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Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

O novo pacote da habitação



Uma análise mais detalhada das recentes medidas adotadas pelo governo para reformular sua política habitacional mostra que não há razão para se acreditar em uma profunda alteração no sistema. Não cabe aqui uma discussão sobre como reformular o SFH de modo a torná-lo um efetivo programa de interesse social (1). O que se pretende neste artigo é apenas demonstrar que as medidas não revertem as distorções da política habitacional brasileira. Ao contrário, as aprofundam.


O SFH foi criado com o objetivo de inaugurar uma política de financiamento para a aquisição de moradias para as camadas de baixa renda. Para sanar a carência de moradias no Brasil, haveria necessidade de se construir, durante a década de 80, cerca de 17 milhões de habitações. Contudo, nos últimos oito anos, o SFH contribuiu pouco para a solução deste problema, tendo financiado não mais do que cerca de dois milhões de moradias. Ainda mais preocupante é que a metade deste número se refere a operações realizadas entre 1980 e 1982, demonstrando claramente a enorme desaceleração das atividades do sistema.


A síndrome dos pacotes


A Nova República foi pródiga em pacotes para o SFH, a começar com a extinção precipitada do órgão central do sistema. Nos últimos doze meses, foram elaborados pelo menos quatro pacotes da casa própria - em abril, junho e julho de 1987 e agora em janeiro de 1988. Como avaliá-los?


No Brasil, apenas 2,2% da população urbana economicamente ativa tinha em 1985 rendimentos superiores a 20 salários mínimos, enquanto 82,7% recebiam até cinco salários mínimos. Por outro lado, 89% do déficit habitacional acham-se concentrados nesta última faixa. O objetivo era impor maior rigor nas operações habitacionais, em clara reação aos excessos cometidos anteriormente sob pressão dos mutuários.


Nesta situação, é de esperar que a política habitacional do governo privilegiasse programas orientados para o atendimento às famílias de mais baixa renda - prioritariamente aquelas de até três salários mínimos de renda mensal. Contudo, uma avaliação do desempenho do Sistema Financeiro da Habitação desde sua criação demonstra que apenas 12% dos recursos disponíveis foram canalizados para o atendimento destas famílias. Com as últimas medidas adotadas pelo governo, estas distorções ameaçam se tornar ainda mais profundas. Vejamos porque.


Os erros do SFH


Atuando sobretudo no atendimento da demanda habitacional da classe média, o SFH operou sem maiores dificuldades financeiras até 1983. A partir daquele ano, os salários passaram a ser reajustados em percentuais significativamente mais baixos do que os reajustes das prestações. A inadimplência subiu assustadoramente, e em 1984 a crise econômica atingiu frontalmente o mercado imobiliário.


As pressões dos mutuários se avolumaram, levando o governo a conceder, em 1985, um reajuste das prestações equivalente à metade da inflação do ano. Esta decisão gerou uma enorme perda no valor real do fluxo de pagamentos de todos os mutuários do sistema, que resultou - juntamente com os efeitos de aceleração inflacionária a partir de 1982 - no famigerado rombo do SFH, estimado entre US$ 10 e US$ 20 bilhões.


A partir daquele ano, o SFH ficou praticamente paralisado. Os agentes financeiros cessaram seus financiamentos, temerosos, com razão, de que o FCVS não tivesse condições de fazer a cobertura dos saldos devedores deixados ao término dos contratos de financiamento. A isto, somou-se, principalmente em 1987, a dramática queda no poder aquisitivo dos salários, de tal forma que os agentes financeiros passaram a canalizar os recursos captados ao Banco Central, em depósitos voluntários que lhes garantiriam um "spread" de 2% ao ano.


Esta é a situação até o fim de 1987 - mercado imobiliário extremamente desaquecido, agentes financeiros com recursos líquidos porém sem disposição de efetuar financiamentos habitacionais.


O coeficiente de equiparação salarial (CES) - que é um multiplicador aplicado sobre a prestação para neutralizar os efeitos da inflação no valor real dos juros e amortizações pagos - foi alterado de 1.15 para 1.18; a taxa máxima de juros foi aumentada de 10% para 12%; o comprometimento da renda familiar do mutuário foi limitado em 25%; o prazo máximo de financiamento foi reduzido para 15 anos; e tornou-se obrigatória a opção pelo sistema de equivalência salarial plena, além do uso da tabela Price como sistema de amortização.


Como não poderia deixar de ser, com prestações mais altas e juros maiores e prazos menores o mercado continuou paralisado, seja por falta de candidatos a financiamentos, seja pela indefinição quanto às responsabilidades pela cobertura dos saldos residuais dos contratos.


Em junho, um novo pacote reverteu algumas das decisões de abril. O comprometimento de renda foi ampliado para 35%, e os juros foram reduzidos, principalmente para as faixas sociais. Financiamentos de até 300 OTNS teriam juros limitados a 2%, e os prazos de financiamentos foram estendidos para até 25 anos. Criou-se também a caderneta de poupança vinculada, que exigia 36 meses de depósitos para a obtenção de um financiamento equivalente a nove vezes o valor poupado.


Mais uma vez tudo ficou na mesma - os agentes financeiros retraídos pelas incertezas do mercado, e os consumidores sem renda disponível para a aquisição de moradias.


Logo em seguida, em julho, ocorreu um esboço de solução para o maior problema do ponto de vista dos agentes financeiros SFH. Financiamentos de mais de 2.500 OTNS não teriam doravante a cobertura do FCVS. No caso de existência de resíduos, os mutuários obteriam dos agentes um novo financiamento de valor equivalente. Os mutuários contribuiriam ao FCVS com 3% do valor das prestações e os agentes financeiros, com um percentual sobre o saldo dos financiamentos concedidos. Mesmo assim, nada se alterou e o mercado continuou parado.


Finalmente, em janeiro de 88 "o governo federal elege o programa habitacional como uma de suas prioridades", e anuncia um pacote considerado "filosoficamente perfeito" por empresários do setor. De fato, o programa atende aos açambarcou o mercado habitacional interesses de todos os envolvidos - construtores, agentes financeiros e parte da classe média - mas negligencia a camada da população cujo atendimento deveria ser prioritário, a população de baixa renda.


O subsídio, pelo atual sistema, deve ser financiado pelo próprio SFH, não havendo previsão de dotação orçamentária da União para aquela finalidade. Daí a necessidade de permitir aos agentes financeiros que alterem seu "mix" de aplicações.


Em outras palavras, para permitir que sejam feitos financiamentos a taxas de juros subsidiadas - abaixo do custo de captação dos agentes financeiros, estimado em 7% reais - tornou-se necessário maior liberalidade para financiamentos de valor mais elevado e também nas faixas livres, onde os juros permitidos são sensivelmente mais elevados.


De fato, os subsídios são custeados por reduções de 5% no depósito compulsório dos agentes junto ao Banco Central; pela ampliação de 10% para 20% dos recursos captados disponíveis ou aplicações na faixa livre (capital de giro, títulos públicos, empréstimos hipotecários, aquisição de direitos creditórios etc., todos com taxas de mercado); e pela redução da obrigatoriedade de financiamentos abaixo de 2.500 OTNS de 25% para 10% das aplicações.


Mais preocupante ainda é que as faixas de mais baixa renda poderão não obter quaisquer financiamentos do SBPE. Exige-se um mínimo de 10% de aplicações em financiamentos de até 2.500 OTNS. Como os juros para financiamentos de menos de 1.800 OTNS serão gravosos (abaixo de 7,5%), é provável que as operações se concentrem no intervalo 1.800-2.500 OTNS, no qual os juros variam de 7,5% a cerca de 9%. Por outro lado, financiamentos nestes valores só poderão ser pactuados por famílias com renda superior a Cz$ 30.000,00 (cerca de 6,5 pisos salariais), o que excluiria do sistema pelo menos 70% das famílias brasileiras, onde se concentram quase 90% do déficit habitacional brasileiro.


Até mesmo a isenção de juros para financiamentos de até 600 OTNS - apresentada pelo governo como uma confirmação de sua opção social - apenas reflete o irrealismo dos seus programas habitacionais. A principal justificativa para a expansão até 600 OTNs da faixa de isenção de juros acha-se nos altos custos das moradias populares, bem acima do antigo limite de 300 OTNS. Cabe lembrar, contudo, que um financiamento de 600 OTNS sem juros implica em uma exigência de renda familiar de cerca de 1,5 piso salarial, o que automaticamente exclui do programa os 35% das famílias mais pobres da população, justamente onde se concentra o déficit habitacional. Estes dados comprovam assim a patente incompatibilidade entre o poder aquisitivo da população carente de moradia e os tipos de programas desenvolvidos pelo SFH, absurdamente orientados para a oferta de habitações complexas e equipadas.


Estes fatos demonstram que o caminho a ser seguido, caso haja uma verdadeira preocupação com as famílias carentes, acha-se nos financiamentos de mais baixo valor unitário, orientados para os processos de autoconstrução que, embora notoriamente imperfeitos, são os instrumentos disponíveis e adequados para uma economia de baixa renda como a brasileira.


Conclusões


Ao invés de conceder absoluta precedência à população de baixa renda, o SFH tem sido apenas um enorme aparato financeiro cujos beneficiários têm sido todos os participantes do mercado imobiliário - principalmente os agentes financeiros, os construtores e a classe média - mas que excluiu a parcela da população que sofre o maior impacto do déficit de moradias no Brasil.


A política habitacional caminha rapidamente para a perda de seu conteúdo social, embora não se possa negar que a classe média também necessite de apoio. Nesta faixa, contudo, não há porque acreditar que, grosso modo, os mecanismos de mercado não possam funcionar a contento. Nas faixas carentes, contudo, trata-se de um evidente exemplo de "falha de mercado", a exigir intervenção governamental.


Atualmente, o governo caminha no sentido inverso, orientando o SFH para as classes médias, e relegando ao total abandono as necessidades das famílias consideradas de interesse social, como atesta a espantosa proliferação de favelas, cortiços e outras formas de sub-habitação.


Há urgente necessidade de uma radical reformulação da política habitacional brasileira. Os mecanismos de financiamento desenvolvidos no Brasil, principalmente as cadernetas de poupança, acabaram se transformando numa parcela significativa de ativos financeiros não-monetários (cerca de um terço do total) de tal sorte que passaram a receber das autoridades um tratamento mais financeiro do que propriamente social. Neste sentido, caberia uma reavaliação desses investimentos, e uma melhor definição dos objetivos, programas e formas de atuação do SFH.


No momento, o grande desafio é deselitizar a política habitacional brasileira, resgatando a prioridade para as famílias na base da pirâmide de renda.

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