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Marcos Cintra

Entrevista para o Jornal O Globo 17/08/2021

Everardo e Cintra: O que pensam dois ex-secretários da Receita sobre reforma do IR, que deve ser votada hoje


Everardo Maciel diz que o “conjunto da obra” está errado. “É um projeto inesperado, desnecessário, inoportuno e dispensável”, resume Marcos Cintra


Fernanda Trisotto 17/08/2021 – O GLOBO

A proposta do governo que altera as regras do Imposto de Renda, que deve ser votada hoje no plenário da Câmara, não teve tempo para ser debatida a ponto de eliminar uma característica peculiar: desagrada praticamente a todos os interessados.

A avaliação é dos ex-secretários da Recita Federal Everardo Maciel e Marcos Cintra, que concordam em muitas críticas ao projeto defendido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e que conta com o empenho do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Reforma do IR: Entenda as mudanças que estão em jogo

Para Everardo Maciel, que comandou o Fisco entre 1995 e 2002, todas as versões do projeto são ruins, e o “conjunto da obra” está errado.

Já Marcos Cintra, que passou nove meses no comando do Fisco no governo Bolsonaro, argumenta que essa proposta não simplifica nem desburocratiza nada. “É um projeto inesperado, desnecessário, inoportuno e dispensável”, resume.

Confira a seguir os principais trechos das entrevistas dos dois ao GLOBO sobre a proposta:

Marcos Cintra

'Nunca vi nenhum país sério fazer uma reforma tão grande, num imposto tão importante, em um mês' .

  • Qual a sua avaliação da proposta de alteração do IR?

A minha posição é muito clara: é um projeto que começou tendo como objetivo a correção da tabela do imposto de renda da pessoa física, que é uma promessa de campanha do presidente, e acabou sendo poluído com uma série de modificações, que além de serem inoportunas no momento atual, são extremamente complexas e sem objetivo.

O que não está claro é qual é o objetivo dessa reforma. Eu vejo pela justificativa que o próprio governo apresentou que buscava a simplicidade. Isso é a antítese da simplicidade, e o exemplo mais eloquente da complexidade é a volta da distribuição disfarçada de lucros, chamada DDL, que era o inferno da relação do Fisco com o contribuinte até 1995.

  • Por causa dos dividendos?

Na medida em que os dividendos passam a ser tributados, as pessoas provavelmente vão buscar uma maneira de jogar alguns valores a nível da pessoa jurídica ao invés e de transferir para cotistas ou acionistas. Por causa disso, vai ter que voltar a legislação contrária a DDL, que tinha desaparecido.

Isso é um dos piores pesadelos no relacionamento Fisco-contribuinte, tão grave quanto a definição doo que dá crédito ou não. (A proposta) não só não simplifica (o sistema) como burocratiza.

  • O texto propôs corrigir a tabela do IRPF e diminuir os impostos das empresas. O que acha?

Fala-se que (a proposta) vai aumentar a progressividade do sistema, que de alguma foma vai tributar mais as faixas de renda mais elevadas. Mais uma vez esse objetivo não é atingido, nem na operação da pessoa física nem da pessoa jurídica.

Na operação da pessoa física não vai ser atingido, porque quem vai arcar com boa parte da substituição arrecadação da correção da tabela vai ser a classe média baixa, que é a que está com o rendimento anual entre R$ 40 e R$ 80 mil que não vai mais usufruir do desconto padrão de 20%.

“Boa parte do ajuste vai cair nessa faixa, e depois dos R$ 80 mil (de rendimento anual) fica tudo como está. É uma grande falha, porque o ajuste vai cair não na faixa de renda mais elevada, mas na faixa de renda média. É um defeito técnico.”


No ponto de vista da pessoa jurídica é pior ainda. O Simples não terá tributação de dividendos, portanto as pequenas empresas não terão aumento de carga tributária.

A maior parte das grandes empresas terá queda de carga tributária, porque a redução da alíquota do IRPJ é razoavelmente forte, e qualquer empresa que distribua menos de 50% dos lucros através dos dividendos vai ter uma queda de carga tributária consolidada, somada a carga da PJ e da distribuição.

Nos dois extremos, no inferior não haverá aumento e no superior haverá queda. Então quem vai pagar a conta serão as empresas do lucro presumido, que vão ter um aumento de 20% de tributação dos dividendos e são empresas que normalmente distribuem mais de 50% de seus lucros para os cotistas.

O projeto não simplifica, não desburocratiza e introduz um elemento de profunda ineficiência na atividade econômica: ao proibir a distribuição de juros sobre o capital próprio ele estimula o endividamento das empresas.

  • O debate foi muito apressado?

Eu não vejo mérito algum nesse projeto, a não ser a correção da tabela do IRPF, que é justo e deveria ocorrer, mas não acompanhado dessa série completamente desastrada de projetos que vão comprometer a retomada do crescimento econômico, são economicamente ineficientes e tecnicamente desajustadas, e inoportuno no ponto de vista do momento, criando uma enorme instabilidade no mercado.

Nunca vi nenhum país sério fazer uma reforma tão grande, num imposto tão importante como esse, em um mês e meio após o projeto ter sido anunciado. Sem discussão técnica, sem debate com a sociedade e, chegando na Câmara dos Deputados, aprovam regime de urgência, que não dá nem oportunidade para os deputados discutirem o projeto. Isso é, literalmente, um acinte, é uma ofensa ao contribuinte, é uma ofensa institucional a todo um modus operandi em momento delicado da economia.

Ninguém sabe o que se pretende com esse projeto. Se é puramente um projeto demagógico eleitoral, e eu acho que o governo está dando um tiro no pé se está fazendo isso, ou se é um erro técnico, pior ainda, porque estamos comprometendo a retomada econômica e é um golpe muito sério na credibilidade do país.

Estados e municípios alegam que terão perdas nos repasses dos fundos de participação com a reforma.

É evidente que se não haver acréscimo de arrecadação, vai haver queda dos fundos de participação de estados e municípios e consequentemente o governo federal está fazendo generosidade com o chapéu alheio, porque é um tributo compartilhado.

O governo já cedeu parcialmente, e já reduziu a CSLL. Se o governo realmente pretende não causar nenhum prejuízo a estados e municípios, reduz a zero a CSLL e todo acréscimo que virá da arrecadação do IR será compartilhado.

Se o governo está tão seguro de que vai haver um aumento de arrecadação, eles que comprovem isso, num sinal de boa fé, e reduzam só a CSLL e mantém íntegra a aliquota do Imposto de Renda para que os municípios não percam.

Se eles não estão convictos e querem justificar com alternativas diferentes, que apresentem números. Quem garante que a arrecadação vai continuar aumentando? Não conseguiram prever nem dois meses para frente, vão prever daqui um ano, dois anos?

Esse projeto tem uma qualidade que a gente precisa tirar o chapéu, porque não é comum desagradar todo mundo. É um projeto absolutamente inesperado, desnecessário, inoportuno e dispensável. O governo faria um favor se só corrigisse a tabela do IRPF e mais nada. E abra o debate.

 

Everardo Maciel

'Para que causar a maior desorganização empresarial que já se viu?'

  • Qual a sua avaliação da proposta de alteração do IR?

O último parecer é tão ruim quanto os outros. Para que fazer isso? Essa é a primeira questão fundamental. Não existe um contribuinte brasileiro se queixando da tributação da renda. Existem várias versões (do projeto). A primeira conseguiu a proeza de desagradar a todos os contribuintes.

Numa segunda versão, livraram alguns contribuintes, mas em compensação conseguiram desagradar todos os estados e municípios, coisa que nunca aconteceu na história da tributação brasileira. A partir daí, começaram a fazer mudanças porque alguns setores pressionaram.

  • Há algum ponto do projeto que pode ser salvo?

Existem pontualmente uma questão ou outra que estavam corretas. Acontece o seguinte: o conjunto da obra está errado, e não merece retirar algo em particular. Quando a gente começa a admitir que existe alguma coisa certa, alguma coisa relevante, a gente começa a admitir que o projeto é razoável.

Do texto entregue pelo governo à versão que deve ser votada amanhã, foram feitas muitas concessões, principalmente no tributo cobrado das empresas, para compensar a tributação de dividendos…

A grande questão é: para que, quem pediu isso? Qual é o contribuinte que está interessado nisso? Nenhum. Alguns que conversaram comigo disseram que “conseguiram se livrar”. É como se eu dissesse: toda a população está condenada a morte, mas eu consegui me livrar.

Aí tem o conjunto de efeitos, que é de dificílima a avaliação. Eu não me refiro nem ao fato de os números serem tratados em segredo, quando deveriam ser expostos a sociedade.

Como é que você sabe no que vai resultar, como é que sabe que vai implicar numa perda? Parte do pressuposto falso que o futuro é igual ao presente. Quando se faz uma mudança dessa natureza, você altera a posição relativa dos protagonistas, com efeito de dificílima previsão.


“Os efeitos não são mensuráveis, numa circunstância que é complicadíssima. Só uma pessoa que está iludida não vê o tamanho do risco fiscal que está à frente, que é elevadíssimo. Qualquer movimento que você fizer tem que ser extremamente cauteloso e não hostil.”


Essa pretensão tola e sem nexo de tributar dividendos… O Brasil passou 70 anos tributando lucros e dividendos, e há 25 anos só tributa lucros. Compare um com o outro, os resultados dos dois diferimentos.

Quer dizer, está dando custo a capricho pessoal? Isso não é republicano. Por que eu quero tributar os dividendos? Não estamos falando de uma decisão de repercussão pessoal, é uma decisão que repercute sobre toda a sociedade.

  • E o debate está muito apressado?

Como é que se faz uma mudança desse tipo, que pode afetar um terço dos contribuintes brasileiros? Que pode resultar em ameaças de aumento de risco fiscal, ter repercussões inflacionárias num quadro complicado.

A tributação de dividendos, por exemplo: é evidentemente que todas as empresas multinacionais que estão aqui no Brasil farão imediatamente a desova desses dividendos acumulados. Por óbvio, ao fazer esse tipo de coisa, tem repercussão cambial. Sem falar no potencial de litígios.

Para que causar a maior desorganização empresarial que já se viu na história do Brasil a troco de nada?


ENTENDA O NÓ DA TRIBUTAÇÃO NO BRASIL

Sistema complexo

O governo apresentou o projeto de lei que mexe com a tabela do Imposto de Renda, considerado a segunda parte da reforma tributária. A parte principal da reforma é a unificação dos impostos. Mas entrar em um acordo sobre como ela será feita é tão complexo quanto o próprio sistema tributário brasileiro. Estados e municípios temem perder uma fatia de suas arrecadações e são muitos os impostos.

Emaranhado de impostos

O Brasil tem, pelo menos, cinco tributos embutidos nos preços de bens e serviços: três cobrados pela União (IPI, PIS e Cofins), um dos estados (ICMS) e um dos municípios (ISS). Só o ICMS tem 27 formatos diferentes, um para cada estado e o DF. Ou seja, para vender em outros estados, o empresário tem que pagar e conhecer os diferentes tributos.

Custo alto

Além da quantidade de tributos, o custo é alto. Um exemplo é a tributação geral de medicamentos, uma das maiores do mundo, em torno de 33%. Em países desenvolvidos é de cerca de 6%. Outro item essencial com carga tributária elevada, por exemplo, é o absorvente íntimo: 27% só de imposto.

Classificação

A classificação é outro problema recorrente. É perfume ou água de colônia? A alíquota da fórmula concentrada é 42%. Já a da fragrância mais leve, de 12%. “Uma grande diferença”, segundo o especialista em direito tributário e da FGV, Gabriel Quintanilha.

Burocracia sem fim

O Brasil é o país em que as empresas gastam o maior número de horas com a burocracia dos impostos, segundo um relatório do Banco Mundial que avalia 190 países. Uma empresa brasileira gasta, em média. 1.501 horas por ano cuidando de obrigações relacionadas a tributos. É cinco vezes a média gasta pelos países de América Latina e Caribe.

Efeito cascata

Esse nó de tantas informações e cobranças dificulta a vida e o caixa das empresas, além de facilitar erros. Segundo a Endeavor, 86% das empresas brasileiras apresentam algum tipo de irregularidade no pagamento de seus tributos. Estas lacunas muitas vezes são por desconhecimento das muitas regras. Mesmo assim, podem gerar multas e despesas altas.

  • E a mudança na tabela do IRPF?

Existe um compromisso de campanha (de Bolsonaro) para ampliar o limite de isenção para R$ 5 mil, mas propuseram a metade (até R$ 2.500). O que significa isso em termos de ganho para o contribuinte, que está alcançado pelo limite de isenção? Quanto é que eles ganharam com isso? R$ 7,50 por mês, no máximo. Não compra um quilo de pão por mês.

E em cima disso vão restringir o uso do desconto simplificado, alcançando a classe média, (e alegando) que eles vão utilizar outras coisas (para dedução). Então como é que você consegue contabilizar um ganho de R$ 10 bilhões? Das duas umas: os R$ 10 bilhões (calculados como aumento de arrecadação em 2022) são falsos ou existe e é uma penalização (ao contribuinte). Não tem alternativa.

  • Os estados e municípios alegam perdas nos repasses para fundos de participação, e o relator aceitou mexer na Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para equalizar o corte dos tributos das empresas. O que achou?

Essa é uma pior: parte das reduções do Imposto de Renda (das empresas) para a CSLL. Tradução: aumento do déficit previdenciário. A CSLL é um tributo relevante para a seguridade social.

Se eles (estados e municípios) não perdem, quem perde é o contribuinte. Não tem opção: ou bem houve um aumento de carga tributária e estados e municípios não perdem ou bem há uma redução de carga tributária e estados e municípios perdem. (Vem o argumento) ‘a economia vai se animar’. É uma fantasia pueril. Isso não engana ninguém.






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