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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

A bomba no colo do governo


O brasil está em uma enrascada. A estagnação da economia perdura por quase 20 anos, transformando a nossa sociedade em um barril de pólvora, em um depósito de frustrações cujas conseqüências são imprevisíveis. Várias vozes se levantam exigindo uma nova política macroeconômica, com uma política monetária menos restritiva e uma política fiscal menos contracionista. As providências mais comumente sugeridas são a redução dos juros, um câmbio mais competitivo e a redução do superávit primário. Em outra oportunidade, neste mesmo espaço, vou abordar as medidas propostas. Desejo hoje apenas apontar a absoluta impossibilidade de a situação permanecer como se encontra. Estruturalmente a sociedade brasileira se afunda em seus próprios problemas, na medida em que não mostra ser capaz de inverter uma tendência de aumento da concentração de renda, de estreitamento de seu mercado interno e de expansão do endividamento público, que aumentou de R$ 108 bilhões em 1995 para mais de R$ 900 bilhões em 2003. Os recursos escassos disponíveis para fazer frente às necessidades de consumo e investimento da sociedade brasileira são desviados para o atendimento das exigências impostas pela irresponsável política que gerou acumulação acelerada de dívida pública nos últimos dez anos. Apesar do superávit primário de R$ 66 bilhões, 4,37% do PIB em 2003, o país não evitou um déficit nominal de R$ 83 bilhões, evidenciando assim despesas com o serviço da dívida pública de quase R$ 150 bilhões. A carga tributária absorve 37% do PIB. Para um país com baixa capacidade contributiva, com renda per capita de menos de US$ 3.000/ano, trata-se de ônus insuportável, que, a perdurar, limita seriamente a capacidade de superação da crise econômica. Tal fato torna-se mais grave quando se analisa que esses recursos extraídos do setor privado não estão sendo alocados para atividades geradoras de capacidade produtiva. O montante dos recursos utilizados no serviço da dívida equivale ao orçamento total (investimentos e custeio, incluindo funcionalismo) de todos os ministérios da República, excetuando-se o da Previdência, que cuida fundamentalmente de transferências interpessoais de renda. As despesas do Executivo em 2003 somaram R$ 139,7 bilhões para atender aos serviços de saúde, educação, defesa, reforma agrária, infra-estrutura, assistência social, transportes, comunicação etc, ao passo que o serviço da dívida absorveu o montante de R$ 149 bilhões. Para 2004, o Orçamento da União prevê despesas com a dívida da ordem de R$ 183 bilhões. Essa aberração não ocorre sem dramáticas conseqüências no crescimento econômico do país. Os recursos canalizados para o pagamento de juros não contribuem para a formação de capital físico e humano nem reforçam o mercado interno de bens e serviços privados. Revertem fundamentalmente aos financiadores da dívida pública brasileira, tornando-se assim um dos mais potentes mecanismos de concentração de renda, pois sabidamente a arrecadação tributária no Brasil onera desproporcionalmente os assalariados e as camadas populacionais de menor poder aquisitivo. Os dados do "Atlas da Exclusão Social no Brasil", divulgados na última quinta-feira, confirmam a tendência de forte concentração da renda nacional. Os autores do estudo atribuem esse fenômeno "à financeirização, e não ao trabalho ou à produção". Não surpreende, portanto, que o Brasil mantenha um padrão de composição da renda privada nacional de cerca de 70% para os rendimentos do capital e de apenas 30% para os rendimentos do trabalho, sustentado pela proletarização da classe média e pela polarização social. Nos EUA, a divisão é exatamente inversa, ou seja, 30% da renda é rendimento de capital e 70% são rendimentos do trabalho. A condução da economia como está ocorrendo irá, inevitavelmente, detonar a bomba que se encontra no colo do governo. A sociedade precisa buscar uma alternativa, sob pena dos estilhaços dessa explosão atingirem a todos.

 

MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

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