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Os juros e o "triângulo intocável"


No meu último artigo publicado nesta coluna, no dia 17, "O triângulo intocável", mostrei que a atual política econômica não tem sido eficiente para equilibrar as contas públicas. Apesar dos altos superávits primários e da elevada taxa de juros vigente, o endividamento público tem crescido, daí resultando a necessidade de uma política macroeconômica recessiva e altamente concentradora de renda. ​ As alternativas de política econômica defendidas insistentemente por políticos, empresários e economistas, para serem viáveis, devem necessariamente manter o equilíbrio de um tripé fundamental para a economia do país. É imperioso que propostas como reduzir os juros, renegociar a dívida, depreciar a moeda ou reduzir o superávit primário sejam capazes de simultaneamente reduzir o endividamento, manter a inflação sob controle e preservar o equilíbrio na balança de pagamentos. ​ As políticas alternativas freqüentemente propostas não permitem a manutenção do equilíbrio do "triângulo intocável". Adotar tais medidas de forma isolada pode resolver um problema, mas gera desequilíbrios e contra-indicações que as tornam não-operacionais como forma de dar início a um processo de retomada do crescimento da renda e do emprego. ​ Vamos examinar, neste artigo, as críticas sobre a atual política de redução dos juros e que impactos uma dosagem mais forte dessa política poderia ter sobre as principais variáveis da economia brasileira. ​ A redução dos juros é constantemente apresentada como a panacéia para os problemas nacionais. Todo mês o mercado vive momentos de histeria quando o Copom se reúne para fixar o juro primário. São comuns os discursos inflamados contra o conservadorismo do Banco Central, como ocorreu na última reunião do Copom. ​ São pertinentes os clamores em defesa da redução dos juros no Brasil, um dos mais elevados do mundo. O alto custo financeiro praticado no país inibe investimentos produtivos e transfere renda das empresas e das famílias para o setor financeiro e para os rentistas. ​ Tal posição, no entanto, não atenta para o fato de que o maior problema relacionado ao custo do dinheiro no Brasil reside no abominável nível dos "spreads" praticado pelas instituições financeiras. A taxa Selic é apenas um indicador, calibrado pelo Banco Central em função da expectativa de inflação futura e também em decorrência de mudanças no cenário externo que possam afetar o balanço de pagamentos do país. ​ A diferença entre a remuneração paga pelos bancos ao poupador e a taxa cobrada do tomador final tem sido atribuída a fatores como a reduzida oferta de crédito, a cunha fiscal e o elevado nível dos depósitos compulsórios. No entanto, a causa preponderante dos juros abusivos praticados no país é a atuação oligopolística do setor bancário. ​ O poder de mercado dos bancos no Brasil é um fato que não se debate em profundidade. Enquanto isso, a lucratividade do setor ganha de longe dos demais setores produtivos nacionais, ganhos esses potencializados por operações de tesouraria em razão da Selic elevada. ​ Reduzir mais aceleradamente a Selic, como muitos apregoam, teria um efeito positivo sobre o denominado "triângulo" no lado do endividamento. A dívida mobiliária, principal item da dívida pública, está indexada em 55% de seu total à taxa Selic. O restante tem como indexadores o câmbio e outros indicadores. Com uma Selic menor, o custo da dívida diminuiria e o PIB poderia crescer no curto prazo. Dessa forma, o estoque da dívida em relação ao PIB seria declinante. Ocorre que, com juros abruptamente reduzidos, haveria risco de um impacto negativo no lado da inflação do "triângulo". O maior volume de crédito teria como conseqüência o aquecimento da demanda. Numa economia como a brasileira, em que vários setores não foram estimulados a fazer investimentos em expansão de capacidade e modernização, a pressão sobre os preços seria inevitável. Setores como os de celulose, pneus e siderurgia, por exemplo, estão com a capacidade de expansão da oferta praticamente no limite. ​ No lado do balanço de pagamentos, uma política de queda acelerada nos juros também poderia gerar efeito negativo. No momento em que o Federal Reserve sinaliza a elevação dos juros nos EUA, a redução da Selic reforçaria o enxugamento de recursos externos na economia brasileira. ​ O Brasil precisa compensar, na conta de capital, o déficit nas contas correntes que registra ao longo da história. Em 2002, o balanço de transações correntes foi deficitário em US$ 7,7 bilhões. Em 2003, houve um superávit em conta corrente de US$ 4 bilhões, por conta das exportações, que atingiram US$ 73,1 bilhões e que foram determinantes para o superávit comercial de US$ 24,8 bilhões. Mas, apesar disso, as entradas de capitais externos foram fundamentais para o país acumular reservas e se preparar para uma eventual aceleração em sua taxa de crescimento. ​ Outra conseqüência potencialmente negativa da redução da Selic no balança de pagamentos é a pressão sobre as importações causada pelo aquecimento da demanda interna, o que poderia comprometer os atuais saldos das transações comerciais. ​ Em suma, nem tudo são flores com uma Selic significativamente mais baixa. Uma redução rápida dos juros apenas seria capaz de dar início à retomada sustentada do crescimento econômico se fosse praticada dentro de um quadro conjuntural e estrutural mais propício do que o existente atualmente. ​ Nesse sentido e na ausência de outras medidas estruturais que inexplicavelmente o governo não adota -como uma efetiva reforma tributária-, a estratégia gradualista parece ser a mais adequada, ainda que claramente seja uma política de "second best".

 

MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

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#Folha #ARTIGOS #2004

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