top of page

O mito da neutralidade no IBS/CBS

  • Foto do escritor: Marcos Cintra
    Marcos Cintra
  • 17 de out.
  • 8 min de leitura

O debate público sobre reforma tributária no Brasil tem sido frequentemente permeado por simplificações e, por vezes, por interpretações equivocadas de conceitos econômicos fundamentais. Essas distorções, que viraram mitos, podem levar a conclusões errôneas e, consequentemente, a políticas públicas que não atingem os objetivos almejados.

 

A Emenda Constitucional (EC) 132 ao propor uma profunda alteração no sistema tributário brasileiro, especialmente com a introdução do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), tem sido campo fértil para a proliferação de algumas dessas narrativas. Duas delas, em particular, merecem ser desconstruídas: a neutralidade do IVA nos mercados intermediários e a equivocada compreensão da teoria do segundo melhor na busca da eficiência alocativa.

 

O mito da neutralidade do IVA na cadeia produtiva

 

Um dos pontos de controvérsia mais evidentes da EC 132 reside na sua projeção de impacto sobre a carga tributária setorial. É amplamente reconhecido que a reforma, em sua configuração atual, implicará significativo incremento da carga sobre atividades intensivas em mão de obra, notadamente o setor de serviços.

 

Neste debate emerge uma narrativa contra-argumentativa, que caracterizo como mito. Essa tese, propagada com inusitada regularidade por diversos tributaristas adeptos da superioridade incondicional do IVA sobre tributos cumulativos, afirma que o aumento da carga tributária sobre os serviços não deveria ser motivo de preocupação para os que atuam no meio da cadeia produtiva. A justificativa central, segundo eles, reside no mecanismo de creditamento: a premissa é que os aumentos de tributos seriam integralmente neutralizados por créditos a serem apropriados pelos compradores. A conclusão lógica, para os defensores desse mito, é que apenas o consumidor final sofreria a tributação do IVA, enquanto os prestadores de serviços intermediários ficariam imunes à escalada tributária. Daí a equivocada denominação do IBS/CBS como tributos de consumo, quando em realidade são tributos sobre a produção.

 

Esta narrativa é construída sobre um caso especialíssimo de demanda por bens intermediários totalmente inelástica, uma condição rara e não observada empiricamente. A crença disseminada é que o creditamento do tributo previamente recolhido na compra de um insumo faria com que o impacto do aumento do tributo seja compensado de forma a não afetar a relação comercial do prestador de serviços com seus parceiros a jusante e a montante na cadeia de produção.

 

A análise econômica cuidadosa demonstra que o creditamento de impostos pagos nas etapas anteriores de uma cadeia, como na compra de um insumo, não elimina a incidência econômica do imposto nos mercados intermediários, afetando seus preços e quantidades.

 

A confusão tem por base o princípio contábil, mas não econômico, de que o IVA não transita nas contas de resultado – ou seja, não ser considerado um custo direto na produção, o que claramente é uma falácia, exceto no caso excepcional mencionado acima. O creditamento não “devolve” imposto recolhido: apenas evita a cumulatividade. Em outras palavras, ele impede que o imposto incida novamente sobre um valor já tributado na etapa anterior, mas não constitui uma redução ou devolução do imposto pago anteriormente.

 

A verdade é que, mesmo com creditamento, um imposto no meio da cadeia de produção inevitavelmente aumentará o preço dos insumos e dos produtos vendidos, ou, alternativamente, reduzirá a margem de lucro do negócio, precisamente na medida da variação tributária.

 

A crucial distinção a ser apontada é entre a incidência econômica e o recolhimento administrativo-contábil do tributo. O conceito de incidência econômica refere-se a quem, de fato, arca com o ônus do imposto, independentemente de quem o recolhe. E essa incidência final é sempre partilhada entre comprador e vendedor, um princípio basilar da teoria de oferta e demanda. Essa partilha é determinada pelas elasticidades no mercado intermediário, bem como pelas relações de concorrência entre os agentes. Setores com demanda mais elástica ou maior concorrência tendem a repassar menos o custo do imposto, absorvendo-o em suas margens.

 

Portanto, o mito de que no meio da cadeia um IVA não altera preços e não afeta a relação de mercado entre comprador e vendedor cai por terra. A complexidade do mecanismo de formação de preços e a dinâmica concorrencial são fatores que a narrativa da neutralidade ignora, levando a uma visão perigosamente equivocada sobre os efeitos reais da reforma tributária da EC 132/2003 na medida em que altera por completo a estrutura das alíquotas e o resultante impacto nas relações de produção.

 

A defesa incondicional do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) é frequentemente ancorada no seu princípio basilar da não cumulatividade e neutralidade. Contudo, contribuindo significativamente para essa errônea interpretação dos efeitos do creditamento está a inexistência das condições iniciais para que a neutralidade plena se manifeste.

 

A não cumulatividade plena assegura que o tributo incidente sobre o valor adicionado em cada etapa da cadeia produtiva não pirâmide, evitando o efeito “cascata” (imposto sobre imposto), garantindo neutralidade alocativa e transferindo o ônus exclusivamente para o consumidor final. Essa característica é celebrada como o pilar da neutralidade tributária do IVA, um atributo que, se plenamente realizado, o tornaria superior a modelos cumulativos, como o antigo PIS/Cofins sobre faturamento ou o ISS. No entanto, o que a prática tributária muitas vezes não enfatiza é a rigorosa constelação de condições que precisam ser atendidas para que essa neutralidade se materialize na prática.

 

Para que a não cumulatividade plena seja efetiva, e o IVA atinja sua prometida neutralidade econômica, um conjunto de pressupostos teóricos, altamente exigentes, deve ser satisfeito. Estes incluem, mas não se limitam a concorrência perfeita em todos os mercados como em mercados completos, ausência de externalidades, informação perfeita, ausência de custos de transação e de conformidade, alíquota única e universal, inexistência de evasão, entre outras.

 

A dolorosa realidade é que nenhuma dessas condições é plenamente atendida na vida real. A economia é intrinsecamente marcada por concorrência imperfeita, falhas de mercado, assimetrias informacionais, sonegação e custos de transação significativos.

 

O que isso revela é que os “teoremas da não cumulatividade”, embora elegantemente construídos no plano formal-matemático, são, em grande medida, modelos acadêmicos e heurísticos, e suas prescrições jamais devem ser tomadas como recomendações inquestionáveis de política econômica, e de aplicação direta sem uma ampla avaliação empírica.

 

A teoria do segundo melhor e a contagem de distorções

 

Um dos mal-entendidos mais persistentes, muitas vezes devido à própria nomenclatura, é o que permeia a teoria do segundo melhor (theory of the second best).

 

Contrariamente à intuição, essa teoria não se resume a uma simples escolha da “segunda melhor” alternativa em uma lista preordenada. É, na verdade, um princípio profundo e contraintuitivo da economia do bem-estar, com implicações cruciais para a intervenção estatal e para a arquitetura de sistemas regulatórios e tributários.

 

Formulada por Richard Lipsey e Kelvin Lancaster em 1956, a teoria do segundo melhor postula que se uma ou mais das condições necessárias para alcançar o ótimo de Pareto (o estado de eficiência máxima onde não é possível melhorar a situação de um agente sem piorar a de outro) não podem ser satisfeitas, então, tentar satisfazer as condições restantes pode não apenas falhar em atingir o melhor resultado possível, mas pode, paradoxalmente, exigir que outras condições ótimas sejam violadas para se alcançar o melhor resultado factível sob as restrições existentes.

 

O erro comum, e o mito que aqui desvendamos, é pensar que, se não podemos alcançar o ideal de primeira ordem (o ótimo de Pareto), devemos nos aproximar dele corrigindo o máximo de distorções possível, uma por uma, assumindo que cada correção parcial nos move na direção certa. O que a teoria do segundo melhor demonstra que, num contexto de múltiplas falhas de mercado interconectadas, corrigir apenas uma falha isoladamente, ou mesmo várias, pode levar a um resultado pior do que se nenhuma correção fosse feita. Isso ocorre porque as distorções se interligam e se compensam de formas complexas. A eliminação de uma falha pode desestabilizar uma situação preexistente, levando a efeitos colaterais negativos que superam os benefícios da correção inicial.

 

Em essência, a teoria alerta para os cuidados necessários para intervenções parciais em um sistema intrinsecamente imperfeito. No mundo idealizado do ótimo de Pareto, todos os desvios de mercado seriam inexistentes. No entanto, mercados operam com externalidades, assimetrias de informação, poder de monopólio e outras imperfeições.

 

Consideremos um exemplo no campo da tributação e regulamentação no qual se deseja promover a eficiência econômica em um setor onde existe um monopólio e, ao mesmo tempo, um imposto distorsivo sobre um insumo essencial para esse setor. Se o governo decidir apenas eliminar o imposto distorsivo (corrigindo uma das falhas), sem endereçar o problema do monopólio, o resultado pode ser um maior afastamento da situação ideal. A redução de custos para o monopólio, sem uma pressão competitiva ou regulação adequada, pode simplesmente se traduzir em lucros maiores para o monopolista, sem benefício para os consumidores ou, pior, pode exacerbar os efeitos de subprodução do monopólio se o imposto antes atuava como um offset, para alguma externalidade negativa.

 

A lição fundamental da teoria do segundo melhor é a necessidade de uma análise empírica e sistêmica das políticas econômicas para se avaliar a direção dos seus impactos. Não basta identificar uma falha de mercado e propor correções isoladas, como, por exemplo, eliminar obsessivamente todas as fontes de cumulatividade, mesmo que ao custo de maior complexidade e mais litigiosidade. É imperativo compreender as interconexões entre as diversas distorções e considerar o impacto de cada intervenção sobre o sistema como um todo. Em certos cenários, pode ser economicamente mais eficiente conviver com uma distorção secundária se a tentativa de a corrigir, sem poder corrigir todas as outras, levar a um resultado inferior do ponto de vista da eficiência alocativa.

 

No contexto da reforma tributária, essa teoria ressalta a complexidade de transitar de um sistema tributário cumulativo para um IVA supostamente neutro. Embora o IVA seja, em tese, um imposto mais neutro e eficiente em um cenário ideal, a forma como ele é implementado e se relaciona com as demais distorções da economia (estruturas de mercado, externalidades, outros impostos, custos e regulamentações) determinará seu impacto real. Ignorar as demais falhas e as complexas interações entre os setores, como no “mito da neutralidade” do IVA, é um exemplo clássico de como a simplificação excessiva pode levar a análises que desconsideram os princípios da teoria do segundo melhor, resultando em surpresas indesejadas e desfechos econômicos subótimos.

 

Essa tensão entre a neutralidade teórica (por exemplo, exigindo alíquota única, como fez a PEC 45/2019) e os objetivos de política social ou setorial (justificando alíquotas diferenciadas) ilustra perfeitamente a aplicação da teoria do segundo melhor. Se o ideal de neutralidade plena, que inclui alíquota única, concorrência perfeita, mercados completos e ausência de custos de conformidade não pode ser alcançado, então a busca por um “segundo melhor” pode envolver a aceitação de alíquotas múltiplas diferenciadas, e não necessariamente a minimização do número de alíquotas (como apenas duas), mesmo que isso signifique o afastamento de algumas das condições formais para a neutralidade plena.

 

A decisão de ter múltiplas alíquotas é uma escolha de política que pondera os benefícios de justiça social ou fomento a setores específicos contra a perda de neutralidade e o aumento de complexidade. Em realidade, isso implica aceitar trade-offs como por exemplo os efeitos indesejados de alguma cumulatividade frente aos benefícios da significativa erradicação da evasão e da radical redução dos custos de compliance de um tributo sobre a movimentação financeira como a antiga CPMF.

 

Conclusão: o empiricismo x o formalismo na tributação

 

Os mitos e palavras de ordem da tributação e da política econômica, como a falsa neutralidade plena do IVA, representam barreiras significativas para a formulação de políticas públicas eficazes. Eles demonstram a perigosa distância que pode surgir entre as prescrições formais da teoria econômica e a complexa realidade dos mercados e das interações sociais.

 

A reforma tributária em implementação no Brasil, com sua promessa de simplificação e máxima eficiência, exige um escrutínio empírico rigoroso que transcenda as narrativas dogmáticas propagadas à exaustão.

 

É fundamental que os formuladores de políticas tributárias e o público em geral compreendam que, em economia, nem sempre o caminho mais festejado é o mais eficiente. A complexidade dos sistemas econômicos demanda uma análise que leve em conta não apenas a contabilidade fiscal, mas também a incidência econômica, as elasticidades de mercado e as interconexões sistêmicas que definem o verdadeiro custo e benefício de qualquer intervenção.

 

Somente por meio de uma análise aprofundada, crítica e baseada em evidências, que questione os dogmas e desvele os mitos, poderemos construir um arcabouço tributário e regulatório que promova genuinamente o desenvolvimento econômico e o bem-estar social. A verdadeira política pública é aquela que enfrenta a complexidade, não aquela que se rende à sedução das soluções de prateleira, mormente em ambientes altamente complexos como é o caso do sistema federativo e das instituições brasileiras.


ree

Artigo publicado na revista Conjuntura Econômica.

Topo
bottom of page