O nó górdio reside no ICMS, um tributo que no mundo inteiro está a cargo do poder central
Ives Gandra da Silva Martins - 19/09/1999
O relatório do deputado Mussa Demes está permitindo amplo debate sobre os caminhos da reforma tributária, fato que propiciará a escolha do melhor modelo para substituir o esclerosado sistema atual.
Méritos indiscutíveis devem ser atribuídos ao parlamentar, como, por exemplo, a melhoria do princípio da anterioridade, já não mais apenas limitado à aprovação da lei no exercício anterior à cobrança do tributo por ela instituído ou majorado, mas, simultaneamente, vedando sua exigência antes de 90 dias contados da data em que a lei adquira eficácia. As normas aprovadas no último dia do ano só poderão respaldar exigência de tributos a partir de 31 de março do ano seguinte.
A improcedibilidade penal antes do encerramento dos processos administrativos tributários, a proibição de medida provisória para veicular matéria tributária, a eliminação da cumulatividade das contribuições sociais, a possibilidade de compensação de precatórios com débitos tributários, assim como de negociação dos débitos tributários, conforme a condição do contribuinte, são outros pontos extremamente positivos da proposta.
Convenço-me de que a pretendida quebra do sigilo bancário por agentes fiscais, independentemente de autorização judicial e da demonstração da existência de indícios de conduta ilícita, esbarra na imodificabilidade da quebra do sigilo de dados, que é cláusula imodificável da Constituição Federal (art. 5º, inciso XII).
Onde o relatório não encontra consenso é no que diz respeito à criação de um novo ICMS. A sugestão do parlamentar, se aprovada, certamente irá complicar a vida de todos os contribuintes. A indústria, sujeita apenas ao IPI e ao ICMS, passará, se vender a varejo ou para consumidores finais, a estar também sujeita ao IVV. O comércio, hoje apenas sujeito ao ICMS, estará sujeito ao ICMS federal, ao estadual e ao IVV municipal. O segmento de serviços, atualmente sujeito apenas ao ISS, estará obrigado a recolher tributos para as três esferas de poder.
Todos os segmentos, portanto, sofrerão três fiscalizações, devendo manter não uma, mas três escriturações sobre obedecer a leis de poderes diversos.
A adoção de regime de destino para a cobrança desses impostos nas operações interestaduais dificultará sobremaneira a fiscalização, à falta de agentes em número suficiente. Se a cobrança for na origem para transferência posterior da receita ao Estado de destino, correr-se-á o risco de o poder local não ter o mesmo interesse fiscalizatório, eis que porá em funcionamento sua máquina administrativa em prol de outro Estado, sem nada receber.
Talvez algumas alternativas possam ser estudadas. A primeira delas é aquela que defendi na CNC (Confederação Nacional do Comércio), com apoio da entidade, de um IVA federalizado, com partilha imediata para Estados e municípios, com o que se eliminariam os problemas que a guerra fiscal entre os Estados provoca. Sua implantação dependeria apenas de quantificar as arrecadações atuais das entidades federativas para que a partilha não provocasse os problemas gerados pela lei complementar 87/96. De certa forma, tal proposta está na linha da que elaborei em 1991, pelas páginas deste jornal, de um imposto circulatório de bens e serviços da Federação partilhado.
Outra alternativa a ser estudada, na sua nova versão, é a proposta do deputado Marcos Cintra, em que o tributo sobre as movimentações financeiras seria destinado exclusivamente a financiar a seguridade social, substituindo também as contribuições hoje existentes. A fim de evitar uma cumulatividade indesejável, propõe o parlamentar a adoção da tabela idealizada por Leontieff (matriz-insumo-produto), para que os produtos exportados sejam desonerados da carga cumulativa e os importados, onerados por uma tributação equilibradora, para sofrer a mesma carga impositiva existente internamente para produtos nacionais.
A própria proposta do ministro Pedro Parente deve ser reexaminada, pois o perfil dos dois tributos circulatórios propostos é mais simples do que aquele constante da proposta do deputado Mussa Demes.
Parece-me que o nó górdio da reforma reside no ICMS, na medida em que é um tributo que no mundo inteiro -mais de cem países adotam o IVA- está a cargo do poder central. Nunca, nas Federações, das unidades federativas. A vocação do ICMS é federal, não estadual, e a teimosia de mantê-lo no âmbito dos Estados é que tem provocado as grandes distorções do sistema.
Creio que a sociedade toda deva participar da discussão, podendo, de imediato, a comissão de reforma tributária dar uma excelente contribuição ao país retirando a cumulatividade do PIS e da Cofins, por lei ordinária, pois nada na Constituição impede tal precedente.
Em outras palavras, o país está a caminho de sua reforma tributária. Que o amplo debate e a busca de forma mais simplificada de tributação sejam a tônica dessa empreitada.
Ives Gandra da Silva Martins, 64, advogado tributarista, é professor emérito das universidades Mackenzie e Paulista e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército e presidente da Academia Internacional de Direito e Economia e do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.