A política econômica agrícola brasileira tem se caracterizado por sua complexidade. A agricultura sente a intervenção governamental através de manipulações de preços de insumos, preços de produtos, impostos, quotas de comercialização, quotas de produção, importações supletivas e corretivas, crédito rural, entre outros. Estranhamente, no entanto, a manipulação de todas essas variáveis não obedece a nenhum processo de coordenação central, o que poderia emprestar alguma racionalidade a esse fantástico caleidoscópio. Frequentemente, algumas variáveis são alteradas independentemente das demais, criando sérios problemas de coerência entre fins e meios utilizados.
Recentemente, tem-se observado que o crédito rural foi posto no banco dos réus, suscitando um grande número de sugestões como referência à reformulação de sua sistemática. Vejamos inicialmente alguns dados sobre o problema.
De acordo com os dados do censo de 1970, somente 5% das propriedades rurais de até 10 hectares obtiveram alguma forma de financiamento. Estas propriedades (até 10 hectares), embora representassem aproximadamente 50% das propriedades agrícolas brasileiras, ocuparam 3% da área dedicada a atividades agrícolas e produziram 18% do valor total da produção agrícola.
Em contraste, para enfatizar os extremos, 25% das propriedades de mais de 100 hectares obtiveram crédito rural. Sua totalidade, conforme pode-se constatar na tabela anexa, representava menos de 10% do total das propriedades, mas ocupava mais de 75% da área agrícola e produzira, em 1970, mais de 40% do valor da produção agropecuária brasileira. Os restantes 40% de propriedades, entre 10 e 100 hectares, que ocupavam 20% da área e produziram 40% do produto, tiveram aproximadamente 13% de seu número total contempladas com concessão de crédito rural.
O resultado final é que somente 10% das propriedades agrícolas brasileiras obtiveram crédito, denunciando proporção bastante inexpressiva.
Supondo-se, muito conservadoramente, que em cada classe de propriedades agrícolas a produção dos estabelecimentos contemplados com crédito seja igual às demais da mesma classe, tem-se que os 10% das unidades de produção que obtiveram crédito contribuíram com aproximadamente 16% da produção agrícola total.
Segundo os dados do recadastramento de 1972 do Incra e mantendo-se as hipóteses aventadas acima, resulta que os mesmos 10% dos imóveis que obtiveram crédito foram responsáveis por 19% do valor do produto comercializado; as propriedades das classes 0-10 hectares produziram 0,3% do total comercializado, as da classe 10-100 hectares produziram 5,8% e as demais de 100 hectares, 13,8%.
Outro dado significativo é que o volume de recursos à disposição da agricultura vem crescendo a taxas bem mais altas que o crescimento do produto agrícola. Em 1960, por exemplo, foram necessários Cr$ 13,00 de crédito para cada Cr$ 100,00 do produto agrícola obtido; em 1973, Cr$ 52,00 de crédito para Cr$ 100,00 de produção. Mais impressionante ainda é o fato de que em 1960 o montante do crédito de investimento representava 6% do valor de produção agrícola, ao passo que em 1973 ele representava 30%, o que demonstra crescentes investimentos por unidades de produto agrícola. Em outras palavras, a taxa de investimento na agricultura tem crescido a taxas consistentemente mais altas que a taxa de crescimento da produção.
Com base nesta evidência, o crédito rural tem sido duramente criticado, e temos assistido a tentativas de reformular sua sistemática de utilização. A grande linha mestra desta reformulação seria a reorientação do crédito para a propriedade agrícola de menor área que até então não teria gozado das benesses que o crédito rural subsidiado pode oferecer.
Outras peças que compõem o enorme mosaico da política agrícola brasileira. Fundamentalmente, a política de crédito subsidiado se contrapõe à política restritiva de preços agrícolas numa tentativa de viabilizar, via preços baixos de alguns insumos, a atividade agropecuária voltada para o mercado.
O crédito rural subsidiado, no entanto, demonstrou claro desvio em favor de gastos com investimento. Tal orientação, reforçada pela influência dos setores industriais produtores de bens de capital para a agricultura que desta forma conseguiram ampliar significadamente seu mercado, tem levado o produtor a uma situação de supercapitalização. Já foi sugerido, e parece razoável se supor, que o produtor agrícola brasileiro, face a taxas de juros reais negativos, objetiva a maximização de seu patrimônio líquido e não a maximização de sua renda líquida. Face a uma política restritiva de preços, não é surpreendente que a agricultura de mercado tenha grandes dificuldades em remunerar seu capital investido. Esta situação justifica a alegação de que frequentemente o crédito rural é utilizado para a compra de terras e de equipamentos sem a equivalente expansão da produção, justificando a alegação popular de que "o fazendeiro só fica rico quando vende a fazenda" ou que "fazendeiro sempre deixa viúva rica".
A passagem de uma situação como a descrita acima, a uma situação de crescente endividamento é só questão de tempo. O agricultor passa a depender da obtenção de crédito, não somente para a própria amortização da dívida contraída, como também para possibilitar a obtenção de uma remuneração mínima para o seu capital investido.
O crédito rural brasileiro, concebido como uma maneira de compensar o agricultor pela política restritiva de preços aplicada ao setor, não pode, portanto, ser julgado conforme critérios de aumento da produtividade. Mesmo cotejando-se os resultados obtidos pela política de crédito rural brasileira com seu objetivo não declarado, porém não menos real, ou seja, compensar o agricultor via preços de insumos subsidiados (política aliás que tem outros instrumentos além do crédito rural) por uma política econômica discriminatória, chega-se à conclusão de que ela falhou.
O que presenciamos é uma situação que pode criar a especulação na agricultura e que não incentiva o verdadeiro agricultor. Este último vê-se frequentemente apanhado numa armadilha, onde o corte do fluxo de crédito pode lhe ser fatal. Além disso, o redirecionamento do crédito para a empresa de menor porte não deve ser necessariamente visualizado como alternativa viável. A pequena e média empresa rural, como suas equivalentes urbanas, ainda não são bem conhecidas. Um estudo mais aprofundado de suas características e de sua dinâmica se faz necessário para que a política de crédito rural no Brasil não enfrente, mais uma vez, problemas graves como os que vem enfrentando no momento.
Finalizando, algumas conclusões, advertências e sugestões podem ser tiradas:
a) A política de crédito rural se mostrou ineficiente como elemento de uma política de subsídios ao consumo como forma de proporcionar alimentação adequada à população. Somente desta forma seria possível reorientar os objetivos do agricultor para o incremento da produção e da produtividade.
b) Uma outra sugestão ao nível da política de crédito propriamente dita, seria a criação de uma estrutura de taxas de juros decrescentes em função do nível de produtividade atingida e não em função do volume de crédito ou do tamanho da propriedade.
c) Um importante segmento das propriedades agrícolas brasileiras, responsável por aproximadamente um quinto da produção comercializada, depende da manutenção do fluxo de crédito rural para sua sobrevivência econômica. O esvaziamento da política de crédito rural, seja através de cortes generalizados, seja através de seu redirecionamento que resulte na restrição da oferta a seus usuários atuais, equivalerá à eliminação de um dos últimos sustentáculos restantes da agricultura de mercado brasileiro. Tal impacto será maior na agricultura geradora ou poupadora de divisas como café, soja e trigo, atividades que dependem primordialmente do crédito rural para sua sobrevivência e crescimento.
d) Caso seja adotada qualquer política de cortes ou de redirecionamento do fluxo de crédito rural, deverá ser acompanhada pelo reescalonamento da dívida do setor, sob pena de se comprometer, significativamente, o abastecimento interno e o balanço de pagamentos do país.
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque é professor do Departamento de Economia da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV e coordenador do Projeto de Administração Rural da Fundap.