No ano passado, Brasil e Argentina travaram uma acirrada disputa comercial. As importações de eletrodomésticos brasileiros chegaram a representar 62% do mercado de geladeiras e 51% do de máquinas de lavar roupa nas vendas internas daquele país. Houve ameaças de adoção de medidas unilaterais, que acabaram sendo substituídas por cotas de exportação. A chiadeira dos argentinos se intensificou em razão da rápida inversão do saldo comercial entre os dois países. De 1995 a 2002, o Brasil registrou déficits comerciais sucessivos. A média anual nesse período foi de cerca de US$ 1 bilhão em favor da Argentina. Em 2005, a estimativa é que o saldo seja favorável à economia brasileira em montante estimado entre US$ 2,5 bilhões e US$ 3 bilhões. A forte penetração dos produtos industriais brasileiros foi ocasionada pela recuperação econômica verificada naquele país nos últimos dois anos. Em 2003, o PIB argentino cresceu 8,7%, e, no ano passado, 9%, recuperando parte da drástica queda de 22% registrada entre 1998 e 2002. A indústria local não consegue atender à retomada da demanda, que vem sendo suprida pelos produtores brasileiros. Desde que o Mercosul foi anunciado, em 1991, a indústria Argentina não foi capaz de se preparar para competir com o Brasil. Mesmo a forte desvalorização cambial de 2002 não foi suficiente para melhorar a competitividade da produção industrial Argentina. No gráfico, é possível observar que, de 1996 a 2004, o fluxo comercial é favorável aos argentinos em produtos primários, combustíveis e manufaturas agrícolas. A média anual foi da ordem de US$ 2,4 bilhões. No caso de bens industriais, com maior valor agregado, o superávit brasileiro foi em média de US$ 1,9 bilhão ao ano. Com sua rudeza e falta de educação características, o presidente argentino vem desfilando uma seqüência de ações duvidosas (como quando exigiu que a Shell reduzisse os preços na Argentina ou quando ampliou os controles sobre entradas de capital) e irresponsáveis (quando deu o calote nos credores externos). Recentemente, criticou acidamente os industriais brasileiros, acusando-os de "fortes, duros e impiedosos". Segundo ele, "há setores do establishment brasileiro que querem ter a indústria em São Paulo e que todos os demais sejam periféricos". Mesmo considerando que o discurso do presidente argentino está carregado de interesses políticos em razão das eleições legislativas de outubro próximo, seu posicionamento mostra que o empresariado daquele país quer, mais uma vez, decidir no grito e com ameaças as disputas comerciais com o Brasil. Contudo eles deveriam reconhecer que não se ajustaram à nova economia globalizada e hoje não conseguem competir com os brasileiros, mesmo com a grande vantagem obtida com a valorização recente do real. O ex-secretário de Comércio Exterior da Argentina Raúl Ochoa reconheceu que a balança comercial tende a ser estruturalmente superavitária para o Brasil. O país passou a vender produtos de elevado valor agregado para a Argentina, que antes os adquiria em outras regiões. Mesmo no setor agrícola, a vantagem brasileira é crescente, não restando à Argentina nichos importantes de vantagens competitivas que poderiam sustentar fluxo comercial equilibrado no futuro. São economias estruturalmente competitivas entre si. A gritaria dos argentinos deriva de erros estratégicos cometidos por eles. Não adianta culpar o Brasil. A economia é movida pela lógica da eficiência. Nessas condições, cabe indagar do futuro do Mercosul e também de outros projetos de integração latino-americana, que tanto têm interessado ao governo brasileiro. Se a concepção desses projetos for integrar economias complementares, estarão fadados ao fracasso. Se, por outro lado, forem planos políticos de hegemonia continental, poderão até vingar, mas custarão muito ao Brasil.
Marcos Cintra - Folha de S.Paulo