I - Introdução
Uma análise objetiva do desempenho da economia brasileira nas últimas décadas - principalmente no pós-guerra - mostra que o país passou a ocupar uma posição de destaque no cenário mundial. O Brasil cresceu aceleradamente, a uma taxa histórica média entre 6% e 7% ao ano, tornando-se hoje a sétima ou oitava maior economia do mundo, com um produto interno bruto que se aproxima de trezentos bilhões de dólares anuais.
Conjuntamente com suas enormes dimensões geográficas, surgiu uma nação que, unicamente por seu peso e massa, já se coloca entre as mais importantes. Tornou-se um país altamente industrializado e, com exceção de alguns setores de ponta, produz praticamente tudo o que consome e quase tudo o que necessita em termos de bens de capital. Ao mesmo tempo, atingiu ainda recentemente o quarto maior superávit comercial do mundo.
Não obstante essas realizações, a renda per capita é de menos de dois mil dólares anuais, e o país ainda carrega muitos dos estigmas do subdesenvolvimento. Persistem distorções gritantes a ponto de serem ameaças à própria manutenção das mudanças estruturais já conquistadas. Trata-se, assim, de uma sociedade ainda marcada pelo dualismo econômico, geográfico, social e cultural.
Como superar essas disparidades? Como urbanizar o campo, humanizar as cidades, equilibrar a distribuição de renda e, ainda assim, manter o crescimento econômico e ampliar o potencial de realização das aspirações do povo brasileiro? Até que ponto a continuidade do atual modelo de crescimento terá condições de superar estas contradições internas da economia brasileira?
II - O Esgotamento do Modelo de Crescimento
Desde a Segunda Guerra Mundial, o Brasil experimentou modos diferenciados de expansão. Nas décadas de 1950 e 1960, o principal impulso veio dos investimentos para substituir importações nos setores de bens de consumo. Foi basicamente um esforço do setor privado - nacional e estrangeiro. Durante a década de 1970, seguiu-se por outro caminho - o do endividamento externo e o da crescente participação do Estado nas atividades produtivas. Seja por meio da produção de insumos básicos e matérias-primas essenciais à continuidade da industrialização, seja por meio de maciços investimentos na geração de infraestrutura básica, a atuação do Estado foi essencial para promover um dos períodos de maior dinamismo e crescimento na história econômica brasileira.
A década de 1980 mostra, contudo, o esgotamento de mais esse modelo de crescimento. Nota-se o aparecimento de uma inusitada falta de confiança nas perspectivas do país. A sensível queda nas taxas médias de crescimento, as dificuldades externas surgidas nos últimos cinco anos, a grande deterioração nos salários reais - principalmente na base da pirâmide - e, sobretudo, a profunda decepção após o fracasso dos planos de estabilização são as principais responsáveis por esta rápida mudança de atitude.
Pela primeira vez na história recente do Brasil, nota-se que o setor privado está desmotivado para investir, embora disponha de recursos financeiros; e o setor público, que no passado teve importante papel de impulsor no processo de crescimento, acha-se com sua capacidade de poupança totalmente exaurida, e sem meios de obter financiamentos internos ou externos.
Claramente, chega-se ao fim de um ciclo de crescimento. A tendência de constante expansão, a que todos os brasileiros acreditavam estar predestinados, cede lugar a incertezas que apontam para a possibilidade de o país seguir a trilha daqueles que não conseguiram sustentar o "take-off" de suas economias. Há que se redefinir um novo modelo. Há que se identificar novas frentes de investimentos. Há que se atribuir novas funções aos agentes econômicos.
III - Limitações do Sistema Econômico Brasileiro
Antes de tudo, é preciso identificar algumas facetas da atual estrutura econômica que dificultam a transição para um novo modelo de crescimento auto-sustentado. Da superação desses obstáculos irá depender o sucesso desta transição.
A asfixiante presença do Estado
A evolução do setor público reflete uma generalizada concepção centralista e autoritária das formas de intervenção do Estado, calcada, em geral, na visão de que o governo deve reger o comportamento dos agentes econômicos. Ao mesmo tempo, negligenciam-se os propósitos sociais da ação estatal.
É verdade que, em determinadas fases históricas, a presença do setor público na produção era plenamente justificável. Nota-se, contudo, que as condições que criaram a necessidade de o governo intervir já não existem. No momento, é preciso evitar que a presença estatal se transforme num obstáculo ao desenvolvimento acelerado do país.
A interferência excessiva do Estado na economia o tornou um empecilho à realização de um projeto nacional de desenvolvimento, um concorrente desleal com a iniciativa privada, além de um enorme foco gerador de monopólios e privilégios, que explora em nome da burocracia que o controla - e também em benefício de grupos de influência na estrutura do poder. Como empresário, não respeita a racionalidade econômica, tornando suas ações um frustrante exercício de conciliação política. Ao mesmo tempo, dada a escassez de recursos, negligencia seu papel de provedor de serviços sociais, áreas nas quais sua presença é essencial.
A hipertrofia da ação estatal no Brasil gerou um setor que produz, permanentemente, elevados déficits, da ordem de 3% a 6% do PIB. Diz-se que é pouco em comparação com vários países altamente desenvolvidos. Falta considerar, contudo, que essas economias possuem mecanismos de financiamento de seus déficits de que não dispomos no Brasil.
Aqui, a dívida pública é rolada nos mercados de curtíssimo prazo, no mercado de dinheiro, tornando seu financiamento um processo instável, com profundas repercussões em toda a estrutura das taxas de juros. Rolar 5% do PIB não é pouco, nem fácil, ainda mais quando as altas taxas de inflação endêmica encurtaram o prazo dos papéis - e da dívida - para, em média, menos de noventa dias. Esforços de contenção dos juros, além evidentemente da monitoração da demanda como instrumento anti-inflacionário, exigirão um setor público que, a longo prazo, funcione com orçamentos equilibrados.
Ademais, cabe lembrar que, computando-se as correções monetária e cambial da dívida pública acumulada no passado (cerca de 50% do PIB), o déficit público nominal, que é o que será financiado pelo setor privado, certamente ultrapassa 20% do PIB. É este valor que deve ser comparado aos déficits públicos de outros países e, se isso for feito, a conclusão inevitável será a de que o Brasil tem um dos maiores desequilíbrios orçamentários do mundo.
O Estado perdeu condições de poupar e, consequentemente, pressiona o setor privado em busca de financiamentos. A alternativa de empréstimos externos também tornou-se inviável, principalmente agora que o Brasil acha-se distanciado da comunidade financeira internacional.
Afora suas dificuldades de financiamento, a presença do Estado na economia perde paulatinamente sua característica de ação pública. Mais de dois terços de suas despesas são efetuadas no setor produtivo, longe das atividades típicas de governo. Estas são negligenciadas, com sensíveis prejuízos para a população de baixa renda, a que mais depende das atividades "sociais" do Estado.
Tendências de Concentração do Capital
A abundância relativa de mão-de-obra tende a elevar a parcela da renda nacional apropriada pelo capital. Além dessa valorização causada por sua escassez relativa, existem ainda outras condicionantes que exacerbam essa tendência. Tais condicionantes surgem não apenas no poder de fixação de preços desfrutado por empresas atuantes em mercados altamente concentrados - oligopólios e mesmo monopólios -, mas também na atuação do próprio setor público.
A relativa centralização de capital – seja nas mãos do governo, seja nas de alguns poderosos grupos privados – é um fenômeno que poderia até ser considerado normal em países em desenvolvimento, onde essa concentração se torna necessária para o aproveitamento das economias de escala. Contudo, torna-se inaceitável quando surge a partir de práticas econômicas predatórias, complacentemente observadas tanto pelo governo quanto pelos consumidores e outros produtores.
Falta ao Brasil uma legislação antitruste efetiva, capaz de garantir um mínimo de competitividade nos setores mais concentrados do sistema produtivo. Não apenas ela inexiste de fato, como também são incentivadas formas de ação conjunta entre empresas que deveriam, na verdade, estar competindo entre si pelo mercado. As tradições corporativistas brasileiras induzem os setores produtivos a desenvolver mecanismos de convivência excessivamente pacífica, que, em última análise, resultam em comportamentos cartelizados, aprofundando uma já natural tendência de concentração de capital.
A sociedade, por outro lado, incapaz de discernir a origem da alta remuneração do capital no Brasil, volta-se contra a ideia do lucro, confundindo a legítima remuneração do capital e do espírito empresarial com práticas injustificáveis em um regime concorrencial. Controles de preços, entraves burocrático-administrativos e excessiva intervenção no funcionamento do mercado são reflexos dessa generalizada desconfiança na atividade empresarial.
É preciso distinguir as práticas lesivas aos interesses dos consumidores do legítimo lucro empresarial que, se elevado, pode ser apenas um sinal de orientação para o fluxo de investimentos. O risco empresarial precisa ter o lucro como contrapartida, não aquele gerado pela exploração do consumidor ou pela eliminação fraudulenta de competidores, mas sim o que resulta da busca por eficiência, progresso tecnológico, inovação e concorrência legítima.
Estreiteza do Mercado de Capitais
Em parte, a concentração de capital reflete a relativa inoperância dos mercados de capitais. Os países desenvolvidos pulverizam a propriedade de suas maiores empresas por meio das bolsas de valores, uma tendência que varre praticamente o mundo todo. No Brasil, entretanto, ainda não se conseguiu desenvolver esses mercados como meio de obtenção de liquidez para os aplicadores, nem como fonte de recursos para a capitalização das empresas. O pouco que existe carece de credibilidade, em parte devido à ineficiência da legislação reguladora dessas operações. Sem confiança nas instituições, dificilmente se obterá a desejável conversão de rentistas em acionistas, de empresas familiares em companhias abertas e de crédito em capital de risco.
Cabe lembrar, ainda, que parte da desconfiança dos aplicadores em relação às bolsas de valores decorre da presença massiva de empresas de capital misto. Essas empresas, operando como monopólios estatais, muitas vezes conseguem obter alta lucratividade, transferindo a seus acionistas privados lucros que, na realidade, deveriam pertencer à coletividade. Por outro lado, também não é incomum que essas empresas sejam forçadas a grandes sacrifícios financeiros, seja por serem obrigadas a transferir recursos ao Tesouro ou a outras empresas do Estado, seja por terem seus preços fixados com base em critérios que não privilegiam a eficiência e a rentabilidade.
Dessa forma, as oscilações nos preços das ações dessas empresas tendem a refletir as incertezas administrativas e gerenciais que caracterizam a gestão pública, transmitindo uma sensação de risco e incerteza excessivos a todos os investidores. Nas atuais circunstâncias, não se conseguirão criar mecanismos que levem à democratização do capital, nem a um verdadeiro capitalismo participativo. O mercado de capitais precisa de liberdade para se desenvolver, mas não pode prescindir de regras de conduta que garantam a lisura das operações. Para coibir abusos, o Estado deve ser rigoroso em seu papel fiscalizador, mas deve se abster de intervir nos legítimos mecanismos de formação de preços.
Subexploração do Mercado Interno
Com uma população de mais de 140 milhões de pessoas, o Brasil possui um grande mercado. No entanto, esse enorme potencial tem sido subaproveitado. Sabe-se que o Plano Cruzado fracassou por diversas razões. Contudo, o ano de 1986 mostrou que um processo de redistribuição de renda a favor dos salários é um potente mecanismo de crescimento do mercado interno. Esse efeito torna-se ainda mais notável quando a redistribuição ocorre dentro do agregado dos rendimentos do trabalho, ou seja, diminuindo a disparidade que caracteriza a pirâmide salarial.
Ainda não há dados definitivos, mas sabe-se que a massa salarial brasileira aumentou aproximadamente 30% durante aquele ano e que os salários reais subiram cerca de 15%. É evidente que nem todos os aumentos nos ganhos do trabalho ocorreram às custas dos rendimentos do capital. As empresas tentaram compensar o aumento dos custos salariais por meio de esforços para elevar os índices de produtividade e aproveitar as economias de escala. Contudo, é inegável que houve uma alteração nos padrões de distribuição de renda, o que resultou no crescimento do mercado consumidor interno, especialmente de produtos de consumo de massa.
O mercado interno potencial está estrangulado pela forte concentração de renda, característica da economia brasileira. Uma ampla reforma tributária, capaz de reverter essa situação de forma permanente, seria um poderoso instrumento de crescimento e desenvolvimento econômico, ao contrário do que imaginam os que acreditam que um programa de redistribuição de renda resultaria em evasão de capitais e desestímulo ao investimento.
Queda da Poupança
Nos últimos anos, a poupança interna foi complementada pelo contínuo afluxo de recursos do exterior. Juntas, as poupanças interna e externa chegaram, em meados da década passada, a cerca de 27% do PIB, possibilitando a manutenção de uma elevada taxa de investimento. No entanto, na década de 1980, houve uma clara deterioração na poupança disponível para investimentos internos. A poupança pública diminuiu drasticamente e, a partir de 1982, tornou-se negativa. A poupança externa, que em 1982 ainda representava 6,1% do PIB, caiu para praticamente zero a partir de 1984. Apenas a poupança privada interna manteve-se constante nos últimos anos, em torno de 16% do PIB.
Embora a poupança privada tenha mostrado um certo crescimento recente, esse aumento se deu, na realidade, pela necessidade de financiar os déficits públicos. Os números evidenciam as dificuldades que o Brasil enfrenta para viabilizar uma nova fase de investimentos. A crise externa, desencadeada em 1982, forçou o país a gerar enormes superávits comerciais, o que foi alcançado à custa de quedas no consumo e no investimento. Por outro lado, a poupança também caiu, principalmente em decorrência da redução da poupança pública e do virtual desaparecimento da poupança externa.
Como o fluxo de capitais para o Brasil foi interrompido, surgiram dificuldades para o pagamento dos juros da crescente dívida externa. A partir de 1982, a renda líquida enviada ao exterior situou-se próxima de 5,5% do PIB, exigindo superávits comerciais maiores. Com o desaparecimento desses superávits durante o Plano Cruzado e a consequente deterioração das reservas brasileiras, a moratória de fevereiro tornou-se inevitável.
CONTAS NACIONAIS (% PIB)
Desta forma, reconhecendo-se a necessidade de reiniciar o pagamento dos juros aos credores externos, bem como a urgência de retomar com vigor a formação de capital, não há como prescindir do ingresso de novos recursos no país. Somente assim será possível honrar os compromissos externos assumidos e, ao mesmo tempo, amenizar as pressões para a obtenção de grandes superávits no comércio internacional.
Urge, portanto, chegar a um bom termo nas negociações externas em andamento e criar condições propícias para um novo afluxo de capitais de risco e de empréstimos. Isso somente será realizado dentro de uma nova inserção do Brasil na comunidade financeira internacional. O isolacionismo e o nacionalismo cego, em conjunto com a perda da capacidade de poupança do setor público, são o caminho certo para a estagnação crônica, a qual já começa a se vislumbrar no Brasil.
Inflação e Conflito Distributivo
A convivência com a inflação no Brasil deixou clara a diferença entre salários nominais e salários reais. Hoje, não se confunde mais reposição de perdas com aumentos reais.
A explicitação dessa diferença reflete a existência de um conflito distributivo, que agora assume novas proporções. Antes, ele era o resultado de esforços para evitar uma perversa transferência de renda àqueles que se beneficiavam da inflação; hoje, ele se transforma em reivindicações sobre a renda nacional. Em outras palavras, a má distribuição de renda exacerba o conflito distributivo, transformando-se num foco estrutural de pressões inflacionárias.
O impacto das pressões salariais ocorre, a curto prazo, na redução das margens de lucro, ou então na tentativa de repasse aos preços. A primeira saída é o caminho para um capitalismo maduro, a partir de aumentos compensatórios de produtividade; a segunda é a perpetuação do subdesenvolvimento e a continuidade da espiral salários-preços.
No Brasil, a resistência dos empresários a perdas de rentabilidade é reforçada pela concentração industrial, que lhes permite repassar custos aos preços sem grandes dificuldades. O conflito distributivo surge, assim, como um importante foco de pressões inflacionárias.
Um programa de redistribuição de renda, em todos os níveis, através de uma ampla reforma tributária, torna-se, portanto, uma urgente necessidade. Além de ser eticamente desejável e de fortalecer o mercado consumidor interno, ainda atuaria como uma importante medida de combate à crônica inflação brasileira.
Finalmente, cabe observar que, no Brasil, a continuidade do crescimento econômico é um poderoso antídoto contra a inflação. É uma maneira de tornar o conflito distributivo menos explosivo, já que, sem controle, ele se transforma rapidamente em altas taxas inflacionárias. Crescimento e distribuição precisam vir juntos, pois, isoladamente, não neutralizam o ímpeto inflacionário característico da economia brasileira.
IV- UMA PROPOSTA DE POLÍTICA ECONÔMICA
Qualquer plano de estabilização da economia – e, ainda mais importante, a recuperação da capacidade de investir – exigirá mudanças. Não bastará a montagem de novos pacotes econômicos, pois, sem alterações mais profundas nas instituições e nas diretrizes de condução da economia brasileira, tais tentativas apenas reforçarão a descrença da população.
De certa forma, já é perceptível que toda a sociedade brasileira deseja uma nova orientação econômica, uma nova definição de papéis e de responsabilidades. Contudo, a inércia da classe política dominante, e consequentemente do governo, continua a impor uma visão ultrapassada do processo econômico, obstaculizando as necessárias reformas.
Caso essas reformas não ocorram, a Nação continuará prisioneira de um conjunto de circunstâncias de ordem política, econômica e cultural, absolutamente incompatível com o ingresso do país numa nova fase de crescimento e desenvolvimento. São exatamente essas alterações institucionais que os brasileiros não têm sido capazes de realizar.
Há necessidade de uma política de ajustamento conjuntural capaz de: a) reverter o estrangulamento externo; b) conter as pressões inflacionárias; e c) manter taxas equilibradas de crescimento. Existem, contudo, focos de distorções e desequilíbrios que estão se somando para configurar uma das mais desfavoráveis situações conjunturais que o país já atravessou.
Desajustamentos macroeconômicos podem ocorrer tanto por causas internas (expansão excessiva da demanda interna, desaceleração do crescimento da capacidade produtiva, choques exógenos de oferta) quanto por fatores externos (deterioração nos termos de intercâmbio, elevação dos juros reais externos, corte abrupto na disponibilidade de créditos internacionais). De fato, todos esses eventos ocorreram quase simultaneamente na economia brasileira.
Essa conjugação de fatores, aliada a políticas econômicas internas inadequadas, resultou em pesadas distorções nos preços relativos, endividamento crescente, desaceleração do crescimento, perda dos superávits comerciais – agora quase totalmente recuperados –, fortes pressões inflacionárias, descontrole do déficit público e elevação dos juros nominais e reais.
O objetivo de um programa de ajustamento conjuntural é garantir, no curto prazo, o reequilíbrio entre oferta e demanda, evitando a continuidade das distorções mencionadas. Assim, torna-se necessário um conjunto de medidas econômicas que atuem nas seguintes variáveis-chave da economia:
nos níveis de absorção do produto, administrando-se a demanda interna;
na decomposição da produção entre bens comerciáveis externamente (traded goods) e bens não-comerciáveis (non-traded goods), utilizando-se de uma política cambial adequada;
na geração e absorção de poupança externa, compatibilizando-se as necessidades de financiamentos externos com o perfil e a capacidade de transferir recursos ao exterior.
Vale notar que a concretização dessas metas não atuaria diretamente nos condicionantes da taxa de crescimento a longo prazo. Isso exigiria amplas reformas, que só poderiam ser efetivamente contempladas após a aplicação de um programa de ajustamento conjuntural.
Reformas estruturais precisariam fazer parte de um programa de crescimento de longo prazo, objetivando a expansão autossustentável, a obtenção de maior justiça social e a redução da inflação. Para tanto, exige-se um conjunto de medidas de política econômica que atuem:
na contenção das pressões inflacionárias, evitando-se a introdução de fatores que rompam o equilíbrio macroeconômico obtido na fase de ajustamento;
na expansão da capacidade produtiva, presente e potencial, adotando-se um leque de políticas estruturais que atuem pelo lado da oferta;
nas reformas estruturais, como a reforma tributária, bancária, agrária, habitacional, etc.
Esboço de um Programa de Ajustamento Conjuntural
O Programa de Ajustamento não pode durar mais do que alguns meses, até porque a sociedade brasileira passou a formar rapidamente expectativas acerca de novos congelamentos de preços e salários. O essencial é criar rapidamente condições para que o ajuste comece a ocorrer, tranquilizando os agentes econômicos e oferecendo-lhes regras e perspectivas claras sobre a política econômica aplicada.
Parece haver consenso quanto ao forte conteúdo político da atual crise brasileira. Certamente, não bastarão programas econômicos de curto prazo – por mais consistentes que possam ser – sem uma clara disposição do governo em implementá-los. Neste sentido, dificilmente um programa de ajustamento terá efeitos positivos se não vier acompanhado de profundas modificações nas diretrizes gerais de condução da economia, a exemplo das sugeridas adiante, como parte de um programa de crescimento de longo prazo.
1) Administração da Demanda
a) Política Monetária: No Brasil, o uso de variáveis monetárias para controle da demanda é de difícil aplicação. Geralmente resulta em fortes oscilações no nível de atividade, sem maiores impactos de curto prazo na inflação. Ademais, não se conhece com exatidão o nível da demanda por moeda e, sem isso, não há como estabelecer metas explícitas de oferta monetária.
O mais sensato seria a fixação de uma meta nas taxas de juros, adotando-se, a partir daí, uma política monetária essencialmente acomodadora, que não significa, necessariamente, passiva.
A fixação dos juros reais em níveis positivos, mas adequadamente baixos, precisa ser acompanhada – para evitar grandes doses de injeção de moeda – de uma política fiscal rigorosa, que não pressione em demasia as autoridades monetárias. Disciplina fiscal seria essencial nesta fase do programa de ajustamento. A redução dos juros poderia também ser auxiliada pelo corte da "cunha fiscal".
Cabe observar, ainda, que a meta de crescimento econômico não pode ser alta, em face da redução da taxa de formação de capital nos últimos cinco ou seis anos.
Observe-se, finalmente, que uma das maiores limitações a uma política monetária excessivamente rígida está no alto grau de endividamento presente na economia brasileira. Tanto no setor privado quanto nas empresas estatais – e ainda entre estas e o setor privado –, os altos coeficientes de endividamento fragilizam as empresas e o governo, tornando-os extremamente suscetíveis a qualquer elevação nas taxas de juros.
Essa característica da economia brasileira torna a política monetária um instrumento muito delicado e evidencia a necessidade de um amplo projeto de consolidação do pesado endividamento ocorrido no Brasil.
b) Política Fiscal: A curto prazo, a única forma de praticar uma política fiscal apertada, como é essencial para o controle das pressões inflacionárias, é pela contenção dos gastos, já que, sabidamente, a recuperação da carga tributária e da capacidade de poupança do governo exigem políticas estruturais de longo prazo. Neste ponto, torna-se imprescindível uma clara manifestação de vontade política do governo. O corte efetivo de dispêndios precisa ocorrer, mesmo que, a curto prazo, gerem distorções indesejáveis, mas que poderão ser corrigidas posteriormente.
Finalmente, há urgente necessidade da total recomposição das tarifas públicas defasadas, idealmente de uma só vez, para que fique claro que se trata de uma efetiva redistribuição de renda a favor delas.
c) Política de Preços: Com o objetivo de restabelecer o mais rapidamente possível o reequilíbrio dos preços relativos, incluindo salários e preços públicos, e assim estabilizar a inflação, urge liberar o mercado.
Salários deverão ser livremente negociados, mantendo-se apenas a obrigatoriedade de correções semestrais; o CIP deverá atuar fortemente em alguns poucos, mas importantes preços industriais, em setores oligopolizados; tarifas públicas deverão ser rapidamente recompostas; aluguéis devem ser rapidamente flexibilizados.
Na realidade, já existem expectativas de que um novo congelamento de preços e salários ocorrerá, ainda que por um período predeterminado. Assim, para evitar que os agentes econômicos tentem se antecipar na corrida de preços, o melhor é liberar a economia, neutralizando tal tendência de elevação preventiva de preços.
Cabe salientar que esse processo de liberação poderá contar com um fator favorável no sentido de dificultar nova escalada inflacionária: o desaquecimento da economia.
2) Política CambialO objetivo da política cambial é reajustar a composição do produto entre bens comerciáveis e não-comerciáveis, de modo a recompor e manter um dado superávit comercial. A política cambial (desvalorização) resulta não apenas numa redução da absorção interna, mas também numa alteração estrutural do perfil de produção. Afeta, portanto, a demanda e a oferta agregadas.Para que a política cambial surta os efeitos desejados, é necessário:
Identificar o grau de sobrevalorização da moeda;
Atingir a desvalorização real desejada; e
Definir o regime cambial.
A utilização de medidas baseadas na paridade do poder aquisitivo das moedas externas não leva em conta fatores como discrepâncias nos índices de produtividade entre o Brasil e seus concorrentes no mercado internacional, inovações tecnológicas, introdução de novos produtos, etc. Como o Brasil leva desvantagem em quase todos esses critérios, presume-se que os produtos de exportação estejam perdendo competitividade, mesmo que a paridade entre moedas seja mantida.Assim, as desvalorizações reais da moeda devem objetivar um determinado superávit e devem ocorrer até que a meta seja atingida, quando então a sua indexação a um índice de preços adequado deve ser assegurada.
3) Financiamento ExternoDesde meados do ano passado — quando o Brasil começou a sofrer pesadas perdas de reservas —, o setor externo passou a ser um severo ponto de estrangulamento. Como visto acima, a poupança externa sempre representou uma importante fonte de financiamento para a formação de capital. Cabe, portanto, recuperar a capacidade de pagamento em divisas do país, para com isso reiniciar um novo processo de entrada de recursos externos na economia brasileira.Sem qualquer sombra de dúvida, a renegociação da dívida brasileira não pode mais ser feita nos moldes tradicionais. Redução de "spreads", capitalização dos juros e aporte de novos recursos são ingredientes essenciais para que se chegue a um bom termo com os credores. Na verdade, é preciso insistir na tese de que a superação do atual impasse não poderá ser conseguida com a transferência dos custos do ajustamento apenas para os países devedores, pois, de fato, uma enorme parcela de responsabilidade cabe aos bancos credores, bem como à política econômica desenvolvida pelos países industrializados.
Esboço de um Programa de Crescimento
A longo prazo, para estabilizar a inflação em patamares aceitáveis, criar mecanismos de financiamento interno e externo visando ao crescimento a médio e longo prazos e retomar os investimentos públicos e privados, nacionais e estrangeiros, é essencial que sejam efetuadas algumas mudanças estruturais, capazes de possibilitar uma nova percepção acerca da realidade brasileira.O que diferencia o elenco de medidas aqui sugerido de uma política de administração da demanda é que se pretende, acima de tudo, aumentar a eficiência e promover o crescimento econômico pelo aperfeiçoamento dos mecanismos de alocação de recursos e pelo incentivo à poupança e ao investimento.
Com relação à eficiência, o importante é identificar e corrigir situações onde existam discrepâncias entre preços e custos marginais. Nesse sentido, deve-se eliminar subsídios (a não ser quando explicitamente desejados e socialmente necessários, como é o caso na política habitacional e agrícola), evitar a compressão dos preços e tarifas públicas, e, sobretudo, cercear práticas abusivas de fixação de preços nos setores altamente concentrados. Em relação ao crescimento econômico, é importante aumentar os investimentos, garantir um maior fluxo de poupança interna e externa, recuperar a capacidade de poupança do setor público, inclusive das estatais, e iniciar amplos programas de investimentos sociais.
Não são propriamente os objetivos que diferenciam esta proposta; o que se destaca é a tentativa de sugerir um novo arcabouço institucional, dentro do qual serão viabilizadas as metas específicas de política econômica. Trata-se, antes de mais nada, de definir um novo modelo de crescimento, dentro de um outro padrão de relacionamento entre indivíduos, entre indivíduos e o Estado, e entre o Estado e o resto do mundo. Trata-se de reconhecer a necessidade de uma ruptura com os padrões de crescimento anteriores, gerando, assim, comportamentos e expectativas que levem a novos estilos de gestão empresarial e pública.
O Novo Papel do Estado em um Modelo ConcorrencialApesar de todas as demonstrações em contrário, o Brasil ainda não se convenceu de que é prisioneiro de uma máquina estatal obsoleta, distorcida e profundamente impeditiva de todo e qualquer esforço de superação dos atuais impasses econômicos. Ainda perdura a concepção arcaica do Estado como agente modernizador, como justificativa para a teoria do "big push", a despeito de todas as evidências que mostram exatamente o contrário.Não é apenas pelo lado da ineficiência, do clientelismo, da corrupção e dos déficits financeiros que a participação do Estado na economia precisa ser reavaliada; é, além disso, pelos enormes canais de investimentos que seriam abertos aos capitais privados, gerando-se assim um novo surto de formação de capital, que o setor público se mostra cada vez mais incapaz de promover; e é ainda pela urgência em fazer com que o Estado assuma suas responsabilidades em áreas onde sua atuação não pode ser substituída — como educação, saúde, saneamento e habitação —, onde a negligência atinge limiares cujas consequências beiram a irresponsabilidade e a desumanidade.
No momento, o maior desafio para as autoridades econômicas é o controle do déficit público. Esta é a principal meta para possibilitar a estabilização da economia brasileira.
Não se pretende negar a validade do uso do déficit como instrumento de política econômica. Sem dúvida, ele pode ser usado para incrementar o nível da demanda agregada em situações de desemprego de fatores de produção. A questão é que os agentes econômicos não reconhecem no déficit um instrumento manejável de monitoração da economia, mas sim um desequilíbrio estrutural de difícil controle e que, mesmo em situações de pleno emprego, continuará a pressionar os níveis de demanda.
Daí a aparente falta de lógica, que frequentemente deixa alguns economistas perplexos quando confrontados com a afirmação de que o déficit público estaria pressionando a inflação; na realidade, trata-se apenas da capacidade de antecipação dos agentes econômicos, que não se deixam iludir pela alegação de que o déficit existe como uma providência anticíclica, isentando-o, portanto, de ser apontado como uma das causas do aumento de preços.
Qualquer tentativa de contenção dos gastos públicos será inócua sem uma reavaliação do papel e das funções do setor estatal dentro da economia. É uma ilusão imaginar que seja possível uma compressão de gastos muito maior do que a que já vem sendo feita há vários anos. Novos cortes, seja de custeio ou de investimento, terão apenas um impacto de curto prazo ao reduzir o nível da demanda agregada. Porém, com maiores restrições orçamentárias, o setor estará se tornando ainda mais frágil, agravando um problema que ressurgirá com redobrado vigor no futuro.
Preocupa observar que se pretende lidar com o problema do setor público mediante cortes lineares de gastos de custeio (e também de investimentos). Não faz sentido cortar o número de funcionários ou pagar salários mais baixos sem a devida consideração das necessidades específicas de cada atividade. Tal medida apenas se justifica no curtíssimo prazo, pois de fato apenas tornará o setor público ainda mais desaparelhado para concorrer com o privado em matéria de eficiência.
O desejável é que os órgãos e empresas do governo paguem bem e não sofram limitações para a contratação de pessoal necessário para a produção em níveis de eficiência iguais, ou até mais altos, que os do setor privado.
Na medida em que a política do governo concentra esforços apenas nas restrições orçamentárias impostas à administração direta e às estatais, não se está caminhando efetivamente no sentido de solucionar a questão do déficit público no país. O seu controle não significa, e nem deve ser o mesmo que, asfixiar a atividade estatal. Deve-se evitar o enfraquecimento do setor público; o essencial é que ele seja forte e atuante, porém restrito às áreas onde sua presença seja considerada necessária.
A retração da presença estatal nas atividades produtivas é a única forma viável de lidar com o problema do déficit público. Ao mesmo tempo em que se estaria transferindo atividades para o modelo de gestão privada — nitidamente mais eficiente do ponto de vista econômico — se estaria também extirpando a fonte mais importante dos desequilíbrios orçamentários do governo.
Isto não significa dizer que se deseje um Estado fraco ou necessariamente pequeno. A presença do Estado na economia brasileira tem uma história de sucessos. Foi através da atuação pública que se criaram as condições para a industrialização do país. Durante a década de setenta, foi o setor estatal o grande indutor do desenvolvimento, seja pelos investimentos em infraestrutura, seja pela substituição de importações de insumos básicos.
Hoje, porém, o papel do Estado precisa ser reorientado para um outro tipo de atuação, mais convencional. O setor produtivo estatal está hipertrofiado em relação às atividades típicas de governo. Nota-se claramente que ele alcança, no momento, uma dimensão de concorrente do setor privado; melhor dizendo, uma intervenção pública gerou o fortalecimento dos capitais privados, de sorte que, hoje, a maioria das áreas em que o Estado atua empresarialmente poderia ser adequadamente explorada pela iniciativa particular. Nada mais natural, portanto, que o governo se retraísse destas atividades, pois já teria cumprido seu papel de catalisar o processo de desenvolvimento industrial.
Esta mudança é ainda mais urgente ao se considerar que o Estado já não possui os meios de financiar sua expansão no setor produtivo. Por outro lado, o setor privado dispõe de excedentes de capital. Um amplo processo de privatização das atividades hoje desenvolvidas pelo Estado abriria um novo canal de investimento para o empresariado, ao mesmo tempo em que aumentaria o espaço para o governo atuar nas áreas sociais, que hoje representam o maior ponto de estrangulamento da economia brasileira.
A necessidade de privatizar a economia nada tem a ver com o tamanho do Estado. A privatização se justifica por uma imprescindível busca de eficiência, por esforços de combate à inflação e, no caso brasileiro, pela criação de um Estado mais atuante no atendimento aos serviços básicos de que carece a população.
Neste sentido, é desanimador analisar os atuais planos de privatização. A ação desestatizante se restringe a empresas periféricas e sem qualquer importância no conjunto do setor estatal. São firmas falidas que passaram aos bancos oficiais, centrais de abastecimento, hospitais, hotéis e algumas siderúrgicas sem grande significação. O governo pretende combater um enorme déficit potencial atuando na margem do setor produtivo estatal.
Falta a coragem e a determinação dos outros países que privatizaram grandes monopólios estatais (como na Inglaterra), o que equivaleria, no Brasil, a um programa que abrangesse algumas das oito holdings do governo, onde efetivamente reside o problema. Sem isso, o déficit público persistirá elevado, e a inflação não será debelada. Tudo o mais é apenas uma espessa cortina de fumaça.
Da mesma forma, é preciso combater de todas as maneiras as práticas produtivas e comerciais abusivas, o domínio de mercados por grupos de interesses e os privilégios privados concedidos pelo Poder Público. O Brasil necessita de uma rigorosa legislação de proteção ao consumidor, de fomento à concorrência e de severa punição à corrupção.
Somente assim, a ação estatal será um complemento à atuação privada, dentro de um verdadeiro modelo concorrencial, calcado na busca da eficiência, no progresso tecnológico e orientado pelo incentivo do lucro legitimado pelo crescimento econômico e pela justiça social.
A Inserção no Capitalismo Internacional
Pragmaticamente, o reinício da entrada líquida de recursos externos é essencial para a economia brasileira. Pretender uma nação moderna e dinâmica sem pesados investimentos do exterior é o caminho certo para a frustração. Não há o que temer quanto ao propalado e falso perigo que o capital estrangeiro poderia representar. É um fantasma tão fora de moda quanto inofensivo. Há no Brasil um governo forte e uma economia suficientemente grande para impedir que capitais externos ameacem os interesses nacionais. As grandes empresas estrangeiras tornaram-se praticamente apátridas, sem interesses políticos definidos e sem linhas de subordinação aos seus países-sede. Desejam apenas boas perspectivas de lucro e um ambiente institucional estável. Dentro deste quadro e no atual estágio de desenvolvimento do Brasil, empresas de capital estrangeiro podem se tornar importantes geradoras de empregos, exportadoras privilegiadas e eficientes transmissoras de conhecimento tecnológico.
Nada justifica um nacionalismo tolo, discriminatório em relação aos investidores estrangeiros. Na medida em que produzem e empregam dentro do país, devem usufruir dos mesmos deveres e privilégios estendidos aos nacionais. Basta uma política industrial e de remessa de lucros estável—que o Brasil tem plena capacidade de definir e impor—para que a entrada de capitais do exterior se transforme rapidamente em um complemento fundamental ao esforço doméstico de desenvolvimento.
A dívida acumulada em divisas não foi em vão. Diferentemente do ocorrido em outros países, ela foi, com maior ou menor eficiência, investida na ampliação da infraestrutura econômica e no fortalecimento do parque industrial brasileiro. No entanto, por uma série de razões—sendo a crise de liquidez internacional a mais grave delas—, a dívida acumulada na década de 70 deixou como herança um renitente estrangulamento externo. As altas de juros reais, as flutuações nos preços das principais commodities exportadas e a necessidade de constante crescimento interno são fatores de permanente perturbação no equilíbrio das contas externas brasileiras. Nessas condições, o país estará sempre caminhando no fio da navalha. Se, por um lado, precisa crescer a taxas altas para diluir o peso de seu endividamento, por outro, as remessas de juros continuarão sendo, ainda por longo período, um obstáculo e um grave foco de evasão de fundos disponíveis para investimentos.
Mas, se já começa a haver um melhor entendimento da questão por parte de políticos, banqueiros e autoridades dos países credores, torna-se essencial, em contrapartida, que também dentro das nações devedoras surja um clima de cooperação e de relativa transigência. Neste sentido, uma regulamentação que favoreça a conversão da dívida em capital de risco assume papel de destaque. Trata-se de uma providência de curto prazo, capaz de auxiliar, ainda que de forma relativamente modesta, no reequilíbrio do balanço de pagamentos do País; porém, ainda mais importante, pode representar uma nova postura frente à comunidade internacional, auxiliando, assim, nos esforços de captação de recursos externos para financiar o crescimento brasileiro.
As recentes perturbações ocorridas nos maiores centros financeiros internacionais não podem ser minimizadas. Refletem a urgente necessidade de ajustes na economia norte-americana e, consequentemente, irão repercutir negativamente em todo o mundo. Sem embargo, é preciso não perder a perspectiva histórica e falhar em verificar que se trata de um movimento cíclico típico das economias capitalistas. Destarte, não se deve permitir que este contratempo conjuntural impeça a economia brasileira de efetuar sua maior integração à comunidade econômica internacional.
O importante é que o Brasil recupere sua capacidade de pagamento em divisas, abra seus mercados aos capitais externos e se inclua no rol das nações industrializadas modernas e integradas do ponto de vista internacional.
Uma Nova Distribuição de Renda e o Mercado Interno
O desenvolvimento brasileiro, contudo, tem o mercado interno como seu principal sustentáculo. Certamente, há enorme espaço para a transformação do país numa economia ainda voltada para os mercados internacionais. Mas, seja pelo potencial de consumo, seja pela necessidade de integrar milhões de brasileiros numa estrutura econômica moderna, é no atendimento à demanda doméstica que devem se concentrar os primeiros esforços. Neste sentido, torna-se fundamental a realização de profundas alterações nos padrões de distribuição de renda pessoal, regional e funcional. Maior equanimidade entre indivíduos, entre regiões e entre níveis de poder é condição necessária para qualquer programa de valorização e crescimento do mercado interno.
O Brasil precisa de uma ampla e profunda reforma tributária e fiscal. Há necessidade de uma total reformulação nos critérios de arrecadação e distribuição de tributos—uma reforma distributivista em todos os sentidos. Não se trata de meras transferências de renda—como os subsídios de toda ordem que o Estado já concede em volumes muito acima do recomendável—mas sim de um tardio reconhecimento que, além de questões de justiça, há interesse de toda coletividade na ampliação do mercado interno. Assim, urge iniciar alterações tributárias que reduzam as enormes distorções hoje existentes.
Não se pode mais suportar os contrastes entre ricos e pobres. A via tributária é um poderoso instrumento para evitar que isto continue ocorrendo. Há que lembrar, contudo, que ela deve ocorrer juntamente com o crescimento econômico, a mais eficiente maneira de valorizar o trabalho e reduzir as distorções na distribuição de renda.
Da mesma forma, há necessidade de fortalecer o potencial de arrecadação do Estado para sustentar os enormes gastos de custeio e investimentos em infraestrutura social que precisam ser realizados. É também por meio do aprimoramento e diversificação dos serviços públicos que se redistribui renda, principalmente se o objetivo é favorecer as camadas na base da pirâmide salarial.
Há que lembrar que, nos casos em que o mercado falha ou é ineficiente (como ocorre com habitação de baixa renda, saúde, saneamento, educação, segurança, justiça, transporte de massa e muitos outros), o Estado precisa intervir com disposição e meios, pois geralmente é a população carente que mais depende desses serviços. São serviços que o mercado livre não consegue prover, mas sem os quais, paradoxalmente, o capitalismo moderno não pode sobreviver.
Fala-se que a carga tributária no Brasil é baixa e usa-se este argumento para justificar a inoperância da ação do Estado no provimento de serviços sociais, ou então para justificar os déficits orçamentários. Em realidade, a carga tributária bruta tem permanecido em torno de 25% do PIB nos últimos 20 anos. O que efetivamente vem caindo é a carga líquida, resultante do saldo disponível para gastos públicos após as deduções de subsídios e pagamentos de juros e outras transferências. Caberia, portanto, uma criteriosa avaliação desses gastos, como primeira providência para a recuperação da capacidade de prestação de serviços por parte do Estado.
Levando-se em conta a qualidade dos serviços prestados pelo poder público no Brasil, o baixo nível de renda da população que mais paga impostos (o que recrudece o sacrifício implícito no recolhimento dos tributos) e a regressividade na aplicação dos tributos que recaem, sobretudo, nos assalariados, é fácil concluir que o potencial de arrecadação fiscal no Brasil encontra-se próximo do esgotamento. Cabe questionar, assim, a afirmação de que a carga tributária bruta é baixa.
Ademais, o conceito relevante para avaliar o custo do Estado está na taxa global de extração, que certamente é bem superior à carga tributária bruta, pois incorpora aos impostos arrecadados outros itens como contribuições parafiscais, empréstimos compulsórios, o imposto inflacionário (somente este superior a 3% ao ano), além do "custo de aquiescência", ou seja, os custos que a sociedade deve suportar para manter os controles e registros exigidos pela legislação tributária.
O Brasil não pode mais conviver com a multiplicidade e falta de transparência que caracterizam seu sistema tributário. Urge implementar o conceito do imposto único, seja sobre a renda ou sobre o consumo. A taxação do consumo não é necessariamente regressiva, e nem a incidente sobre a renda é sempre progressiva.
A aplicação de um imposto único sobre bens finais de consumo, com alíquotas diferenciadas para garantir a progressividade do sistema, tem a grande vantagem de não desincentivar a geração de renda e a poupança. Apenas o ato de consumir — este de caráter estritamente individualista e que extrai recursos da sociedade em benefício pessoal — seria taxado, com o intuito de gerar um retorno à sociedade.
Com possíveis exceções, como o imposto sobre importações, sobre remessas financeiras ao exterior e sobre a propriedade, que têm características de extrafiscalidade, o número de tributos deveria ser mantido no mínimo indispensável. Além dos volumosos recursos que poderiam ser canalizados para a produção, e que hoje são dispendidos em atividades de fiscalização e de controle estritamente improdutivas, ainda se obteria uma transparência fiscal que hoje absolutamente não existe.
Reformas EstruturaisComo exposto acima, o Brasil precisa executar algumas importantes reformas estruturais. Profundas mudanças tributárias e fiscais já foram discutidas. Existem outras áreas, contudo, que também carecem de urgente atenção. A reforma agrária, por exemplo, é uma delas. Certamente a estrutura fundiária brasileira precisa ser alterada, principalmente na medida em que regiões de grande concentração da propriedade da terra passaram a ser incorporadas no processo produtivo comercial. Nesse sentido, a desconcentração fundiária pode ser obtida não apenas por meio de desapropriações e assentamento de famílias — um processo oneroso e de difícil execução — mas deve contar, sobretudo, com o uso de instrumentos de indução fiscal.
Da mesma forma, urge disciplinar a propriedade urbana no sentido de colocar em uso glebas que permanecem ociosas, sem qualquer função social. A contribuição de melhoria e o imposto territorial e predial urbano progressivos são importantes instrumentos que precisam ser urgentemente colocados em ação.
Urge também implementar uma reforma bancária capaz de criar condições para o financiamento da formação de capital no Brasil, além, evidentemente, do incentivo ao mercado de capitais. Crédito de médio e longo prazos precisa ser oferecido pelas instituições financeiras brasileiras. A política habitacional necessita também de profundas alterações, com uma clara redefinição de tarefas entre os setores privado e estatal. Trata-se de um caso típico de falha de mercado, no qual a intervenção pública, no segmento de interesse social, precisa ser reformulada para garantir resultados que o setor privado não tem condições nem interesse de obter.
Uma forte lei antitruste deve ser aplicada, e os mecanismos de controle de preços (CIP, SEAP, Sunab) devem ser adequados para exercer um efetivo controle sobre os mercados oligopolísticos. Em todos os demais, nos mercados financeiros ou no de bens e serviços não públicos produzidos pelo governo, deve haver liberdade de ação, mantendo o Estado apenas um papel fiscalizador.
Todas as linhas de atuação mencionadas não constituem novidade; já têm sido apresentadas inúmeras vezes. Contudo, o que é diferente nessas propostas — e em outras não referidas, mas de igual importância dentro do espírito deste manifesto — é o respeito pela liberdade e pela individualidade que se deseja ver largamente difundido dentro da sociedade brasileira. A meta é valorizar a iniciativa privada, a criatividade pessoal e a integração com as demais economias de mercado; busca-se, ainda, viabilizar o Estado como prestador de serviços públicos e como promotor de justiça social.
V - CONCLUSÃO
A superação dos obstáculos descritos acima, bem como a implementação das reformas estruturais mencionadas, são condições essenciais para a definição de um novo padrão de crescimento para a economia brasileira. O que diferencia esta nova forma de desenvolvimento é, sobretudo, a ênfase no setor privado, com o equivalente encolhimento do setor estatal produtivo; é também a prioridade concedida ao crescimento do mercado interno pela via de valorização do trabalho e da resultante redistribuição de renda que será concretizada, não por inócuas legislações salariais ou por práticas de proteção paternalista ao trabalhador, mas sim pelo crescimento efetivo da demanda por mão de obra que um novo surto de investimento deverá propiciar; é a realização de uma eficaz política de desconcentração dos oligopólios e monopólios, que no momento são um empecilho à retomada dos investimentos nacionais e estrangeiros e só fazem por impedir que a competição seja um efetivo freio à exploração do consumidor, além de ser uma preciosa fonte de progresso tecnológico e de busca de eficiência.
Absoluta prioridade deve ser concedida ao incentivo à poupança; os mercados de capitais devem ser fortemente apoiados para se transformarem em meios de captação de recursos eficientes e baratos para as empresas; mecanismos de atração de investimentos externos precisam ser urgentemente criados. Somente assim haverá condições para iniciar a erradicação da pobreza e da desigualdade, origens tanto do radicalismo conservador quanto do reformismo revolucionário. Neste processo de revitalização da economia, é preciso um Estado forte, capaz de desempenhar com eficiência e ousadia as funções que lhe são próprias; o que existe hoje — inadimplente e ocupando espaços produtivos vitais que poderiam ser melhor desenvolvidos pelo setor privado — não tem as condições mínimas necessárias para dar suporte a uma nova fase de crescimento auto-sustentado.
A superação desses obstáculos estruturais deve nortear toda uma política econômica orientada por um novo modelo de crescimento — livre do complexo terceiro-mundista, aberta, moderna e integrada no mundo contemporâneo — e poderá ser a base para um crescimento equilibrado, sem pressões inflacionárias e, sobretudo, mais justo e humano. Não basta uma Nova República; busca-se uma NOVA ECONOMIA, que poderia ser resumida no lema PRIVATIZAÇÃO COM REDISTRIBUIÇÃO.
Professor Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, Diretor da Escola de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas.