"Tente de novo. Fracasse de novo. Fracasse melhor." Samuel Beckett
Roberto Campos – 23/02/1992
A julgar pela temperatura do Congresso, caminhamos para meias soluções. A reforma fiscal se limitaria a simplificar o número de fatos geradores, mantendo-se os impostos clássicos. No caso da Previdência Social, adotar-se-ia um sistema misto: a previdência estatal continuaria compulsória (até cinco salários mínimos), a previdência privada seria opcional a partir desse nível. O máximo que se pode esperar dessas meias soluções é transformar um tumor num furúnculo. Mas o sangue continuaria infectado.
Sob o pretexto de proteger os mais pobres - supostamente ineptos para fazer suas próprias opções -, eles ficam obrigados a dar contribuições ao Estado. Este conhecido malfeitor as malversará como sempre fez no passado. Os benefícios pagos aos mais pobres minguarão cada vez mais, na medida em que grupos de pressão conseguem aposentadorias precoces, especiais ou múltiplas. É o que recente estudo do Ibmec descreve como a "face trágica" da Previdência Social no Brasil: "Em dólares de 1990, o benefício médio caiu cerca de 55% em duas décadas, passando de US$1.935, em 1972, para US$ 845, em 1990".
Paralelamente ao declínio do benefício médio, há uma concentração dos benefícios nos grupos reivindicatórios. As aposentadorias especiais representam 2,54% dos contingentes assistidos e 7,22% do gasto; e as aposentadorias por tempo de serviço favorecem 10,38% dos assistidos e sugam 31,4% do valor dos benefícios. Não é de admirar que entre os maiores defensores da "justiça social" da Previdência figurem precisamente os beneficiários dessas aposentadorias. Alguns têm até aposentadorias múltiplas. A justiça social para eles começa em casa.
A obrigatoriedade da previdência estatal é injusta para todos. Para os pobres, porque ficam escravizados à ineficiência do Estado, esperando nas filas pelos funcionários grevistas. Para os remediados e ricos, porque têm de pagar duas vezes. Contribuem para o Estado, por imposição autoritária, e participam de sistemas priva- dos, por desconfiarem do Estado. Para as empresas, porque sob o peso dos encargos têm de montar sistemas paralelos, despedir gente ou submergir na marginalidade.
A ação governamental seria mais barata e menos burocratizada se o governo, em vez de prover diretamente os benefícios, garantisse aos pobres o acesso a eles, complementando a renda daqueles que, ao longo da vida laboral, não tivessem acumulado poupança suficiente para garantirlhes uma renda mínima na aposentadoria. Isso seria equivalente a um imposto de renda negativo, idéia que não provém de socialistas e sim do grande patrono da economia liberal - Milton Friedman. Naturalmente, ficaria sempre aberta a opção da previdência pública para os masoquistas que preferem sofrer nas mãos do Estado. O único método justo e democrático é o direito de opção para todos. Isso é o que defendem os partidários da economia liberal.
Neste momento, em que mundialmente se redesenha o Estado, é preciso que aprendamos no Brasil que obrigação governamental de prover serviços sociais não é a mesma coisa que produzilos. O Estado é melhor provedor do que produtor, seja no campo econômico seja no social. Em quase todas as áreas do setor privado há excesso de oferta. Em todas as áreas do setor público há déficits de oferta. Isto se aplica tanto a escolas, hospitais e esgotos como a telefones, eletricidade e transporte.
O sistema fiscal brasileiro, de outro lado, atingiu um grau inacreditável de burocratização e corrupção, coisas intimamente ligadas. Segundo diagnóstico recente da consultoria Booz Allen para a indústria automobilística, há 53 tributos e 20 encargos sociais. A biblioteca da burocracia exige dez livros contábeis, 16 livros fiscais, seis societários e três trabalhistas. As declarações fiscais e trabalhistas são 24 (sete para o ICMS, seis para o IPI, cinco para o ISS e seis para a Receita Federal). Os documentos trabalhistas são 12. Não é de admirar que a expansão da economia informal seja uma resposta racional a essas brutalidades.
No tocante ao sistema fiscal, há consenso no Congresso sobre a necessidade de simplificação e racionalização. Mas não falta quem queira recomplicar o sistema pela imposição de novas alíquotas, criação de um imposto sobre grandes fortunas e de novas contribuições previdenciárias. É a raça dos "socialistas", que adoram fazer justiça com o dinheiro dos outros.
Várias propostas melhorativas têm sido feitas, notadamente as dos professores Ives Gandra Martins e Paulo Rabello de Castro, assim como do deputado Luiz Carlos Hauly. Todas têm uma vantagem e um defeito. A vantagem é a simplificação, o defeito é a superstição dos subconjuntos.
As figuras tributárias clássicas - Imposto de Renda, consumo, patrimônio, circulação de bens e serviços e contribuições previdenciárias - nasceram antes da era da moeda eletrônica e da informática bancária. A coleta tinha de ser ligada a um fato gerador concreto. A evolução tecnológica possibilita hoje a tributação do grande conjunto – as transações financeiras -, através do sistema bancário.
E o Brasil apresenta condições ideais para essa solução revolucionária. A moeda física representa proporção inexpressiva do PIB e a moeda eletrônica é o grande meio corrente de pagamento. Enquanto não substituirmos a tributação sobre os subconjuntos clássicos, passando a tributar, através de um imposto sobre transações, o grande “conjunto da moeda eletrônica”, não conseguiremos escapar às várias burocracias do Fisco - a federal, a estadual, a municipal e a previdenciária. E, naturalmente, à burocracia de obediência das empresas.
Parecem-me patéticos os esforços do secretário da Receita para extrair dos contribuintes mais de US$10 bilhões, ou seja, 2,5% do PIB. O rapaz quer desvirtuar o instituto do sigilo bancário, o que significa maior impulso à economia informal e à fuga de capitais; exige que os bancos lhe forneçam um cadastro de depositantes, o que aumentará os custos bancários e equivale a confessar que a Receita Federal, por desorganização administrativa, perdeu seu cadastro. Quer contratar mais fiscais, o que significa aumentar o número de achacadores. No Brasil há mais “sócios” do Fisco do que “agentes” do Fisco. Ora, os custos de arrecadação do atual sistema tributário - profundamente injusto porque deixa de fora o setor informal e boa parte das entidades governamentais - são estimados em 3% e 4% do PIB, tomados os três níveis de governo.
Isso torna mais que oportuno dar-se séria consideração à proposta saudavelmente radical do professor Marcos Cintra e do deputado Flávio Rocha do imposto sobre pagamentos bancários, como o único imposto de natureza arrecada- tória. No mínimo economizaria 3% a 4% do PIB, com uma enorme agilização econômica, pelo desaparecimento da burocracia e da corrupção.
Se eliminados os outros impostos, a cumulatividade do imposto sobre transações, considerada um defeito, seria apenas uma forma inteligente de progressividade, porque as classes de renda mais alta efetuam mais transações e compram produtos mais sofisticados. A preocupação redistributiva se faria sobretudo no direcionamento de gastos, o que não interferiria (corno o Imposto de Renda o faz) com a criatividade dos mais capazes e a energia dos mais diligentes.
Tenho medo das meias medidas. A previdência estatal compulsória é, para os pobres, urna carícia de Mike Tyson, ou seja, um estupro. A reordenação das figuras tributárias clássicas só seria um progresso no sentido do apotegma de Samuel Beckett, isto é, uma maneira de fracassar melhor.