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Roberto Campos

Roberto Campos: O manicômio fiscal

Roberto Campos - 06/08/1995


"Morte, impostos e parto! Nunca há um tempo que seja conveniente para qualquer dessas coisas."

Margaret Mitchell


O sistema fiscal brasileiro é um manicômio. Ou, como nos versos de Dante, "una selva selvaggia, aspra e forte. São cinco aparelhos fiscais superpostos -o federal, o estadual, o municipal, o trabalhista e o previdenciário. Há 15 impostos principais e mais de 50 figuras tributárias diferentes. Uma empresa de porte significativo tem que escriturar 16 livros fiscais, 10 contábeis, 6 societários e 3 trabalhistas. A distinção entre fiscais e achacadores é quase tão tênue como a que existe entre um desejo e um suspiro... Fala-se muito em reformas, mas a maioria das propostas é de remendos. Equivalem a realocar quartos ou caiar as paredes do manicômio. Não mudam a doutrina psiquiátrica. Para fazê-lo, seriam necessárias idéias claras e distintas. Eis algumas:


1. O problema fiscal brasileiro, quer federal, quer estadual, não é solúvel por via fiscal. Exige também uma solução patrimonial, pela venda de ativos. Fiscalmente, o máximo que se consegue é conter o fluxo do endividamento. A redução do estoque da dívida exigiria um inatingível superávit ou rápida privatização. Donde esta ser tão ou mais importante quanto a badalada reforma fiscal.


2. A taxa de extração fiscal imposta ao setor privado é bem maior que a carga nominal dos impostos, taxas e contribuições. Além destes, há os seguintes componentes: a) o imposto inflacionário, hoje felizmente reduzido; b) a ineficiência dos serviços públicos de infra-estrutura; c) a inadequada contrapartida social (obrigando as empresas a montar atividades próprias de previdência e saúde); d) os custos burocráticos da obediência ao fisco e de controle pelo fisco; e) a extorsão pelos fiscais; f) o confinamento do universo tributário às empresas do setor formal e aos trabalhadores com carteira assinada, já que a economia informal e as estatais são pouco atingidas pelo fisco. Mesmo deduzidos subsídios e transferências, a taxa de extração global é asfixiante para os contribuintes, além de injustamente distribuída.


3. Um dos mitos que dificultam a reforma fiscal é que a preservação de mecanismos separados de coleta nos três níveis de governo é requisito essencial da autonomia federativa. Algumas federações, como a alemã, têm coleta centralizada. A verdadeira independência de Estados e municípios está na liberdade de gastar segundo suas próprias prioridades. O método de arrecadação deve ser o mais simples e barato possível e a entrega de recursos, automática. O interesse dos políticos em manter a complexa estrutura atual não visa exclusivamente à maximização da receita e sim a preservar o poder clientelesco de nomear burocratas, distribuindo favores e punições. Entretanto, se mantido o sistema atual, a guerra fiscal entre os Estados é saudável, pois significa o abandono da cultura de verba em favor da cultura do investimento.


Dos impostos declaratórios convencionais -sobre renda, consumo e serviços-, o imposto progressivo sobre a renda, considerado o mais equitativo pelas esquerdas neoconservadoras, é precisamente o mais desaconselhável nos países em desenvolvimento. Há três princípios possíveis de equidade: a) o princípio do benefício, tributando-se as pessoas segundo as vantagens que recebem dos programas governamentais; b) o princípio liberal, segundo o qual as pessoas devem ser tributadas na proporção do seu consumo, isto é, do uso que fazem do produto da sociedade; c) o princípio socialista, segundo o qual as pessoas devem ser tributadas progressivamente, conforme sua capacidade de pagamento, que reflete a contribuição que trazem à sociedade pelo seu esforço produtivo.


O princípio socialista é antidesenvolvimentista. O resultado é um desincentivo à poupança e investimento, precisamente o contrário do recomendável num país em desenvolvimento. No caso-limite, defendido pelas esquerdas burras, além do imposto sobre a renda corrente, tributar-se-ia de novo a renda acumulada (imposto sobre as grandes fortunas), com o resultado de que as grandes fortunas se formariam alhures e não em nosso trópico de Capricórnio.


A insuficiência de poupança interna está levando mesmo um país industrializado e rico como os Estados Unidos a cogitar da substituição do imposto progressivo por uma ``flat tax", ou seja, uma alíquota única aplicável tanto a empresas como a indivíduos, que incidiria apenas sobre a renda consumida e não sobre a renda produzida (Haveria, naturalmente, um teto generoso de isenção para as classes mais pobres). Além de mais racional, o imposto sobre o dispêndio traria enorme simplificação burocrática, comparativamente aos impostos múltiplos e progressivos, cujos custos administrativos são pavorosos. O Internal Revenue Bureau envia 8 bilhões de páginas de formulários aos contribuintes e esses gastam 5,4 bilhões de homens/hora para preenchê-los. Os custos anuais da arrecadação são estimados em US$ 159 bilhões, ou seja, 24,4% da receita. Inexistem no Brasil cálculos equivalentes, mas o custo deve ser comparável.


Nossa demagogia populista torna impossível abolir, no momento, o cacoete socialista do Imposto de Renda progressivo. Mas faz sentido a proposta do PFL de uma alíquota única de 10%, em vez de uma hierarquia de alíquotas, crivadas de fraudulentas deduções. Isso reduziria a evasão e a burocracia, propiciando grande aumento da arrecadação.


Há cinco setores sobretributados: as pessoas jurídicas, os bens de capital, a contratação de mão-de-obra, as exportações e os produtos básicos da alimentação. Nossa alíquota máxima de 48% para as pessoas jurídicas só é superada no Japão e na Itália. A média na América Latina é de 31,52%, na América do Norte de 38,49% e na Ásia de 31,43%. Para empresas estrangeiras que remetem dividendos, a tributação total é de 56%, ou seja, o governo torna-se sócio majoritário e para ele as empresas têm de trabalhar quase sete meses por ano! A compra de bens de capital é considerada consumo final e não gera créditos fiscais, onerando o custo dos investimentos. Os encargos sociais acrescentam 102% ao salário-base, desencorajando a contratação e estimulando a informalização da mão-de-obra. A incidência média sobre exportação é de 11%, quando a praxe mundial é isentar exportações e só tributar importações. Alimentos básicos, que na praxe mundial são isentos ou têm taxação simbólica, estão no Brasil gravados pelo ICMS, que é uma espécie de punição à agricultura.


De vez em quando, os países podem praticar originalidades construtivas. Uma delas, no Brasil, foi a substituição da estabilidade no emprego, que criava um passivo trabalhista impeditivo da dinâmica capitalista de fusões e incorporações, pelo FGTS, que preservou a mobilidade da mão-de-obra. No Chile, uma ousada originalidade foi a privatização da Previdência Social, que se provou poderosa alavancagem do desenvolvimento. Para ambas essas inovações, previam-se resultados apocalípticos...


O Brasil tem condições ideais e raras para ser inovador em matéria fiscal, abandonando as categorias clássicas de impostos declaratórios, que são resíduos artesanais na idade eletrônica. Essas condições ideais são: a) o parco uso da moeda manual; b) a existência de um sistema bancário nacional e informatizado; c) a destruição irreparável da ética fiscal em virtude da complexidade do sistema, da corrupção dos fiscais e da ausência de contrapartida do governo.


A hesitação do governo em formular sua proposta de reforma abre para o Congresso a oportunidade de reativar o exame do projeto do deputado Luiz Roberto Ponte, que tem, aparentemente, o apoio do PMDB, num de seus raros ataques de lucidez. Eliminar-se-iam os impostos declaratórios e os vários feudos fiscais em favor de dois grupos de tributos não-declaratórios e insonegáveis; um imposto sobre transações financeiras, ampliado para substituir todas as contribuições sociais (inclusive suplementação de recursos para a saúde), e um imposto seletivo, coletado na fonte, segundo medidores eletrônicos de vazão, sobre energia elétrica, combustíveis, veículos, telecomunicações, cigarros e bebidas.


A fórmula do deputado Ponte contempla um período de transição, preservando-se, por um tempo prudencial, o presente esquema de alocação de recursos às entidades federadas. É certamente preferível a quaisquer remendos no atual manicômio fiscal.


Se a essa modernização fiscal, que economizaria energias empresariais hoje gastas na engenharia da evasão, associássemos a privatização da Previdência segundo o modelo chileno, o Brasil poderia aproximar-se dos níveis de poupança asiática e reproduzir o milagre da década de 60.



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