IMPACTOS DA GLOBALIZAÇÃO
Os próximos anos serão marcados por dois debates interligados: a) o da integração do Brasil nos blocos mundiais em processo de formação, com especial referência à Alca ou em blocos consolidados em expansão, notadamente a União Europeia; b) a polêmica questão da reforma tributária, reivindicada e prometida por todos, porém sem perspectiva de imediata implementação.
Os dois temas estão relacionados na medida em que é inevitável o processo de abertura econômica e a busca de eficiência nos processos produtivos. A reforma tributária, um dos mais angustiantes problemas, é um fator crítico para a produção nacional.
ALCA
Dentre todas as vertiginosas mudanças econômicas e sociais que têm caracterizado os últimos anos, talvez a globalização dos mercados tenha sido o acontecimento de reflexos mais profundos em todos os aspectos da vida contemporânea. Fruto de fatores conjunturais e estruturais, de avanços científicos e tecnológicos, elementos políticos e transformações sociais, esse processo de interligação de países, povos e derrubada de barreiras tangíveis e intangíveis tem conduzido o mundo a uma trajetória impensável há poucas décadas.
Como corolário direto destes novos tempos, a expansão vertiginosa do comércio mundial de bens e serviços e dos fluxos financeiros internacionais fez-se acompanhar por uma tendência de formação de blocos econômicos, paralelamente ao prosseguimento de negociações multilaterais para a remoção de entraves às trocas de mercadorias. Assim, nomes como Mercosul, União Europeia e Nafta tornaram-se familiares ao longo dos últimos anos a parcelas crescentes da nossa sociedade.
Mais recentemente, uma nova sigla veio se juntar àquele rol: a Área de Livre Comércio das Américas — Alca. Inicialmente pouco notada, a Alca vem despontando como alvo preferencial da atenção de estudiosos, políticos e empresários.
Nesse sentido, há três preocupações fundamentais a serem atendidas nas discussões da Alca:
A primeira se relaciona às fortes assimetrias e às colossais diferenças econômicas, sociais e políticas entre os países componentes da Alca. Há que se buscar mecanismos para atenuar os efeitos maiores, especialmente para as nações importadoras, como as do Caribe.
A formação de uma zona de livre comércio exige a criação de oportunidades diferenciadas de abertura de mercados de exportação, fluxo de investimentos e de tecnologia, com condições privilegiadas para países em desenvolvimento. Ao menos durante um horizonte de tempo, é necessária uma política ativa que garanta um mínimo de homogeneidade aos países do continente.
A terceira preocupação está diretamente relacionada com as condições de competitividade da economia brasileira frente aos seus concorrentes. Nesse debate, surge com frequência a preocupação com os tributos, o custo Brasil, e a necessidade de uma reforma tributária capaz de aumentar a competitividade da produção brasileira no cenário internacional.
Dentre os países estruturantes da Alca, apenas Estados Unidos, Canadá e Chile preenchem os requisitos básicos para uma adesão bem-sucedida, incluindo estabilidade de preços, regularidade das normas de comércio exterior e taxa de câmbio estável. A maioria dos outros países ainda formula suas políticas econômicas com base na memória de crises recentes ou sob a expectativa de conclusão de reformas econômicas em curso.
Por essas razões, a Alca é um empreendimento difícil, com altos riscos de insucesso, principalmente devido à oposição de setores internos de vários países e pelas dificuldades intrínsecas de obtenção de um mínimo de coordenação macroeconômica.
REFORMA TRIBUTÁRIA
Na questão tributária, nota-se o esgotamento do paradigma convencional, que entra em crise ao tentar fornecer explicações, diagnósticos ou justificativas para os novos fatos que surgem no panorama econômico atual. Com o processo de globalização e a revolução da informática, observa-se uma crescente ineficácia dos mecanismos tradicionais de exação tributária, cada vez mais dependentes do conceito de que o contribuinte é um fraudador, até prova em contrário. Isso resulta em um sistema de controle e vigilância que não consegue impedir a evasão e a elisão fiscais.
Exemplos desse questionamento incluem a incapacidade dos Estados nacionais em lidar com os problemas gerados por paraísos fiscais, métodos sofisticados de lavagem de dinheiro e fluxos internacionais de recursos. A prática da sonegação e a expansão da economia informal agravam ainda mais a capacidade de arrecadação dos governos.
Atualmente, assiste-se ao surgimento de uma nova espécie tributária que se impõe por sua eficiência arrecadatória, baixos custos e virtual impossibilidade de sonegação: os tributos sobre movimentação financeira. A prática indica que é preferível intervir no processo de circulação de ativos, retirando uma pequena parte da riqueza para aplicação social, de forma mais eficiente e transparente.
A NECESSÁRIA INTERDIÇÃO DO DEBATE
Considerando-se VL, tanto na questão da adesão ao pacto da ALCA quanto na questão interna da reforma tributária, a globalização e as implicações da criação da ALCA geram novos desafios para os formuladores de política econômica. Os velhos conceitos para lidar com essa nova realidade acabam se tornando obstáculos à firmação de consensos e à construção de novos paradigmas.
Neste trabalho serão avaliadas essas duas variáveis na definição da nova formatação da economia brasileira para os próximos anos. Na realidade, trata-se de analisar a fase de transição pela qual passa a economia brasileira, de uma economia relativamente fechada, com um Estado nacional praticante de políticas ativas de crescimento econômico, para um Estado global, onde as limitações e os controles nacionais perdem muito de suas principais características históricas.
As decisões a serem adotadas pelo país nos próximos anos serão estratégicas e, certamente, deverão marcar características da economia brasileira por muitos anos.
IMPACTOS DA INTEGRAÇÃO
O ponto fundamental nas discussões que neste momento se travam sobre a participação do país em uma área de livre comércio hemisférica pode ser resumido numa singela pergunta: é interessante para o Brasil juntar-se à ALCA? A resposta é evidente — e quase acadêmica — é: sim, desde que os benefícios potenciais superem os custos esperados dessa integração.
Trata-se, porém, de uma ponderação enganosamente simples. Na verdade, a fonte das nossas angústias e perplexidades quanto à ALCA reside, precisamente, na enorme dificuldade hoje existente para se identificar e se avaliar com toda a precisão desejada os aspectos favoráveis e desfavoráveis associados à ideia.
Em primeiro lugar, não há um quadro razoavelmente claro sobre se a ALCA figura no clássico de uma área de livre comércio, com a retirada das barreiras ao fluxo comercial entre os países-membros. O caráter amplo da ALCA, envolvendo mercadorias, serviços, direitos de propriedade intelectual e políticas nos temas objeto de grupos de discussão, não está, portanto, livre de crítica. Por outro lado, a ideia de uma união aduaneira, que seria a sucessora natural da área de livre comércio na linhagem mais comumente encontrada em projetos de integração, é algo novo, tornando a experiência muito mais sofisticada.
Em segundo lugar, não seria exagero afirmar que o processo de negociação ultrapassa agora uma fase decisiva para a definição da ALCA. O fato é que só agora surge a necessidade premente de buscar avaliar os benefícios, riscos potenciais e perdas com o conjunto de informações disponíveis. No entanto, o processo não é uma variável exógena para o país. Muito pelo contrário. O sucesso dos nossos interesses será mais preservado quanto mais bem informados estivermos sobre aqueles riscos e oportunidades e quanto mais eficaz for a nossa estratégia.
Isto posto, cabe enumerar, inicialmente, os principais argumentos contrários, a priori, à adesão do Brasil à ALCA. Identificam-se os seguintes pontos:
Maior produtividade da economia americana, fazendo com que grande parte da produção industrial brasileira fique menos competitiva frente aos americanos.
Tendência da indústria brasileira para especializar-se na produção de bens com menor conteúdo tecnológico, em virtude da maior competitividade americana na manufatura de mercadorias e desenvolvimento tecnológico, ou o retorno ao modelo primário.
A industrialização brasileira, em virtude da especialização crescente em atividades primárias.
Dificuldade no aprimoramento da autonomia do Estado em conduzir políticas ativas.
Perda da posição no comércio internacional como consequência da integração continental.
Possibilidade de aumento dos déficits em nossa balança comercial com os EUA, agravando nossa situação.
Maior risco de perda comercial com um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia em relação à integração Mercosul à ALCA.
Inexistência de grandes prejuízos para o Brasil em decorrência da não integração com os mercados americanos.
Em contrapartida, os principais argumentos a priori em favor da participação do Brasil na ALCA podem ser identificados nos seguintes pontos:
Oportunidade valiosa para a derrubada de barreiras que impedem ou dificultam o acesso ao mercado norte-americano de itens importantes de nossa pauta de exportações, com destaque para produtos de base agrícola, têxteis e industriais tradicionais, em especial os siderúrgicos.
Aumento da competitividade e da eficiência da indústria nacional, fruto da maior abertura econômica que se estabeleceria.
Atração de investimentos e maior pedido da produção nacional pelos mercados externos (principalmente dos EUA) e maior estabilidade das regras e políticas decorrente da aplicação do acordo de integração.
Em princípio, tanto os argumentos contrários como os favoráveis à participação do Brasil na ALCA devem ser considerados, já que se baseiam em suposições plausíveis, dadas as circunstâncias ainda indefinidas para o futuro. A experiência histórica e a teoria sugerem, no entanto, que, também nesse caso, a virtude está no equilíbrio.
Com efeito, é razoável que a constituição da ALCA traga para nossa economia um complexo ou um sucesso muito relativo. Alguns setores se beneficiarão e outros sofrerão prejuízos com a formação de uma área de livre comércio continental. Nessas condições, então, a avaliação daqueles elementos centrais deve basear-se no exame de estudos quantitativos já efetuados sobre o assunto e na análise de outras experiências de integração.
Dentre os muitos resultados obtidos de pesquisas e outros autores, surgem três aspectos interessantes para nossa discussão:
Os EUA são nossos grandes competidores nos mercados do México e do Pacto Andino, enquanto o México é um concorrente importante nos mercados dos EUA e da América do Sul; a China é uma grande competidora nossa nos mercados da América Latina, e outros países das Américas figuram como nossos concorrentes mais relevantes.
A existência de acordos comerciais e de margens de preferência exerceu importante influência explicativa dos ganhos e das perdas das exportações brasileiras de manufaturados nos mercados globais para nossos concorrentes. Em geral, esses ganhos e perdas se mostraram quando considerados país a país, com a evolução dos índices de competitividade (baseados em câmbio, custos e preços de produtos) de cada país.
Em contrapartida, os índices de competitividade têm boa capacidade explicativa para as perdas e ganhos agregados das exportações brasileiras.
Dessa forma, os resultados indicam que a vigência de acordos comerciais exerce influência decisiva para a determinação da competitividade das exportações de produtos manufaturados. Considerando-se a distribuição das nossas exportações e a dos nossos principais concorrentes, não parece ser amparada pelos fatos a hipótese de que a ALCA seria irrelevante para o comportamento de nossas vendas de manufaturados ao exterior.
Por outro lado, Pereira (2001) realizou um estudo dos impactos de uma associação do Mercosul com a ALCA, de um lado, e com a União Europeia, de outro, por meio de simulações efetuadas com um modelo de equilíbrio geral computável, como o Project — GTAP. Muitos são os resultados do estudo, mas gostaríamos de destacar os seguintes:
Com as hipóteses e dados utilizados, conclui-se que uma associação do Mercosul à União Europeia redundaria em um aumento maior do produto brasileiro do que uma associação do Mercosul à ALCA, conclusão também corroborada por Batista (2001).
O maior crescimento do produto no cenário Mercosul-União Europeia, porém, seria decorrente da maior especialização da economia brasileira nos setores primários. De fato, em ambos os casos, haveria um crescimento do produto industrial e um crescimento do produto agrícola, mas a queda industrial seria menor e o crescimento agrícola seria bem maior na alternativa Mercosul-ALCA.
As exportações industriais cresceriam menos no cenário Mercosul-ALCA do que na alternativa União Europeia.
O estudo, portanto, não apoia a tese de que o ingresso do Brasil na ALCA resultaria em perda de competitividade nas exportações de produtos industriais. Não só essa competitividade aumenta, como aumenta mais do que na situação em que o Mercosul optasse por formar uma área de livre comércio com a União Europeia.
Brandão e Brandão (2001) analisam as negociações agrícolas no âmbito da NAFTA, as exportações brasileiras de produtos agrícolas e suas perspectivas frente àquele mercado. O estudo realça um aspecto significativo e muitas vezes negligenciado nas análises prospectivas da ALCA: a existência de proteções para não ser considerada um ponto pacífico. Ao contrário, como mostra o exame do processo de integração no âmbito da NAFTA, esperar negociações, sobretudo com os EUA, especialmente com respeito a produtos em que somos muito competitivos, mas que são, hoje, alvo de medidas protecionistas por parte daquele país, como açúcar e suco de laranja.
Assim, os possíveis ganhos decorrentes do acesso desimpedido de nossos produtos agrícolas ao mercado americano, ponto inquestionavelmente positivo de uma eventual ALCA, não podem ser encarados como garantidos, mas pelo contrário, devem ser vistos como altamente improváveis. Poderão ocorrer mais tarde do que normalmente se pensa. Por isso, a questão agrícola deverá ser fruto de uma cuidadosa, ativa e incansável participação do Brasil nas negociações pré e pós-2000.
A par de todos esses aspectos, muito se tem enfatizado, nos debates que têm tratado sobre o tema ALCA, que nosso setor produtivo não teria condições de ser exposto, de forma súbita, à concorrência externa, já que seria dependente de uma estratégia de proteção herdada do regime de substituição.
Esquece-se, porém, que isso já ocorreu no início da década de 1990, com a ampla e algo acelerada abertura da economia que se verificou. É notável, aliás, que esses mesmos argumentos foram utilizados à larga naquela ocasião para prever o fim iminente e desfavorável de nossa indústria. Dez anos depois, no entanto, verificamos que o cenário apocalíptico não se confirmou. A abertura comercial no início da década de 1990, com o Brasil se especializando como exportador de manufaturados, reduziu a participação dos produtos básicos e aumentou a dos produtos semimanufaturados e manufaturados ao longo do período pós-abertura.
Apesar de termos sido submetidos às duras da concorrência externa, à hiperinflação e à balança microeconômica anteriores à estabilização da economia e às taxas de juros e câmbio posteriores ao Plano Real, nosso parque produtivo mostra invejável vitalidade, colhendo os frutos da vigorosa modernização e ganhos de eficiência, e oferecendo aos nossos consumidores produtos mais baratos e de muito melhor qualidade. Assim, a nosso ver, aquele desafio já foi superado — e muito bem.
Uma ALCA abalaria as estruturas de nossa economia, dado que não provocaria alterações substanciais na sua organização. Da mesma forma, nos parece claro que a adesão à ALCA exigiria a elaboração e a execução de políticas industriais ativas do Estado brasileiro, lembrando que a adesão do país ao projeto não implicará a perda da soberania nacional e, em particular, eliminará nossa autonomia na formulação e execução de políticas orçamentárias. Assim, a proposta pessimista só faria sentido se a política industrial fosse baseada na proteção ampla e de duração indefinida contra a concorrência externa — mas, nesse caso, não precisaríamos de uma ALCA para nos proteger.
Por fim, as simulações de Haddad e outros (2001) comparam os efeitos da integração brasileira no caso de três alternativas: ALCA, UE e OMC. Segundo os autores, os três cenários de liberalização brasileira mostram impactos diferenciados. Os resultados sobre o PIB mostram efeitos relativamente positivos, ainda que pequenos, sendo em decrescente ordem: maiores na liberalização global, seguidos pela União Europeia e pela ALCA.
Os autores apontam ainda que a pauta das exportações brasileiras se mostra mais favorável à de maior valor agregado no caso da estratégia direcionada, sobretudo para os países da ALCA, do que para os do NAFTA, que se concentram em produtos de menor valor agregado. No caso da estratégia LTE, a concentração seria em produtos agropecuários, têxteis e indústria alimentícia.
O que as demais simulações mencionadas anteriormente comprovam é que não há justificativas sólidas para as críticas ao projeto ALCA que tentam sugerir que as assimetrias competitivas entre a indústria norte-americana e a brasileira tenderiam a fazer o país regredir a um estágio de exportador de commodities agrícolas, abrindo mão de qualquer projeto viável de industrialização modernizadora. Pelo contrário, parece ser mais provável que a adesão à ALCA aumentaria a participação industrial no PIB brasileiro.
Contudo, no caso do projeto ALCA, as hipóteses apontam para o inverso. Há maiores riscos de concentração na base da cadeia agrícola, ao passo que a integração por meio dos acordos da OMC tenderia a ser mais bem distribuída, mantendo-se a pauta de exportações. Existe mais complementaridade entre Brasil e os EUA do que supõem os críticos da ALCA, que alegam que a maior produtividade global dos EUA condenaria o Brasil a abandonar seu setor industrial. De fato, o Brasil e os EUA possuem estruturas produtivas parcialmente concorrentes apenas no setor agropecuário. Os EUA são hoje uma economia de serviços, como mostra o gráfico abaixo:
Além disso, é um equívoco imaginar que a maior produtividade global norte-americana inviabilizaria o setor industrial brasileiro, já que o que preside as trocas internacionais são os princípios das vantagens comparativas, e não o das vantagens absolutas. Nesse sentido, a ALCA permitiria maior acesso aos mercados industriais tradicionais dos EUA, como têxteis, alimentos processados, siderurgia, material de transporte, vestuário, couros, calçados, etc., onde o Brasil estaria concorrendo com os demais países de desenvolvimento intermediário, como o México, Venezuela, Colômbia e Argentina, e não com a própria indústria norte-americana, que há muito abandonou esses setores em favor das importações.
A indústria dos EUA se concentra nos segmentos de alta tecnologia, como informática, telecomunicações, química fina, fibras óticas, aeronáutica de grande porte e outros setores com elevada relação capital/trabalho, segmentos nos quais não há concorrência com a indústria nacional, o que explica, inclusive, a situação do "Emprego na Indústria" da população economicamente ativa.
Em outras palavras, a ALCA seria importante para estimular o crescimento do setor industrial brasileiro, que, embora ainda concentrado em setores tradicionais, já passou pela abertura comercial do início dos anos 1990, acumulando eficiência e qualidade que lhe garantem competitividade frente aos concorrentes fora da zona americana.
Em resumo, parece que as críticas à ALCA rejeitam posturas simplistas e preconceituosas sobre a integração. As oportunidades que se abrem são muitas e exigem uma análise técnica e política acurada das etapas e de todas as possíveis alternativas do processo. É imperativo que o país se prepare com seriedade para as mudanças, e tanto a classe empresarial quanto a política devem estar totalmente envolvidas. Acima de tudo, é necessário que o envolvimento total nas negociações da ALCA esteja alinhado com a estratégia que atenda aos interesses da sociedade.
CAMINHOS DA REFORMA TRIBUTÁRIA
A urgente necessidade de uma nova estrutura tributária no Brasil tem sido um dos temas centrais na pauta nacional. A questão torna-se particularmente relevante no atual momento, quando se debate intensamente a adesão ao ALCA.
Embora seja verdade que há constantes reclamações acerca dos tributos brasileiros, apontando com frequência os efeitos deletérios desses tributos na competitividade, os padrões de incidência tributária no Brasil ainda são complexos e difíceis de administrar. A complexidade do sistema tributário e as dificuldades de implementação transformaram a questão tributária em um dos maiores obstáculos para o progresso do Brasil.
O caráter inadiável dessa reforma se justifica pelo fato de que ela está diretamente ligada a um dos principais aspectos da economia do país, compreendendo um fator decisivo para a atuação dos diferentes agentes econômicos, públicos e privados.
Nos últimos dez anos, foi notável a intensificação do debate tributário. Durante esse período, surgiram várias propostas, revelando uma clara divisão de correntes de pensamento. De um lado, a corrente ortodoxa, que defende os métodos tradicionais de arrecadação e normas convencionais do direito tributário, alguns deles ultrapassados pelos avanços tecnológicos e, sobretudo, pela forma eletrônica de principais transferências de ativos; do outro, a proposta inovadora e antidogmática dos tributos não declaratórios, epitomizada no renascimento do histórico conceito do Imposto Único.
A primeira corrente, a dos impostos declaratórios, sustenta que "imposto bom é o imposto velho", e incorpora, segundo os reformistas mais radicais, a continuidade das práticas ultrapassadas pela economia contemporânea, caracterizada pela globalização e pelos avanços avassaladores da era da informação eletrônica. Sua defesa, segundo o saudoso economista, diplomata e homem público Roberto Campos, não oculta apenas um sentimento melancólico, mas um retrocesso.
A segunda corrente baseia-se nos impostos não declaratórios, arrecadados principalmente por meio de impulsos eletrônicos emitidos dentro das centrais de processamento de dados do sistema bancário, como os impostos sobre movimentação financeira. Segundo os tradicionalistas, trata-se de uma proposta perigosa, chegando às raias do utopismo. Apesar de possuir maior capacidade arrecadatória e um padrão de incidência quase universal, os postulados dessa corrente enfrentam resistência dos defensores da ortodoxia tributária e daqueles que, em prol de um novo paradigma, ainda não aceitaram os avanços das últimas décadas.
O embate entre essas duas correntes tributárias, a declaratória e a não declaratória (que poderiam ser resumidas como "campeão" e "sem-papelório"), aborda questões resultantes não apenas das mudanças profundas no ambiente econômico das economias modernas, mas também do posicionamento da área tributária, ou das finanças públicas, como ciência.
Uma área de estudo transforma-se em ciência, segundo Thomas Kuhn, quando um paradigma, ou seja, um conjunto de conceitos e padrões uniformes de abordagem, torna-se aceito consensualmente por uma comunidade de especialistas, com uma teoria e um conjunto comum de tradições explicativas e interpretativas. A autoridade de uma proposição científica passa a se fundamentar em sua capacidade de gerar consenso no âmbito de uma dada comunidade. Tal consenso, por sua vez, não depende de que as propostas científicas tenham uma vigência indiscutível em relação à realidade. Depende, isso sim, de que sua elaboração tenha sido orientada por critérios de demarcação prevalecentes no âmbito dessa comunidade. É por esse motivo que os paradigmas destacam-se por incommensurabilidade. Se cada um dos paradigmas define as condições de cientificidade do conhecimento produzido em seu âmbito, as provas invocadas em um paradigma são desqualificadas a partir do momento em que se adota outro paradigma.
Essa visão sobre o terreno científico (que pode ser aplicada à vida em sociedade) permite afastar a argumentação defensiva dos que tendem a rechaçar o imposto único com o argumento de que, se fosse bom, já teria sido adotado há muito tempo. O argumento crítico não leva em conta o peso inercial das estruturas tributárias ou, no sentido inverso, a revolução criada pelas transações eletrônicas de ativos, um aspecto não suficientemente avaliado pelos "burocratas". O Brasil, por exemplo, comparado a países com economias mais avançadas, é significativamente mais moderno do ponto de vista do sistema tributário, o que possibilita justamente o salto conceitual e a revolução paradigmática do imposto único.
Em realidade, esse debate tenderá a se tornar cada vez mais previsível na medida em que dois fatores fundamentais na história contemporânea imporão um desfecho inevitável nesta polêmica em favor da corrente referida: em primeiro lugar, a revolução tecnológica da era da informação e, em segundo plano, mas não menos importante, o fenômeno do atual processo de globalização das relações econômicas.
A era da informação alterou em profundidade a função de produção agregada das economias modernas. Os métodos de processamento de grandes massas de dados permitiram enormes avanços no processo de tomada de decisão. A sofisticação no processamento de informações induziu melhorias nos métodos de coleta e análise de dados. A oferta e o controle das informações tornaram-se insumos fundamentais no processo decisório das empresas modernas, evidenciando de forma dramática a precariedade dos mecanismos declaratórios e dos sistemas tributários convencionais que surgiram no ambiente tecnológico e organizacional imediatamente posterior à revolução industrial.
Além disso, a expansão da participação dos serviços no produto nacional comprometeu significativamente a eficácia das regras de controle e dos mecanismos de arrecadação de tributos vigentes anteriormente. A produção tornou-se intangível e desmaterializada, tornando mais ineficaz a continuidade dos mecanismos convencionais de apuração e fiscalização de impostos. De fato, um serviço intangível circulando via internet — um novo programa de administração contábil, por exemplo, de custo relativamente elevado, mas reduzido a simples bits e bytes no processo de fornecimento e utilização — tornou-se, hoje, um desafio para as autoridades tributárias, que são mantidas completamente alheias a esse tipo de intercâmbio. Mesmo a transação financeira daí resultante é feita em paraíso sem especificação de origem ou destino, o que dificulta bastante a taxação específica do produto ou serviço. Contudo, em algum momento, a transferência a título de pagamento ou resultados da utilização do produto ou serviço terá forçosamente de ocorrer em território determinado, que constitui a base de operação normal da empresa em questão (que, evidentemente, não vende nada em paraíso fiscal). Nesse momento, o imposto sobre transações financeiras terá de incidir sobre a movimentação bancária.
Os modelos tributários tradicionais assumiam que a produção e a geração de tributos surgiam em processos produtivos manuais (e posteriormente mecânicos), em espaços geográficos centrados em sistemas organizacionais autônomos, independentes, e em bases nacionais definidas por um Estado soberano. A obrigação tributária rapidamente se expandiu para abranger praticamente todo o universo de pessoas físicas e jurídicas. A base tributária ampliou o conjunto dos contribuintes, que antes era composto por poucas e grandes empresas, passando a englobar a totalidade das empresas e dos indivíduos existentes nas economias modernas. As funções de cobrança, apuração e controle das obrigações tributárias alcançaram uma escala totalmente incompatível com os sistemas declaratórios caracterizados pelo método tradicional da "auto-apuração" e do "auto-lançamento".
Nesse sentido, a informática passou a oferecer um instrumento imprescindível para a coleta e análise da enorme massa de dados e informações necessária para o processo de controle, acompanhamento e arrecadação de impostos. Os sistemas bancário e tributário do Brasil contemporâneo situam-se, diga-se de passagem, entre os mais modernos conhecidos no mundo, o que possibilitaria ao país dar o salto paradigmático mencionado.
Contudo, a era da informática não imprime sua importância apenas como método de controle, fiscalização e análise das tributárias. Vai além e torna-se um fator na concepção de novos conceitos, principalmente na configuração das bases impositivas, como a movimentação financeira, os fluxos eletrônicos, os impulsos telefônicos, as ondas de dados intangíveis que antes eram dificilmente alcançadas pelos sistemas convencionais.
O segundo fenômeno modificador das tributárias é a globalização, um fato complexo, com múltiplas características, e que implica profundas alterações na vida econômica e social da humanidade. Segundo Faria (1999), a globalização tem sido responsável pela desconstrução de alguns importantes conceitos, princípios e categorias — soberania, identidade, hierarquia das leis, direitos subjetivos, igualdade formal, cidadania, equilíbrio de segurança e controle — fortemente atingidos por mudanças políticas, econômicas e culturais em grande parte à margem das estruturas jurídicas, dos mecanismos judiciais, das engrenagens institucionais e da capacidade de controle, gestão, direção e adjudicação dos Estados nacionais.
De fato, a globalização diminuiu o poder das administrações públicas nacionais através da descentralização e fragmentação da capacidade decisória dos poderes tradicionais e, de maneira ainda mais significativa, debilitou a capacidade de taxação e regulamentação dos Estados. Além disso, a globalização cria um cenário altamente mutável, no qual o direito positivo enfrenta um dilema cruel: se permanecer preocupado com sua integridade lógica e racionalidade diante de mudanças profundas e intensas, corre o risco de não acompanhar a dinâmica dos fatos, tornando-se funcionalmente ineficaz e, por fim, socialmente desconsiderado, ignorado e (em uma situação-limite) considerado obsoleto. Ao tentar controlar e disciplinar diretamente todos os aspectos de uma vida social, econômica e política cada vez mais instável, imprevisível, heterogênea e complexa, corre-se o risco de desfigurar o sistema como referência normativa.
O divórcio entre as bases conceituais do poder público que emergiram no período pós-guerra e os desafios impostos pela globalização do mundo moderno tem resultado no que Faria (1999) denominou de "ingovernabilidade sistêmica" do Estado. Daí a pergunta: até que ponto esta nova realidade, profundamente marcada pela revolução da informática e pela intensa globalização, vem sendo apreendida pelos modelos tributários tradicionais?
São questões colocadas no âmbito mais amplo do direito positivo, concebido tanto pelo Estado quanto pelo Estado intervencionista keynesiano, mas que se aplicam com ainda mais intensidade no âmbito das instituições tributárias convencionais, marcadas por uma profunda corrosão de sua eficácia e pelo desgaste de seus mecanismos de imposição.
O modelo tributário tradicional considera que a empresa (e o mesmo princípio se aplica à pessoa física) seja uma entidade nuclear produtora de bens tangíveis, com uma ou poucas instalações físicas localizadas em um único Estado nacional (ou território fiscal), e que é atendida por empresas fornecedoras e compradoras com as mesmas características. Neste sistema, é simples a avaliação da capacidade contributiva da empresa nuclear, assim como a fiscalização através do cruzamento de informações com as empresas periféricas fornecedoras ou compradoras.
A situação torna-se radicalmente diferente com a organização e as novas práticas operacionais das empresas organizadas em redes descentralizadas, espalhadas por vários países e produtivas de bens tangíveis e, cada vez mais, de serviços, que por sua natureza são intangíveis e de grande mobilidade e portabilidade. A complexidade operacional dessas empresas potencializa a variedade de variáveis internas e considerações comerciais, servitórias, estratégias tecnológicas e de marketing, e a sofisticação dos conceitos e operações não previstas, e muito menos contempladas, nos modelos tributários.
Fica claro, portanto, a dificuldade encontrada pelos modelos tributários ortodoxos em lidar com essa nova realidade. Estruturas conceituais e operacionais são constantemente desafiadas e confrontadas com novas opções e decisões econômicas oriundas de outros locais e de instituições sobre as quais o Estado tem escasso poder de controle.
Sugestões à Guisa de Conclusão
A complexidade dos temas apontados acima, bem como a diversidade de opiniões acerca dos mesmos, têm criado um clima pouco propício a debates participativos, resultando em uma tendência de radicalização e de interdição do diálogo.
No caso da reforma tributária, surgiram acusações contra a administração acerca de uma suposta falta de apetite das autoridades públicas pelas reformas. Na realidade, busca-se no governo um bode expiatório para a dificuldade na construção de uma solução minimamente adequada para o sistema tributário.
Na questão da ALCA, por exemplo, a radicalização e a intransigência presentes no debate foram responsáveis por inviabilizar, na prática, qualquer tipo de consenso e, com isso, a possibilidade de uma solução coordenada para a integração econômica dos países da América Latina.
Da mesma forma, não pode o Brasil se isentar de refletir a respeito do papel da tributação na construção e na consolidação do Estado democrático e da justiça social. A implementação de uma reforma tributária capaz de sintetizar as aspirações dos diversos segmentos da sociedade é uma tarefa que requer uma abordagem mais reflexiva e ampla, além de uma disposição para o diálogo aberto e construtivo.
O caminho para a construção de um sistema tributário mais justo e eficiente passa pela superação das barreiras ideológicas e pela busca de soluções inovadoras que atendam às novas realidades econômicas e sociais. É necessário, portanto, que haja uma mudança de paradigma na abordagem das questões tributárias, alinhando o sistema tributário às exigências do século XXI e promovendo uma integração mais harmoniosa entre as diversas demandas e a capacidade de mudar.