexação tranquiliza os detentores de títulos públicos e dessa forma permite que a atenção mude de curso, passando dos mercados financeiros para a atividade produtiva.

Um dos temas principais que se oferecem ao governo tem a ver com as decisões relativas aos objetivos inflacionários para 1986-7. Existem três possibilidades: 5%, 20 a 30% ou 100%. A primeira corresponde a uma taxa fixa perante o dólar, digamos Cr$ 10.000 (= 1 cruzado) por dólar, com a inflação interna a grosso modo equivalente à externa. A segunda possibilidade reside em uma redução dramática da taxa inflacionária, mas sem o compromisso com uma taxa fixa. A Argentina situa-se em algum ponto desse intervalo. O governo ainda espera que a primeira opção se concretize, embora a realidade se incline para a segunda. A última possibilidade consiste em tentar um truque, com os olhos voltados para a indexação dos anos 60, com o propósito de reverter os riscos de uma aceleração abrupta da inflação, no caminho dos 400%.

A primeira opção parece ser demasiada para um mundo caracterizado pelo "jeitinho". Existe muita incerteza acerca do orçamento e dos choques de oferta para que o objetivo da inflação zero seja razoável. Se os choques de oferta acontecerem na vertente favorável, os resultados também poderão se mostrar favoráveis. Contudo, parece preferível estabelecer-se um objetivo menos ambicioso, algo em torno de 20%. Na ausência de mobilidade do capital e em uma economia totalmente financeira (à semelhança do que ocorre na Argentina), o Brasil poderia efetivamente dispor de alguma liberdade de ação, precisando sacrificar menos os objetivos de crescimento e distribuição, ao invés de enfatizar a busca exclusiva da estabilidade da taxa cambial (atualmente adequada ao caso argentino).

Entre a opção de 20-30% e a alternativa de 100%, a primeira é naturalmente preferível. As dificuldades políticas são basicamente as mesmas, mas o resultado econômico desse processo é bem mais amplo. Com a reforma orçamentária já alcançada em escala substancial, não existem razões para que não se busque esse sucesso. Além disso, o exemplo israelense da tentativa de um congelamento temporário, em janeiro-fevereiro de 1985, mostra que a incerteza sobre a inflação futura arruína definitivamente o pacote, na medida em que todos saem com a ampliação de medidas protetoras, se for o caso...

Se chegarmos a um acordo em torno de uma inflação baixa, 20-30%, como alcançá-la? Entre as inúmeras estratégias propostas neste país, é essencial escolher a mais simples. Não vale a pena uma reforma tão complicada que os políticos dela se afastem simplesmente porque não sabem a quem — se for o caso — estarão roubando ou ludibriando. Um sistema complicado é inútil até mesmo se o conhecimento de álgebra superior puder provar que ninguém será prejudicado. Do cardápio local temos aqui um elenco consistente de medidas simples e essenciais afins à proposta de Larida:

  • Nova Moeda: Os incontáveis zeros atualmente existentes tornam inevitável um ajustamento. Mas existe igualmente um meio excelente para que o governo enfatize seu compromisso com uma política monetária, fiscal e antiinflacionária diversa da atual. O cruzeiro continuará a circular por um período de seis meses e pode ser utilizado para quaisquer pagamentos, particularmente pagamentos ao governo. O cruzeiro será depreciado em termos da nova moeda a uma taxa de, digamos, 12% ao mês. A nova moeda estará vinculada ao dólar e se deprecia inicialmente a 2% ao mês.

  • Entre as alternativas para se lidar com a indexação dos salários, a variante de Daniel Dantas parece ser a mais fácil. Ao invés de tentar sincronizar os salários ou trazê-los até o "Dia D", cada contrato permanece válido até que chegue seu tempo de ajustamento normal. Nesse ponto, o contrato é ajustado em termos da nova moeda ao salário médio do período precedente.

  • A redução abrupta da inflação em razão da depreciação reduzida da nova moeda, o novo sistema salarial e as taxas reduzidas de crescimento nos preços do setor público exigem um ajustamento nos contratos existentes, especialmente nos mercados financeiros. Duas possibilidades estão à nossa disposição: ou a reforma automática de todos os contratos a uma indexação "ex-post" ou o anúncio de medidas ao estilo argentino.

  • O governo persegue a política normal de tomada de decisões em termos de preços em setores monopolistas e impõe um imposto sobre lucros em excesso das empresas que elevam os preços mas não investem.

A estabilização bem-sucedida traz consigo, sempre e em todos os lugares, dois problemas. O primeiro é que as instituições financeiras cresceram demasiadamente rápido durante a inflação e precisam ser postas em ordem tão logo as pessoas deixem de ficar obcecadas com a erosão monetária em seus bolsos. Trata-se de um problema muito sério em uma economia onde as instituições já são frágeis e onde uma dívida pública volumosa continua a ser passada de mão em mão como batata quente. O melhor a fazer é pensar adiante e determinar a forma de se ordenar e promover a fusão do sistema financeiro, bem como vender bancos falidos a estrangeiros de modo a conseguir umas poucas libras sob o plano Baker.

A outra finalidade reside no fato de que a estabilização digna de confiança sempre leva a taxas reais de juro extremamente elevadas. Essas taxas — 50 a 60% na Argentina, ainda hoje — equivalem a dizer que as dívidas acumuladas crescem a tal ponto que, na verdade, em última instância ameaçam causar o caos financeiro à semelhança do que fez a inflação anterior. A medida prudente a ser tomada aqui consiste em monetizar o mais possível do débito na noite anterior à reforma. Existe uma relação entre a credibilidade e as taxas reais de juros, mas a experiência sugere que aquilo que acontece na noite anterior é julgado com muito menos rigor do que o que vem a suceder na manhã seguinte.

A estabilização da inflação varia de um país para outro. Frequentemente existem impostos sobre a riqueza, poupança compulsória, uma redução da dívida pública, uma desvalorização inicial. Nada disso ocorre aqui. Mas existe também uma lição comum a toda estabilização. O fato universal nos mostra que, imediatamente após a reforma ser posta em prática, o mercado paralelo do dólar entra em colapso. Na Argentina, o declínio ultrapassou 40% da noite para o dia. Eis aqui um conselho: se você acredita que a reforma será efetivada, venda os seus dólares antes que os demais o façam.

Traduzido do inglês por José Fernandes Dias


A PROPOSTA DE REFORMA DE DORNBUSCHGILBERTO DUPAS12/01/86

O interessante artigo de Rudiger Dornbusch, publicado neste jornal (dia 3 deste mês), merece uma ampla reflexão. Sob o pressuposto de que o Brasil estaria pronto para uma profunda reforma monetária que levasse a uma estabilização dos preços, Dornbusch examina alternativas para uma terapia de choque que pudesse, ao estilo argentino, levar a inflação a um patamar dez vezes inferior ao atual.

Começando por afirmar que o sucesso econômico e político da opção argentina é extraordinário, Dornbusch conclui que isso "encoraja o Senhor Funaro a fazer sua própria tentativa, o que se afigura cada vez mais viável". Ele justifica a tradição brasileira em indexação, rejeita a recessão prolongada e aponta o "sucesso da estabilização quase sem custo de 63/64".

Dada a seriedade e a familiaridade com os problemas brasileiros que Dornbusch sempre demonstrou, e levando em conta o momento pelo qual passa o país, parece-me necessário questionar algumas das interessantes premissas e conclusões por ele levantadas.

A comparação com o caso argentino deve ser vista com muitas ressalvas. Uma economia já fortemente desestruturada e dolarizada, convivendo simultaneamente com uma inflação de 2.000% ao ano e com o fantasma das Malvinas, tem muito pouco que sirva de comparação com a atual situação brasileira. Ainda assim, o sucesso "político e econômico" mencionado por Dornbusch, além de duvidoso, reside muito mais na coragem da tomada das medidas de choque e na falta de qualquer outra alternativa, dadas as circunstâncias. As consequências têm sido penosas; a recessão aumentou, e o povo, preocupado com a defesa da democracia, suporta-a estoicamente como um sacrifício de guerra.

Da mesma forma, a afirmação de Dornbusch de que a estabilização brasileira em 64 foi um sucesso quase sem ônus também merece reparos. Ela se viabilizou através de um forte corte de crédito e de salários, gerando consequências penosas. A recuperação que se seguiu, o início da "fase do milagre", só foi possível em função de uma grande capacidade ociosa (no primeiro momento), de um modelo concentrado e, mais tarde, do maciço endividamento externo para suportar novos investimentos. A recessão paira sempre como um preço inevitável.

Mas a dúvida fundamental quanto à proposta de Dornbusch passa pelo diagnóstico da inflação brasileira. As medidas propostas por ele partem do pressuposto de sua natureza essencialmente inercial, diagnóstico com o qual não concordo. É absolutamente claro que os preços saltaram de 100% a 200% entre a primeira e a sétima Carta de Intenções ao FMI, em função do modelo exportador imposto para viabilizar o pagamento (pelo menos dos juros) da dívida externa. O choque de oferta dos produtos agrícolas (dada a prioridade às culturas de exportação) e as maxidesvalorizações cambiais (visando a melhoria da competitividade) explicam substancialmente esta aceleração.

A inflação brasileira já dava claros sinais de uma nova mudança de patamar no final de 84. A amortização dos juros externos, o peso crescente da dívida interna e a escalada nos preços dos alimentos só permitiram manter um índice de 10% ao mês (215% anualizados) em novembro e dezembro, graças ao controle artificial das tarifas públicas. Elas acabaram reajustadas em 45% no primeiro bimestre de 85, evitando uma inflação da ordem de 12% ao mês (290% anualizados) no final de 84.

Durante a Nova República, a opção (correta e inevitável) pela elevação dos salários reais e a consequente retomada do crescimento adicionaram componentes de choque de demanda ao quadro já agravado pela escassez de alimentos, fruto da terrível seca. Esta não é, pois, uma inflação essencialmente inercial. Ela continua sofrendo de razões estruturais que tendem a empurrá-la para um patamar mais alto.

Esta discussão sobre a natureza atual da inflação é extremamente relevante. Um patamar inflacionário estável, numa economia indexada, neutraliza as perdas e as transferências de renda. Numa inflação, porém, pressionada por choques de oferta e de demanda, a questão fundamental é como procurar atenuar ou eliminar essas causas, mantendo o crescimento econômico. A reforma monetária teria que vir também para isto, ou de pouco adiantaria. A aceleração da inflação continuaria (ou até poderia aumentar). Apenas estar-se-ia trabalhando num referencial de patamar substancialmente mais baixo. Enfrentar a fundo as causas da inflação brasileira herdada teria que significar atitudes penosas de atribuir ou distribuir perdas: ao nível da dívida externa (hipótese que os credores consideram absurda), da dívida interna (o que diriam os detentores de títulos públicos?), ou da erosão do salário real, com descontinuidade na recuperação econômica (politicamente inviável).

Ora, se a inflação brasileira fosse meramente inercial (com um patamar estável em 200%), bastaria o governo tirar alguns incômodos zeros do cruzeiro (e chamá-lo de "cruzado", por sugestão de Dornbusch) e pronto! Uns 10% ao mês, estáveis, não difeririam muito de 2% ao mês, mantidas as atuais premissas de indexação e periodicidade das correções salariais. Se, no entanto, pressões inflacionárias continuam em vigor, é ilusório imaginar que uma reforma monetária, tabelando a inflação em 2% ao mês, possa resolver o problema. Talvez, no máximo, o adiasse um pouco.

A hipótese de Dornbusch de manter o cruzeiro atual em circulação, durante algum tempo, congelando sua correção em 12% ao mês, é engenhosa e poderia servir de alternativa para as "tablitas" argentinas. Se a inflação estiver estável em 12% ao mês e, portanto, nos 2% ao mês na nova moeda, é possível administrar a conversibilidade entre o dinheiro novo e o dinheiro antigo. Se, porém, a pressão inflacionária estiver agindo antes da reforma, ela continuará presente após a reforma. E aí, um novo patamar de inflação será apenas um ponto de partida. Se não forem controladas as suas causas, a emenda poderá ficar pior que o soneto...

Não nos esqueçamos de que reformas traumáticas desse gênero ocasionam, a curto prazo, um enorme rebuliço no mercado financeiro e nos agentes econômicos em geral. Se o objetivo for fazer uma reforma que, no seu bojo, contemple desvalorização de ativos financeiros (o que pode trazer consequências complexas para os perdedores e efeitos políticos delicados para o governo), aí sim a própria reforma poderia implicar uma contribuição efetiva para o alívio das pressões inflacionárias. A fórmula, neste caso, poderia ser simples ou complicada. Dornbusch sugere que seja simples. Justifica-se de uma maneira estranha: "Não vale a pena uma reforma tão complicada que os políticos dela se afastem simplesmente porque não sabem a quem — se for o caso — estão roubando ou ludibriando". Uma visão cética, sem dúvida, mas que implica (ainda que veladamente) a natureza traumática de uma tal reforma, que ele afirma "cada vez mais viável".

Ainda segundo Dornbusch, várias instituições financeiras quebrariam após a reforma, já que "cresceram demasiadamente rápido durante a inflação e precisam ser postas em ordem tão logo as pessoas deixem de ficar obcecadas com a erosão monetária em seus bolsos". Dornbusch sugere, de maneira insólita, "vender bancos falidos a estrangeiros de modo a conseguir umas poucas libras sobre o plano Baker". O que não parece, definitivamente, uma ideia prudente.

Em síntese, uma reforma monetária como a preconizada por Dornbusch, embora engenhosa e interessante, não me parece eficaz e oportuna no atual momento do país. E pode ser bastante traumática. Por enquanto, é preferível lutar para manter um patamar inflacionário com o qual se possa conviver algum tempo, enquanto se tenta minimizar os choques de oferta e de demanda. Se isto se mostrar impossível e os preços dispararem, aí sim poderemos ter um grande problema. Que talvez precise de soluções de choque. E com muitos perdedores.


O GELO NA TESTAJOELMIR BETING19/12/85

Congelar preços, juros e salários para rebaixar a inflação equivale a uma violenta intervenção sobre os efeitos do processo inflacionário, sem o enfrentamento direto de suas causas. O expediente heterodoxo coloca a autoridade econômica na mesma posição da junta médica que prefere derrubar a febre alta do paciente com a simples aplicação de um bloco de gelo sobre a cabeça do doente. Confunde-se, no caso, inflação reprimida com inflação suprimida.

Pois o Brasil volta a discutir, bravamente, o congelamento sumário do preço, do juro e do salário. Um debate reinstalado pelo próprio ministro Dilson Funaro e pelos secretários-gerais Andréa Calabi, da Seplan, e Luiz Gonzaga Belluzzo, da Fazenda. Economistas, empresários e sindicalistas, do lado de fora do governo, entram na discussão efervescente: choque por decreto ou pacto negociado?

De preferência, um congelamento geral negociado ponto a ponto por ministros, empresários, sindicatos, bispos, juristas, deputados, senadores e economistas...

Bem, parece que o pacto, vulgo "entendimento nacional", vai ficar para o "depois da Copa do Mundo": é preciso curtir a prosperidade consumerista do primeiro semestre, com a redução de até 75% do Imposto de Renda recolhido na fonte, na esteira da trimestralidade na recomposição dos salários. Depois da seleção, vem a eleição. E uma eleição brava, a dos governadores, a dos constituintes congressuais...

Logo, se o congelamento fizer uso do entendimento, a coisa fica para o Natal de 1986. Por decreto — bem, isso pode acontecer antes do próximo Carnaval.

Com pacto ou sem pacto, cabe investigar a natureza mesma do choque heterodoxo, congelamento dos efeitos da voragem inflacionária. Toma-se como exemplo o caso da Argentina, agora reforçado pelo caso de Israel. Os dois países quebraram a espinha da inflação a golpes severos de congelamento de preços, juros e salários, com forte arrocho de crédito e maxidesvalorização cambial... Resultado: argentinos e israelenses conseguiram acabar com o carrapato da carestia, matando a vara da economia. A recessão e o desemprego tomaram conta da sociedade. A poupança ociosa, por conta da retração do investimento, buscou refúgio nos ativos paralelos, não produtivos. De preferência, especulação cambial e migração do capital. Essa "outra face" do chamado Plano Austral — a da recessão mais que ortodoxa — não está em discussão em Buenos Aires. Nem em Brasília. Ou no suspiro do caboclo mineiro:

"O pessoal tem inveja da pinga que eu bebo, porque não conhece o tombo que eu levo..."

Argentina e Israel não são referências confiáveis. Suas estruturas econômicas, sociais, políticas, jurídicas e culturais são diferentes das nossas. Elas estão sob o impacto de pressões econômicas e de tensões políticas que não lembram as do Brasil. E dispõem de gorduras sociais e de reservas culturais para a absorção do tratamento de choque, mais choque que tratamento. A cegonha foi cassada, a população não cresce, a taxa demográfica vai de 0,9% em Buenos Aires a 1,2% em Tel Aviv. Enquanto Israel sobrevive em "estado de guerra" permanente, para fora, a Argentina ainda vive em "estado de guerra" suja para dentro.

Ambas as economias estão sucatadas, na lona e no pasmo, com produtividade negativa, asfixiadas por governos bem mais pesados que o nosso. Os argentinos não contam com o resseguro monetário da indexação plena. A poupança interna não tem proteção contra os corrosivos da inflação, o mercado financeiro não existe, o monetário ainda não foi inventado. Maior o banco, maior o risco, mais feio o tombo.

Tomar o Plano Austral como "bom exemplo" para o Brasil é ignorar a relatividade da engenharia social, segundo a advertência de George Orwell, que dispensa apresentação: "A verdade econômica é a fantasia organizada." O choque corretivo, no caso brasileiro, consultaria a doutrina da "recessão purgativa" monitorada pelo FMI, rasgando a promessa de palanque da Nova República: não se faz o ajuste do mercado com a fome do povo sem emprego. Que tal hospedar, com o tratamento heterodoxo (ou monetarista), um desemprego ostentoso de um quinto da força do trabalho, taxa de desocupação proclamada pela CGT peronista?

E que tal dar uma espiada no desvio cultural do mercado? No Brasil, controla-se o salário bitolado. E quem vai patrulhar o preço congelado em 4,6 milhões de pontos de venda? E o choque do "desinvestimento" sobre a oferta futura? E a cobrança dos juros reais por fora da raia dos juros tabelados? A recessão "corretiva" de 1981/83 derrubou a inflação brasileira pela metade? E cadê o tratamento heterodoxo dos gastos do setor público?

Recomendo, com urgência, a leitura de "A Inflação Brasileira", de Ignacio Rangel. O livro saiu em 1950.


PRÉ-REQUISITOS PARA A REFORMA MONETÁRIALUÍZ BRESSER PEREIRA31/12/85

Nas últimas semanas, os boatos sobre um possível choque heterodoxo somaram-se à percepção de que o patamar de inflação havia se elevado. O resultado foi uma generalizada sensação de intranquilidade e uma perda de confiança na estabilidade do sistema de combate à inflação. Fala-se que seria necessário um presidente com o carisma de Alfonsín para comandar a reforma. Não é verdade. A autoridade do presidente Sarney é mais do que suficiente. Mas é fundamental que a sociedade como um todo não suporte mais a inflação. Que entenda que o sistema de indexação não neutraliza todos os efeitos negativos da alta generalizada de preços. Ora, essa convicção indignada contra a inflação ainda não existe no Brasil.

Não há razão para toda essa preocupação com um choque heterodoxo — ou seja, o congelamento total de preços, salários e taxa de câmbio em um dia D. Primeiro, porque ele não deverá ocorrer em um futuro próximo, e segundo, porque, quando ocorrer, não trará maiores prejuízos para ninguém.

No livro Inflação e Recessão, que escrevi antes que o congelamento geral fosse batizado de choque heterodoxo, denominei essa estratégia de "política heróica de combate à inflação". Heróica porque radical, heróica porque envolve alguns riscos para a economia e muitos para seus autores, que poderão perder seus cargos caso ela não logre eliminar a inflação. Não se deve, entretanto, exagerar esses riscos, porque quando não dá certo, como ocorreu em Israel na primeira tentativa, pode-se tentar uma segunda vez, como está ocorrendo agora. E o mais provável é que dê certo, como aconteceu com o Plano Austral na Argentina.

Para que uma reforma monetária desse tipo seja bem-sucedida, são necessários certos pré-requisitos que ainda não existem no Brasil. Por isso, é um equívoco ficar aguardando o congelamento para breve. Não basta que a inflação tenha um forte componente autônomo ou inercial, decorrente da indexação formal e informal da economia. É preciso que os preços relativos estejam ajustados e é preciso, principalmente, que os reajustes de preços estejam razoavelmente sincronizados. É necessário também que o déficit público seja suficientemente pequeno para que possa ser definitivamente colocado sob controle no momento do choque. E, fundamentalmente, que haja uma profunda indignação contra a inflação.

O equilíbrio dos preços relativos e a sincronização dos ajustamentos de preços são essenciais para que, no dia D, ninguém perca nem ganhe com o congelamento. E é exatamente por isso que, quando ocorrer o choque, este não trará maiores prejuízos para ninguém. Caso haja grandes beneficiados e grandes prejudicados, a reforma monetária fracassará, porque os perdedores não descansarão enquanto não aumentarem seus preços.

O grande problema para a reforma no Brasil é a falta de sincronização dos reajustes salariais. Existem propostas de tabela de conversão para, no dia D, transformar todos os salários na nova moeda; e existe a ideia de deixar os salários na moeda antiga até o dia do próximo reajuste. Mas sempre é necessário a conversão, de acordo com uma regra complicada e de difícil compreensão para os trabalhadores. Na Argentina, os salários eram reajustados mensalmente. Por isso foi possível fazer o congelamento em um dia 15, quando o salário nominal era igual ao salário médio real. No Brasil, será necessário primeiro resolver este problema para depois pensar no choque heterodoxo. Enquanto isso, não resta outra alternativa para o governo senão procurar controlar a inflação através de política administrativa de controle de preços e rendas.

Porque, além da falta de sincronização dos reajustes salariais, o outro requisito inexistente na economia brasileira para uma reforma monetária é a indignação contra a inflação. Fala-se que seria necessário um presidente com o carisma de Alfonsín para comandar a reforma. Não é verdade. A autoridade do presidente Sarney é mais do que suficiente. Mas é fundamental que a sociedade como um todo não suporte mais a inflação. Que entenda que o sistema de indexação não neutraliza todos os efeitos negativos da alta generalizada de preços. Ora, essa convicção indignada contra a inflação ainda não existe no Brasil.

ESTRATÉGIA DE COMBATE À INFLAÇÃOJOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS5/01/86

O novo ano começa com um recado generalizado quanto ao curso futuro da inflação. Corretamente, as pessoas estão percebendo que caminhamos para um novo patamar inflacionário, superior aos 9/10% da maior parte do ano passado. Como consequência, e da mesma forma que foi observado em situações anteriores, todos esperam que "algo seja feito". O que isso pode significar nos dias de hoje?

Existem duas grandes possibilidades: a manutenção da estratégia gradualista que tem marcado a política econômica ou a implementação de uma estratégia de choque, agora não mais definida à la FMI, mas sim à la Argentina ou Israel.

Sobre a estratégia gradualista, temos escrito recentemente. Trata-se aqui de complementar o pacote tributário com uma política sobre gastos (incluindo aí a Sest, fundos e programas etc.), com a colocação de ativos junto ao público (capitalização, privatização) e com a operacionalização de uma política de abastecimento que contemple pesadas importações de alimentos. A grande vantagem desta estratégia é possibilitar a manutenção de um razoável crescimento econômico, num ano de fundamental importância política. Sua limitação reside no fato de que o melhor resultado em termos de inflação é sua estabilização nos níveis de 1985.

Por outro lado, o charme da política de choque é a possibilidade de se derrubar radicalmente as taxas de aumento de preços, pelo menos numa fase inicial do programa, como atestam as experiências de Israel e Argentina.

Entretanto, a julgar pelo que tem publicado a imprensa, não nos parece que a maioria das pessoas esteja avaliando com cuidado o que significa exatamente um choque heterodoxo. Em particular, parece-nos que, ao início de 1986, todas as considerações apontam no sentido de que uma política dessa natureza tem alta probabilidade de ser uma aventura fadada ao desastre, pelas seguintes razões:

  1. Questão de preços relativos: Todos os analistas concordam que um congelamento de preços e salários não pode ser feito quando preços importantes estão subindo em termos relativos. Ora, é de todos sabido que, em virtude da seca, os preços de produtos agrícolas estão em alta. Da mesma forma, vários preços públicos terão que ser reajustados em termos reais, particularmente o petróleo. Como então ficariam os salários e os preços industriais? Como tratar uma eventual inflação em dinheiro novo?

  2. Questão da sincronização: No Brasil, os salários são legalmente reajustados a cada seis meses, com algum tipo de antecipação trimestral; outros preços, como o câmbio, são reajustados diariamente. A maioria dos produtos industriais está entre esses extremos. Como fazer a sincronização?

  3. Questão da poupança: Uma política de choque poderia gerar uma desconfiança no sistema, detonando um processo de fuga para ativos reais e dolarização generalizada. Como ficaria o carregamento das dívidas públicas e privadas? Como fixar a taxa de câmbio se o mercado paralelo disparar? Como fixar a taxa de juros sem provocar uma enorme recessão da demanda?

  4. Questão do crescimento econômico: Como digerir a enorme recessão implícita numa política dessa natureza?

Em resumo, não nos parece que se esteja levando em conta as dificuldades e o custo de uma política de choque. Mais ainda, e permeando todas as questões anteriores, sobressai a questão política: como pilotar o ano da Constituinte "queimando" as bandeiras da descompressão salarial e criação de empregos, carro-chefe da Nova República? Todas essas questões sugerem que a atuação da política heterodoxa, nas condições de hoje, pode ser altamente enganosa. Embora de resultados pobres no que tange à inflação, a estratégia gradualista parece a única dentro dos limites do possível.


PLANO AUSTRAL NO BRASIL É LOUCURAMARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE9/12/86

Em primeiro lugar, alguns conceitos importantes na compreensão do fenômeno inflacionário:

  1. Quanto mais alta a taxa de elevação dos preços, mais frequentemente as pressões inflacionárias terão origem no chamado "conflito distributivo". Em outras palavras, quando a inflação passa a afetar com maior intensidade as rendas das classes sociais de menor poder de barganha, mais frequentes e visíveis tornam-se as tentativas de preservar suas parcelas na distribuição da Renda Nacional, repassando custos. Tornam-se também mais generalizadas as elevações de preço de caráter preventivo, antecipando futuras perdas de renda oriundas da exacerbada inflação. Portanto, quanto mais elevadas as taxas de inflação, mais generalizado torna-se o uso da indexação dos preços, formal ou informalmente.

  2. Quanto mais generalizado for o uso da indexação de preços, mais improvável e inoperante torna-se o uso de uma das mais comuns e eficientes maneiras de desvalorização de passivos, que é a corrosão das dívidas pela inflação, e, consequentemente, a transferência de renda de credores para devedores. Assim, por um lado, a indexação generalizada da economia torna a inflação menos distorciva em seus efeitos na distribuição da renda, tornando mais fácil conviver com ela; por outro, impede que o fenômeno da inflação seja debelado pela imposição de perdas definitivas a determinados segmentos econômicos.

Tendo como pano de fundo estas observações, cabe perguntar qual a exequibilidade da adoção, a curto prazo, de medidas de choque no combate à inflação brasileira. Não há dia sem que corram rumores sobre o iminente congelamento de preços e de salários, reforma monetária e desindexação, medidas estas que comporiam um tratamento de choque no combate à inflação. Parece haver consenso quanto às características essencialmente recessivas dessa terapêutica, pois envolveria não somente o desestímulo aos investimentos privados, como também cercearia os níveis de demanda por bens e serviços, tanto por parte do governo quanto dos assalariados.

Em termos de efeitos finais, o que diferencia o choque ortodoxo do choque heterodoxo é, em última análise, o fato de que, no primeiro caso, a recessão, causada por políticas fiscal e tributária apertadas, acarretará perdas aos agentes econômicos pela via do desemprego; já no segundo caso, as perdas são impostas de forma institucional, e somente depois, com a realização daquelas perdas, é que surgirão os efeitos contracionistas na demanda agregada. É simplesmente uma questão de saber dentro de qual invólucro ocorrerá a inevitável recessão e consequente ajustamento e compatibilização entre renda e reivindicações sobre essa mesma renda. Dentro do figurino ortodoxo, a recessão distribui as perdas de forma menos concentrada do que no quadro de reformas de choque. A recessão e o desemprego afetam, com maior ou menor intensidade, a todos, ao passo que as medidas de choque concentram seu poder de fogo em segmentos econômicos bem identificados.

Em essência, portanto, o chamado tratamento não convencional no combate à inflação produzirá um generalizado desaquecimento do nível de demanda; e, embora venha acompanhado de medidas de efeito psicológico, como a reforma monetária, o cerne do programa está no cerceamento da expansão do nível de atividade interna. Contudo, há uma sensível diferença entre o tratamento ortodoxo, homeopático, e o tratamento de choque, alopático; trata-se da forma e da truculência com que o segundo impõe perdas de renda a determinados segmentos econômicos.

No dia a dia, os reajustes de preços não ocorrem no mesmo momento, e o congelamento instantâneo de preços e salários poderá impor severas perdas de renda não previstas e/ou não desejadas. Esta é a essência da questão da sincronização dos reajustes de preços, sendo uma importante razão para a inviabilidade de um tratamento de choque no Brasil. Igualmente, um plano ortodoxo no estilo Bulhões também é inviável na medida em que não há condições políticas para a aceitação de um novo processo recessivo em nosso país. Vale lembrar que a Argentina já se encontrava dentro de um quadro recessivo quando da implementação do "plano austral", ao passo que o Brasil vive um dos momentos de maior crescimento de sua história.

Os chamados planos heterodoxos ainda esbarram em dois outros obstáculos. O primeiro é a dificuldade em controlar salários, sem o que o congelamento de preços terá repercussões mais dramáticas que a recessão, comprometendo a sobrevivência do setor produtivo privado. A indisposição das lideranças sindicais para negociar em bases realistas e a agressividade de suas reivindicações são fatores que inibem totalmente a viabilidade das medidas de choque, e qualquer tentativa naquela direção, sem as necessárias precauções, só poderia ter efeitos desastrosos para o país. O segundo grande obstáculo é a incapacidade do governo em controlar seus próprios dispêndios; é verdade que a inevitável desindexação, ao impor pesadas perdas aos detentores de ativos financeiros, deverá reduzir um importante foco de pressões nos gastos públicos – o serviço da dívida interna; mas para o sucesso de um plano de reformas econômicas é imprescindível que o setor público esteja sob controle, mesmo porque as taxas de juros internas deverão permanecer elevadas para inibir maciças fugas de capital do circuito financeiro. No Brasil, não há, atualmente, condições para a adoção de um "plano austral", e fazê-lo seria uma redobrada loucura.


Aqui está o texto corrigido com erros gramaticais e ortográficos ajustados:

O GOVERNO ENFRENTA UM DILEMA FUNDAMENTALCELSO MARTONE9/2/86

A taxa de inflação está se acomodando, pelo menos temporariamente, num novo patamar em torno de 300 a 350% ao ano (entre 12 e 13% ao mês a partir de março). Devido aos mecanismos de indexação existentes na economia, bastam alguns meses para que essas mudanças de patamar inflacionário ocorram e se consolidem de forma irreversível.

A economia dispõe de defesas suficientes para absorver essa mudança e conviver com ela sem uma desarticulação de seu sistema produtivo, como a experiência dos últimos cinco anos tem demonstrado. Entretanto, a atual conjuntura envolve dois fenômenos novos, que a tornam mais instável do que as situações anteriores. Um paralelo simples pode ser feito com o ano de 1983, quando a inflação mudou de um patamar de 100% para 200% ao ano. Naquela época, a economia estava em recessão, com capacidade ociosa generalizada na indústria, e o governo dispunha de instrumentos diretos para reduzir os salários reais. A conjugação desses dois fatores permitiu que o novo patamar de 200% fosse mantido por três anos. A queda dos salários reais e a manutenção do regime semestral de reajuste foram os amortecedores fundamentais da inflação naquele período.

A situação da economia hoje é diferente. De um lado, ingressamos no terceiro ano consecutivo de crescimento e muitos segmentos da indústria já operam à plena capacidade. De outro lado, os salários reais têm crescido substancialmente nos últimos doze meses, empurrados pelos ganhos de produtividade industrial, pelas antecipações trimestrais e pela permissividade do governo. Sem os mecanismos diretos e indiretos de controle salarial, estamos a um passo da trimestralidade. Isso significa que o cenário está sendo montado para que a economia ingresse finalmente na dinâmica hiperinflacionária tão conhecida de outros países: uma espiral salários-preços engendrada pela sincronização (aumento de frequência) dos reajustes.

Ademais, numa economia operando a pleno emprego, torna-se essencial a retomada dos investimentos privados para expandir a capacidade futura e moderar as tensões de demanda. No entanto, com as expectativas de uma hiperinflação pela frente e de um eventual tratamento de choque pelo governo, as empresas preferem manter-se líquidas a congelar recursos em capital fixo. A inibição dos investimentos, por seu lado, agrava a pressão inflacionária.

Nessas condições, o governo está diante de um dilema fundamental. De um lado, pode insistir na sua política gradualista, baseada na redução do déficit federal, nos controles de preços e na tentativa de um acordo com as lideranças sindicais para moderar a ascensão dos salários reais. Além da baixa probabilidade de sucesso dessa política, seu objetivo é muito limitado. Na verdade, ela não resolve os problemas básicos da economia (a inflação e a retomada dos investimentos); apenas retarda por algum tempo uma solução mais abrangente.

De outro lado, o governo poderia precipitar uma reforma monetária de longo alcance para remover definitivamente os desequilíbrios internos e abrir espaço para um crescimento sustentado com estabilidade de preços no futuro. Entretanto, tecnicamente falando, a economia ainda não está madura para a reforma, assim como faltam as condições de coesão e autoridade política para tal passo. Uma tentativa frustrada de reforma poderia lançar a economia na hiperinflação com recessão, o que significaria um custo político proibitivo para o governo.

Envolvido nesse dilema, o governo está aguardando a evolução econômica dos próximos meses para decidir. O fator mais importante nessa decisão será, sem dúvida, o comportamento do mercado de trabalho, pois é aí que reside a dinâmica da inflação. Trimestralidade, recomposição salarial acima do ganho de produtividade e greves seriam os sintomas claros de que a hora do tratamento de choque é chegada. Se esse quadro se materializar, a evolução da inflação torna-se uma questão quase aritmética, e a economia poderia ingressar numa fase de crescente instabilidade. Em face de um fato quase consumado, não restaria ao governo outra alternativa senão aventurar-se ao tratamento de choque, com todos os seus riscos.

A reforma monetária no Brasil é uma questão de tempo e de oportunidade. Na melhor das hipóteses, talvez o governo consiga retardá-la para o próximo ano, enquanto constrói as condições econômicas e políticas que aumentem sua probabilidade de sucesso. Isso envolveria uma política fiscal extremamente apertada no ano eleitoral de 1986, assim como uma expansão modesta dos salários reais (sem trimestralidade). Na pior das hipóteses, ela poderia ser implementada ainda neste ano, sob condições econômicas e políticas desfavoráveis. O dilema é complexo. A própria percepção da possibilidade de reforma pelos agentes econômicos os leva a ações que, no agregado, ajudam a precipitá-la, colocando o governo em um "corner".

É preciso enfatizar, contudo, que uma mudança institucional abrangente como a reforma monetária, dependendo das condições em que seja executada, não é um desastre como muitos tendem a imaginar, nem envolve efeitos redistributivos insuportáveis. Pelo contrário, pode ser o caminho para uma nova fase de expansão econômica e de bem-estar social no país.


PROBLEMA NO BRASIL, DIAGNÓSTICO E TERAPIAARMÍNIO FRAGA NETO9/2/86

Pouco a pouco começa a surgir um consenso quanto às origens da inflação brasileira. O veredito final aponta para mais de um culpado, dando razão tanto à ortodoxia quanto às visões alternativas. Boa parte da culpa recai sobre a inércia decorrente de um sistema de indexação total da economia à inflação passada. Sem os mecanismos de indexação, os choques de oferta (máxis, safras etc.) que nos vêm atingindo desde 1979 não teriam tido um impacto inflacionário nem tão grande nem tão duradouro.

Além disso, talvez ciente de que a não acomodação monetária aos choques teria levado a economia indexada à recessão (como em 1983), o governo optou, em geral, por aumentar a oferta de moeda em paralelo à inflação.

Conclui-se, portanto, que a inflação brasileira é altamente inercial, e que o maior componente da inércia esteve durante os últimos anos na própria inércia da política econômica, que não combateu a indexação e o desequilíbrio fiscal e monetário. Uma vez aceito o diagnóstico aqui proposto, esta terapia é óbvia. Mas nem por isso sua implementação é fácil. O equilíbrio das finanças públicas se choca com as demandas do processo político e da máquina estatal. A desindexação gera o medo de diversos setores, especialmente os assalariados, de sair perdendo na distribuição do bolo.

As medidas econômicas adotadas recentemente pelo governo demonstram que a inflação já começa a incomodar o suficiente para compensar os custos de sua adoção. O pacote fiscal aprovado na virada do ano deu o primeiro passo, aumentando a arrecadação tributária e, ainda que timidamente, cortando gastos públicos. Desta forma, abre-se espaço não apenas para a eventual estabilização conjunta de preços e da oferta monetária, mas também para a queda dos juros e o aumento do investimento privado. Outras medidas incluem o controle de preços industriais e de tarifas de bens e serviços públicos, a estabilização da oferta agrícola, através da importação de alimentos, e a reforma bancária. Os controles de preços e tarifas não combatem as fontes primárias de inflação. Devem, portanto, se nortear apenas por critérios de eficiência, evitando práticas monopolistas e dando os incentivos de preços corretos.

A estabilização da oferta agrícola parece oportuna, especialmente enquanto não se desindexa a economia. A reforma bancária, leia-se fim da conta-movimento, também é um ponto positivo e importante, na medida em que elimina um foco de despesas extra-orçamentárias e dá mais transparência às contas públicas. As reformas fiscal e bancária indicam que o governo está empenhado em criar as condições monetárias básicas para uma eventual redução da inflação.

Resta, portanto, o problema da indexação. Por ora, ainda não se cogita oficialmente nenhuma medida de choque. Mas a expectativa geral é de que um plano de congelamento geral, nos moldes dos recentemente adotados na Argentina e em Israel, possa se fazer necessário, especialmente caso se consolide um novo patamar inflacionário na casa dos 14 a 15% ao mês.

Apesar de eliminar, pelo menos por algum tempo, a inércia, o choque heterodoxo enfrentaria obstáculos terríveis. A cristalização de preços e remunerações relativas na economia, ainda que bem planejada e executada, certamente provocaria a necessidade de um realinhamento no futuro. Troca-se o problema inercial pelo de descongelamento sem recrudescimento da inflação. Decorre daí que não há como fugir de uma estabilização ortodoxa que traga consigo uma âncora para os preços e permita a resolução dos desequilíbrios de preços relativos ("conflitos distributivos") a um nível de inflação próximo de zero. O congelamento e a desindexação apenas fazem com que os custos de estabilização sejam menores.

O governo encontra-se, portanto, diante de um dilema. A curto prazo, não convém politicamente atacar o problema inflacionário e incorrer nos custos da estabilização. A médio e longo prazo, a retomada sustentável do crescimento requer o fim da inflação e a criação de um ambiente propício ao investimento. Como sempre, a tentação do curto prazo tende a dominar as decisões, mas esperamos que não por muito tempo.


CARTA ABERTA AO MINISTRO DA FAZENDATHOMAS J. SARGENT26/1/86

Não invejo o cargo que o senhor ocupa. O senhor parece ter tantas responsabilidades e, em contrapartida, tão pouco poder. Sem dúvida alguma, o senhor — ou um de seus sucessores — terá, em breve, que adotar algumas medidas fiscais desagradáveis. Essas medidas poderão, certamente, ser adiadas por mais algum tempo, a expensas, contudo, da aceitação de custos cada vez maiores em termos da severidade dos ajustamentos que, mais cedo ou mais tarde, terão que ser feitos. Seu cargo é hoje tão difícil porque seus predecessores optaram por adiar a resolução desses problemas.

A aritmética e os juros compostos conferem essa feição desagradável às opções que o senhor tem à sua frente. O senhor (ou um de seus sucessores) terá que implementar pelo menos uma (e, provavelmente, mais de uma) destas medidas: redução drástica das compras governamentais, elevação drástica da carga tributária ou não pagamento de parcela substancial da dívida governamental interna e externa. O senhor cuida das questões fiscais de um governo que atualmente gasta muito mais do que arrecada, implicitamente e explicitamente, através da taxa inflacionária. O sinal mais evidente da deficiência na carga tributária, comparada com os gastos governamentais, pode ser encontrado no fato de que o governo toma emprestado internamente quantias cada vez maiores. A aritmética mostra que as políticas atualmente seguidas podem ser mantidas unicamente se o governo puder continuar a tomar emprestado quantias cada vez maiores, em termos reais, nos mercados interno e externo. O senhor não poderá fazê-lo por muito mais tempo. Há limites a essa tomada de empréstimos, mesmo para um país com recursos tão consideráveis quanto o Brasil. Esse limite é imposto pela forma como os emprestadores de dinheiro encaram a capacidade brasileira de gerar excedentes capazes de assegurar o serviço da dívida. O Brasil já atingiu o limite do empréstimo internacional. Internamente, um quadro sombrio se delineia para o governo: trata-se dos limites do empréstimo interno, caracterizados pelas elevadas taxas reais de juros, da ordem de 15% anuais. Quando o país tiver esgotado todas as oportunidades internas e externas de empréstimo, o senhor terá forçosamente que promover um dos seguintes (e desagradáveis) ajustamentos: elevação de impostos, redução dos gastos governamentais ou não pagamento de parte da dívida. A aritmética que conduz a uma certa combinação desses ajustamentos está no cerne do problema — não pode ser evitada.

O aspecto mais evidente dessas dificuldades reside na inflação acelerada com a qual o senhor se defronta atualmente. Trata-se, na verdade, de um sintoma desses problemas, um sintoma que expressa causas mais profundas e que não poderá ser contido sem que se faça frente a essas causas mais profundas. Ao emitir moeda rapidamente com vistas ao financiamento do governo, o Banco Central prepara uma inflação anual de 250%. Ao fazê-lo, opera abertamente como agente efetivo do fisco interno. A inflação é bastante útil na medida em que lhe proporciona um "imposto inflacionário" de magnitude significativa, algo em torno de 2% de seu produto nacional bruto. A inflação mostra-se indispensável enquanto não foram feitos ajustamentos em outros elementos de sua política tributária e de gastos. Tecnicamente, o senhor poderia deter a inflação (ainda que apenas por um tempo) simplesmente ordenando ao Banco Central que pare de emitir moeda. Contudo, o senhor teria que encontrar uma compensação para as receitas perdidas por ter aberto mão do imposto inflacionário. Na situação atual, isso teria que ser feito através de empréstimos sob a forma de ORTNs. Mas o governo já paga taxas reais de juros muito elevadas sobre essa dívida. Dessa forma, empréstimos ainda maiores simplesmente aumentariam os pagamentos do principal e juros que o senhor (ou seus sucessores) terá que fazer posteriormente. Essa taxa elevada de juros reais, atualmente paga, está levando a dívida interna a assumir, hoje, contornos explosivos. A taxa real dos juros que incidem sobre a dívida interna indexada ultrapassa em muito a taxa de crescimento sustentável de seu produto nacional, o que equivale a dizer que sua dívida indexada cresce cada vez mais se comparada ao crescimento do produto nacional. Não há como fazê-lo indefinidamente. A redução da taxa inflacionária, através do aumento da tomada de empréstimos no mercado interno, afigura-se contraproducente na medida em que equivale ao repasse, para seus sucessores, de uma dívida ainda maior do que aquela já representada pelas políticas atuais. Dessa forma, meu conselho inicial seria a contenção da taxa inflacionária, até o momento em que sejam feitos outros ajustamentos nas finanças brasileiras.

Os problemas orçamentários são gerados pela necessidade de se fazer face aos vultosos pagamentos dos juros das dívidas interna e externa controladas pelo governo. Em termos econômicos, os pagamentos de um grande volume de juros da dívida externa agem à semelhança dos pagamentos da indenização de guerra que levaram a Alemanha à hiperinflação em 1922 e 1923. Para o senhor, o crescimento inesperado das taxas reais de juros sobre a dívida externa, ocorrido no início desta década, teve o efeito de propiciar uma elevação nesses pagamentos de indenização. Essa elevação dos juros afeta o ministro da Fazenda do Brasil como afetou os ministros da Fazenda da Alemanha nos primeiros anos da República de Weimar, gerando uma pressão irresistível a favor da utilização de políticas financeiras inflacionárias. A hiperinflação alemã chegou a seu termo somente quando o país obteve a ajuda concedida pela Comissão de Reparação sob a forma da promessa de revisão substancial da dívida produzida pelas indenizações de guerra. É possível que a inflação brasileira não chegue a seu termo até que a dívida do país seja reduzida por iniciativa de seus credores. Talvez o senhor se veja compelido a lidar com uma hiperinflação com o objetivo de convencer seus credores acerca da necessidade dessa ajuda.

Existem, não obstante, diferenças entre a situação alemã após a Primeira Guerra Mundial e a situação brasileira de nossos dias. A dívida alemã foi imposta pelos aliados. A brasileira foi livremente negociada por seu governo — embora, ao contratar esses empréstimos, tanto seu governo quanto os emprestadores externos provavelmente contassem com a persistência das taxas reais de juros aos níveis mais baixos praticados na década de setenta. Ao findar-se a guerra, a Alemanha tinha perante si juros volumosos incidindo sobre a dívida pública interna constituída em marcos alemães e cujo encargo financeiro real sobre o governo foi eliminado pela inflação. O senhor e seus predecessores optaram por responder à dificuldade de obtenção de novos empréstimos externos através da tomada de empréstimos no mercado interno sob forma indexada e a elevadas taxas reais de juros. O senhor não pode simplesmente cancelar essa dívida interna lançando mão de mecanismos inflacionários, à semelhança do que fez o governo alemão. A dívida interna indexada é, na verdade, uma bomba-relógio.

Admito agir de forma um tanto impertinente ao trazer estas considerações desagradáveis à sua atenção. Afinal de contas, ao longo dos últimos quatro anos, o governo de meu próprio país vem seguindo as mesmas políticas fiscais cujas implicações aritméticas menciono aqui (de fato, ainda não nos valemos da taxa inflacionária, mas o valor real dos juros que incidem sobre a dívida tem crescido em decorrência dos déficits governamentais sem precedentes em tempos de paz, bem como dos efeitos das elevadas taxas de juros sobre a dívida governamental). Admito, igualmente, que a adoção dessas políticas pelo governo norte-americano provavelmente contribuiu para a elevação das taxas reais que incidem sobre a dívida externa brasileira. Isso, contudo, não diminui a relevância dessas considerações, na medida em que se aplicam de idêntica forma ao Tesouro norte-americano. Ademais, as autoridades fiscais de meu país são muito mais poderosas que o ministro da Fazenda do Brasil, de vez que controlam o valor do dólar, a moeda na qual foi constituída a dívida externa brasileira, bem como as dívidas interna e externa norte-americanas. Ao produzir uma inflação imprevista, as autoridades fiscais de meu país possuem o poder de efetuar o não-pagamento de nossa dívida pública, bem como o não-pagamento de parte da dívida brasileira — um poder que o ministro da Fazenda do Brasil não detém em suas mãos.

Thomas Sargent

31 de dezembro de 1985


O DESGASTE DO GOVERNO SARNEYENCRUZILHADAFERNANDO HENRIQUE CARDOSO2/2/86

As observações do Sr. Sargent parecem ter despertado reações positivas entre assessores do Ministério da Fazenda e em outros círculos. É curioso. Ele disse apenas o que muita gente vem dizendo, e ultimamente a Nova República vem fazendo.

De fato, o dilema nacional não pode ficar restrito aos temas de "parar de crescer" para cortar a inflação e pagar a dívida (como?) ou disparar o crescimento da economia sem olhar para a hiperinflação. Chegou a hora não só do bom senso, mas da verdade. O bom senso e a justiça social clamam por expansão econômica, melhoria de salários e distribuição de rendas. A verdade requer que se diga também que, se houver crescimento dos salários, dos juros e das rendas acima do aumento da produtividade, e se o Estado pagar sempre as contas da administração e de suas empresas sem considerar a eficiência, tudo acabará indo por água abaixo.

A dificuldade está em não confundir as coisas. Nem todas as empresas estatais são ineficientes, e sem um forte setor público, as economias capitalistas dos países em desenvolvimento não prosperam. A partir desta afirmação, não se deve desdizer que, portanto, toda empresa estatal é boa para o país. A Espanha, ainda agora, faz o que pode, com um governo socialista, para livrar-se do parasitismo da parte arcaica de seu setor produtivo estatal.

O governo da Nova República, se quiser ser consequente com o que prega, isto é, crescer para redistribuir, deve continuar combatendo a alta taxa de juros, chegar a um ajuste com os sindicatos que assegure salários que cresçam pari passu com a produtividade, e tem razão ao aumentar a carga impositiva. No entanto, não pode descuidar do próprio quintal: há de enfrentar os marajás da burocracia do setor produtivo estatal.

Não é justo fazer com que este setor essencial de nossa economia seja apenas castigado. Mas não podemos fechar os olhos aos riscos de pressões corporativas que sejam cegas às necessidades gerais da economia. Só que, para isso, é preciso legitimidade. É necessário mostrar à população que se está levando adiante uma política austera, mas justa. Quer dizer, que ao controlar a inflação e recuperar as finanças, faça, ao mesmo tempo, o que sempre se proclama, mas pouco se realiza: uma política de acesso à terra para quem dela precisa, uma ação contínua de melhora do salário mínimo real e uma luta constante para eliminar os bolsões de miséria dos desempregados, dos ultra mal pagos e dos demitidos.

Sem esse compromisso, o alerta do Sr. Sargent será visto pelo povo com desconfiança: austeridade para quem? E a história, de tão repetida, não convence mais ninguém.


A ANSIEDADE PERMANECE

EDITORIAL

10/2/86

Não há como negar que as medidas de política econômica adotadas pelo governo no final de 1985 e no início deste ano constituíram passos necessários e corretamente direcionados no sentido de enfrentar a questão inflacionária, cujo agravamento se coloca como "o problema maior da conjuntura econômica". Assim, apesar de suas conhecidas distorções, o pacote fiscal de dezembro procurou atacar o déficit governamental, enquanto que, em janeiro, adotaram-se providências importantes do lado monetário, como a nova sistemática de controle das operações realizadas pelo Banco do Brasil por conta do Tesouro e a ampliação do recolhimento compulsório sobre os depósitos de poupança e sua transferência para o Banco Central.

Juntamente com essa combinação de medidas monetárias e fiscais, conforme anunciado pelo governo, a estratégia da política econômica seria completada com dois outros ingredientes, com vistas a assegurar-lhe efetivas possibilidades de sucesso. O primeiro deles seria uma política de abastecimento e de controle de preços, destinada a evitar que os efeitos da seca sobre a produção agrícola e as contínuas remarcações de preços continuassem representando importantes focos de pressão inflacionária. O segundo seria uma tentativa de moderar as reivindicações salariais - outro foco igualmente importante - por meio de um entendimento com as classes trabalhadoras, juntamente com a definição de limites específicos para os reajustes no âmbito do setor público.

Que avaliação pode ser dada, hoje, à provável eficácia de todo esse conjunto de medidas? Pelo lado fiscal e monetário, essa avaliação continua positiva, embora permaneçam indagações quanto ao efetivo montante de receita a ser obtido como resultado do pacote de dezembro, ao mesmo tempo em que há dúvidas quanto à capacidade governamental de resistir às pressões de gastos num ano eleitoral.

No que diz respeito à política de abastecimento e de controle de preços, há justificadas razões para ceticismo quanto ao seu sucesso. Não há precedentes que inspirem confiança na competência governamental para gerenciar um programa de importação de alimentos da magnitude que se pretende, fazendo-os chegar ao país a tempo hábil. Muito menos é tarefa simples superar internamente todas as dificuldades de transporte, armazenamento e comercialização, que são capazes de impedir a oferta de gêneros aos consumidores a preços condizentes com um arrefecimento das tensões inflacionárias. Ao contrário, mesmo quando era o caso de proceder a importações de menor porte, o que a história registra são inúmeras iniciativas malogradas. Desencadeado agora o novo esforço, prevalece um sentimento generalizado, nas áreas econômicas, de que é preciso ver para crer.

Na questão dos salários, a avaliação resulta ainda mais frustrante, porque o governo ainda não passou da fase de ensaios no seu tão anunciado propósito de obter moderação mediante entendimento. Brevemente, o país será submetido a um teste crucial: é no mês de abril que anualmente ocorre a primeira das mais importantes rodadas de negociações coletivas, com destaque para a dos metalúrgicos do ABC paulista, que dão o tom de reivindicações para várias outras categorias nos meses seguintes. Note-se que acabaram de anunciar um elenco de reivindicações que, se atendido e generalizado às demais categorias, comprometerá sem dúvida o conjunto da política anti-inflacionária do governo. Todas essas inquietações que emergem da análise da política governamental recebem ponderação diversa entre os que discutem o desempenho da equipe liderada pelo ministro Funaro. De qualquer forma, não há dúvida de que, no seu conjunto, elas estão contribuindo para diminuir a credibilidade no sucesso da política econômica colocada em prática. Recorde-se que tal credibilidade é indissolúvel desse mesmo sucesso, pois é típica do fenômeno inflacionário a sua componente psicológica, sendo difícil esperar uma queda da inflação se não for disseminada entre os agentes econômicos a crença de que isso irá acontecer.

Principalmente no âmbito empresarial, é patente a corrosão sofrida pela confiança no sucesso das medidas tomadas pelo governo, o que dificulta suas decisões, principalmente aquelas ligadas à ampliação dos investimentos, indispensável à retomada do crescimento em bases sustentáveis. Às dúvidas sobre a eficácia das medidas tomadas, acrescentou-se o agravante das diversas previsões governamentais quanto à taxa de inflação de janeiro, persistentemente superadas pelos levantamentos parciais que se tornaram conhecidos ao longo do mês e definitivamente enterradas quando se verificou, afinal, o lamentável recorde histórico de 16,2%. Neste mês de fevereiro, já se manifestam sintomas de que as previsões governamentais serão mais uma vez superadas, novamente com efeito corrosivo sobre a credibilidade da equipe econômica governamental. Não é de espantar, assim, que o presidente do IBGE tenha se recusado a apresentar suas estimativas. Recorde-se também o abalo sofrido em dezembro, quando integrantes do governo revezaram-se no anúncio e no desmentido da perspectiva de um tratamento de choque, ainda que revestido de uma roupagem heterodoxa.

É imperioso, frente a esses sinais de desgaste da sua credibilidade, que o governo defina melhor os rumos de sua política, tornando mais transparentes os resultados alcançados com as medidas fiscais e monetárias, esclarecendo com detalhes em que estágio se encontram as importações de alimentos. Mais que isso, deve assegurar sua determinação em não transigir quanto aos objetivos a que se propõe, resgatando a eficácia dos controles de preços e trazendo ao plano do concreto suas intenções no "front" salarial. Em outras palavras, é preciso dissipar as dúvidas que a política enfrenta quanto à sua eficácia, coerência e amplitude.

Impõe-se também que o governo se empenhe em recuperar o que já perdeu de credibilidade, pois os degraus que já desceu fazem parte de um caminho que se costuma trilhar com mais celeridade do que se pensa. Deve particularmente manifestar mais cuidado com o efeito que suas afirmações e previsões, comprometidas pelo otimismo, podem exercer sobre as expectativas dos agentes econômicos.

Sem que a política econômica passe por esse aprimoramento de conteúdo e por essa mudança de atitude, a nação não irá compartilhar a crença quase mística que o ministro Funaro deposita no sucesso dessa política, nem haverá perspectiva de que tal sucesso se torne realidade; ao contrário, as constantes e irresponsáveis pressões inflacionárias ameaçarão precipitar o governo e o país em uma crise de consequências imprevisíveis, mas certamente traumáticas.


AS CONTRADIÇÕES DOS PEEMEDEBISTASGilberto Dimenstein19/12/86

Em meio a várias reuniões que se prolongam pela madrugada, o presidente do PMDB, deputado Ulysses Guimarães, 69, ensaia uma espécie de grito de independência em relação ao governo. O líder do PMDB na Câmara, Pimenta da Veiga, 38, diz a amigos que não se sente "à vontade" para permanecer no cargo. Exaltado, o governador de Minas, Hélio Garcia, 54, afirma: "O PMDB não é o governo". E a chamada ala "progressista", em reservados encontros, discute um estrondoso rompimento. O motivo alegado para a "rebeldia": a "Nova República" tornou-se "conservadora". O motivo real: descontentamento na repartição dos ministérios e receio de que uma vinculação ao Palácio do Planalto não seja bem-recebida nas urnas.

Numa conversa com amigos, ontem, o ex-ministro da Justiça, Fernando Lyra, 47, fazia comentários sobre as contradições de seu partido: "O PMDB quer ser independente, mas quer ter cargos no governo". Lyra acredita que, sem um discurso "avançado, pregando mudanças", a oposição ganhará espaço e votos. Por este motivo, a "esquerda" do PMDB mostra-se temerosa de sucumbir nas próximas eleições diante das cobranças, por exemplo, de melhores salários.

Há, de qualquer forma, uma repentina mudança de discurso em líderes do PMDB. O deputado Airton Soares (SP), 40, vice-líder do partido na Câmara, prega agora um comportamento independente. Há poucos dias, falava em outro tom: afinal, estava cogitado para assumir um ministério. O presidente chamou-o às pressas de Recife, onde pretendia brincar o Carnaval. "Fique em Brasília", pediu, durante encontro de três horas no Palácio da Alvorada. Soares estava convencido de que seria convocado. O entusiasmo fez com que ele lançasse um inesperado protesto contra o bloco "Pacotão", cujo samba-enredo era "Je Vous Salue, Marly", numa referência à mulher de Sarney, Marly Sarney. "É um desrespeito", disse a jornalistas.

Esta linha de prudência foi seguida por outros líderes de "esquerda", como o deputado Alencar Furtado (PR), 60, que, depois de um encontro com o presidente, saiu com a impressão de que poderia, talvez, ser agraciado com um ministério. O deputado Miguel Arraes, 69, candidato ao governo de Pernambuco, chegou a dar uma entrevista elogiando o governo, rompendo seu habitual mutismo. Ele não queria que nenhum adversário fosse beneficiado - e queria, quem sabe, colocar alguém de sua confiança. Festejou quando cresceu a cotação e a quase confirmação de Dorany Sampaio para a Sudene.

Irritado por não ter conseguido "fazer" um ministro na área econômica e o presidente do BNDES, o governador Hélio Garcia praticamente rompeu com o governo. Candidato à Presidência da República, Garcia aposta numa postura independente como um caminho ao prestígio político. De resto, não ganhou os cargos que queria para utilizar na campanha. "Ele não deveria brigar com o governo só porque não conseguiu dois empregos", diz Airton Soares.

Pior para Ulysses Guimarães, que, ao contrário dos tempos de Tancredo Neves, teve pouca influência. Num prêmio de consolação, Sarney deixou-o indicar o ministro da Previdência e Assistência Social.








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