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  • Marcos Cintra

As funções da Agricultura

Antes de se falar em política agrícola ou em política de desenvolvimento agrícola, é importante que se defina com clareza a posição do setor agropecuário dentro da realidade econômica brasileira. Sem a visão clara da realidade estrutural de um sistema econômico qualquer, corre-se o risco da utilização de instrumentos de política econômica, os quais, considerados individualmente, podem ser satisfatoriamente justificados, mas, observados em conjunto, deixam de manter a coerência interna necessária a uma política econômica propriamente dita.


É isto que observamos atualmente com relação ao setor agrícola brasileiro. De um lado, uma visão deturpada de agricultura como componente do sistema econômica brasileiro, e, de outro, a resultante lógica dessa deturpação, ou seja, uma política econômica mal orientada.


Tradicionalmente, economistas se referem ao setor agrícola como tendo “funções” a desempenhar no processo de crescimento econômico. A conotação clara dessa visão acadêmica é que a agropecuária deve existir para desempenhar funções de suporte à obtenção do desenvolvimento industrial. O desenvolvimento agrícola não está associado ao conceito de desenvolvimento econômico, da mesma forma que está o conceito de desenvolvimento industrial. É comum o uso destes dois últimos conceitos quase como sinônimos, ao passo que o desenvolvimento agrícola é geralmente interpretado como uma etapa intermediaria e não como um objetivo em si mesmo.


Qualquer texto de economia atribui cinco funções fundamentais ao setor agrícola. a) Oferta de alimentos e de matérias-primas a baixos preços aos setores urbanos; b) contribuição na geração de divisas necessárias principalmente, às importações de equipamentos e matérias-primas industriais; c) liberação de mão-de-obra para os setores urbanos; d) criação de poupanças canalizadas ao processo de formação de capital na indústria; e finalmente; e) formação de um mercado para produtos industriais.


Todos os trabalhos de pesquisa e de análise do desempenho do setor agrícola brasileiro em termos daquelas “funções” chegaram à conclusão de que o resultado tem sido satisfatório, e que a agricultura brasileira tem contribuído para o atual processo de industrialização.


Há, no entanto, outras questões cujas respostas não mostram tanto otimismo. Demonstra a agricultura brasileira desenvolvimento em nível satisfatório? Resolveu a industrialização o problema da pobreza e do subdesenvolvimento?


Num país como o Brasil, as respostas a estas questões estão estreitamente ligadas ao desempenho do setor agrícola e, este, à visão da agricultura dentro da economia como um todo.

Obviamente, cabe ao setor agrícola a tarefa de ofertar alimentos e matérias-primas. Não é, porem, facilmente justificável conceito finalista de a agricultura subsidiar o desenvolvimento industrial a partir de uma queda na relação de preços agrícolas comparados aos preços industriais.


A tônica da política dos preços de origem agropecuária tem sido a de impedir sua elevação, principalmente dos produtos básicos de alimentação, como leite, carne e feijão. Resultado dessa distorcida política a gradual transferência de renda do setor agrícola ao setor industrial. Consegue-se, afinal, a baixa do custo e aumento dos lucros do setor industrial, contribuindo para sua expansão.


A expectativa de uma oferta crescente de produtos a preços mais baixos deve ser colocada não somente nos ombros do setor agrícola, mas extensivos aos demais setores. Isto pode e deve ser conseguido principalmente através do aumento da produtividade tanto agrícola, quanto industrial e de serviços, e, desta forma, contribuir-se decisivamente para o sistema econômico como um todo.


3. A segunda “função” do setor agrícola de produção de divisas está intimamente relacionada ao processo de substituição de importações. Já foi demonstrado que a substituição, de importações comumente gera grande sobrecarga no balanço de pagamentos devido às necessidades crescentes de importação de tecnologia, de equipamentos sofisticados e mesmo de capital necessário ao financiamento do processo.


A agricultura tem contribuído sensivelmente para solucionar o problema, haja vista que mais de dois terços de nossas exportações são de produtos agrícolas ou de origem agrícola.


A importância dada às nossas exportações agrícolas obscureceu, no entanto, o fato fundamental de que a agricultura deve gerar produtos para o abastecimento interno. Daí resulta, não uma política econômica de estímulo à oferta crescente a custos baixos mediante expansão das atividades e aumento de produtividade, mas, sim, uma política impositiva de tabelamento de seus preços, com os conhecidos resultados negativos em termos de oferta para o mercado interno.


O que depreendemos disto é que além dessas “funções” não refletirem a importância real da agricultura dentro do sistema econômico como um todo, a realização das metas preconizadas realça alguns possíveis conflitos entre elas. Isto fica claro, por exemplo, em relação ao problema de carne surgido em 1974 quando existiram sérias dificuldades no abastecimento do mercado interno, a preços tabelados, face às alternativas do mercado internacional. Geralmente distorções como estas surgem na medida em que se enfatiza a “função” atribuída à agricultura como geradora de divisas. O que ocorre como maior ênfase quanto maior for a importância dada ao setor industrial como elemento primordial no processo de desenvolvimento econômico.


4. A terceira “função”, tradicionalmente mencionada na literatura especializada, ou seja, a liberação de mão-de-obra para os serrotes urbanos, é inócua e pleonástica. O problema do subemprego e do desemprego aberto no Brasil evidencia claramente a desnecessidade de a agricultura liberar mão-de-obra. Ao contrario, face à incapacidade dos setores urbanos de absorção de mão-de-obra já “liberada” cabe ao setor agrícola a grande tarefa de reabsorver esse imenso contingente populacional.


Alguns estudiosos, afirmam que a modernização agrícola implica na utilização de técnicas capital-intensivas e que desta forma o desenvolvimento do setor agrícola dificilmente poderia contribuir para a solução dos problemas de absorção da mão-de-obra no Brasil. Tal afirmação é correta se aceita a premissa de que só é possível modernizar a agricultura utilizando-se tecnologia capital-intensiva, geralmente importada de países desenvolvidos.


Essa premissa nem sempre é verdadeira, mormente face aos recentes esforços despendidos na formação de uma chamada “tecnologia intermediária”. Um estudo recente efetuado na Índia indica que o desenvolvimento do setor agrícola, baseado na utilização de modernas técnicas capital-intensivas, realmente causam um efeito direto poupador de mão-de-obra e daí resulta o descolamento de trabalhadores agrícolas. No entanto, uma visão dinâmica do processo de crescimento do produto agrícola utilizando matrizes de insumo-produto indicou que os efeitos indiretos da modernização agrícola produziram um efeito compensador de que resultou aumento da taxa global de emprego.


Conclui-se, portanto, que a agricultura brasileira pode oferecer grande contribuição à solução do problema do emprego em nosso país, não através da liberação, mas, sim, da absorção de mão-de-obra excedente.


5. Enfatizada a posição do setor agrícola como um ramo de atividade que pode e deve ser desenvolvido por sua própria importância no processo de desenvolvimento econômico e não apenas como coadjuvante do desenvolvimento industrial, a agricultura não deve sobretudo, ser tratada como exportadora de capital para os setores urbanos. Por isto, a política econômica governamental deve reconsiderar criticamente os já conhecidos mecanismos de extração do excedente agrícola, tais como tabelamento de preços agrícolas, valorização da taxa cambial e subsídios negativos às exportações agrícolas. A descapitalização da agricultura chegou a um ponto crítico da necessidade de uma estratégia de formação de capital para o ingresso líquido de recursos no setor primário. A realidade brasileira afasta em conclusão a agricultura do papel de geradora de poupanças destinadas a formação do capital para a indústria.


6. Finalmente, a quinta contribuição do setor agrícola ao processo do desenvolvimento é prover um mercado para a oferta crescente de bens de origem industrial. Obviamente, tal objetivo entra em conflito com a “função” de geradora de poupança. Em parte, procura-se contornar essa contradição de forma engenhosa através da política de crédito rural. Ao mesmo tempo em que o crédito rural constitui importante componente de demanda para produtos industriais, passa também a liberar o setor industrial da necessidade de fornecer crédito aos clientes, pois as compras são efetuadas a vista. Indiretamente, pois, o setor industrial é provido de capital de giro que de outra forma teria de ser obtido da poupança urbana. O crédito rural, em última análise, se constitui em poderoso estímulo da produção industrial em alguns e importantes setores. Indispensável fator de sobrevivência e de desenvolvimento. Pode-se, sem exagero, afirmar que o crédito rural é um sistema mais especificamente industrial que agrícola.


7. Outra consideração importante numa economia cujo relacionamento comercial com o exterior seja importante fica, de certa forma, invalidada a necessidade de o setor agrícola atingir concomitantemente (com exceção da terceira função enumerada) os objetivos descritos. Torna-se possível que o mercado externo supra algumas das “funções” citadas como, por exemplo. O suprimento de alimentos para o mercado interno ou a absorção da produção industrial. Este fato introduz um elemento adicional de flexibilidade na formulação da política econômica e reduz consideravelmente a validade das “funções” da agricultura mencionadas acima. Numa economia aberta, repetimos, como a brasileira, todo o ambiente dentro do qual a agricultura atua é diferente e por conseguinte diferente deve ser visto do setor agropecuário dentro do sistema econômico como um todo.


O mercado gerado no setor agropecuário representa parcela ponderável do mercado total para produtos industriais e a recíproca é verdadeira. A interação dos diversos setores de composição do sistema econômico brasileiro forma uma rede de intercâmbios comerciais que torna inaceitável a concepção de um setor gerar mercado para outro setor em forma excessivamente unidirecional. Seria factível uma política que, em função de objetivos explícitos, alterasse a composição de nossa produção a favor de um ou de outro setor. Em resumo, a agricultura brasileira deve ser liberada de suas “contribuições” e seu peso na composição do Produto Nacional aumentado.


Parece, afinal, ser a hora de reconsiderarmos definitivamente as prioridades definidas no passado e atentarmos para a necessidade de total apoio ao setor agropecuário brasileiro para que ele obtenha um processo de crescimento mais condizente com as ideias associadas ao conceito de desenvolvimento econômico. Para tanto, é indispensável sobretudo que se evite a visão segmentada e tendenciosa adotada em relação a agricultura brasileira e que se passe a atentar para seus próprios méritos na tentativa de melhoria do padrão de vida da população brasileira.




Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque é professor da FGV em São Paulo e coordenador do Projeto Administração Rural da Fundap.



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