A proposta de reforma tributária tem um defeito de fundo: não contribui para aumentar o número de contribuintes e assim reduzir a carga tributária individual. Ela centraliza a legislação do ICMS e quase cria um imposto único federal sobre valor agregado. Isso simplifica, unifica e poderá resultar em economias operacionais e administrativas importantes para o governo federal. Mas, por outro lado, cria para o governo central um grande imposto cujos fatos geradores serão em grande parte coincidentes com a base do ICMS (a única exceção são os serviços, que serão tributados pelo novo IVA-F, e não pelo ICMS, com algumas exceções). Os fatos geradores sofrerão tributação dupla, estadual e federal, cujas alíquotas devem ser somadas para caracterizar a carga tributária total incidente sobre eles. Com certeza será superior a 20%-22%, o que deverá estimular a evasão e a sonegação. A proposta é limitada. Ela silencia sobre importantes tributos. Há inúmeros detalhes, alguns oportunisticamente inseridos em meandros pouco explícitos do projeto e que demandarão análise detalhada. Mas chamo a atenção inicialmente para alguns aspectos gerais.
A reforma é parcial. Não abrange tributos como o IR, o IPI e os impostos municipais, contemplando apenas tributos sobre o consumo. É perfunctória quanto à desoneração da folha de pagamentos;
Não há indicações quantitativas sobre os impactos das medidas nem sobre alíquotas, bases e formas de cálculo. Convém lembrar que, em matéria tributária, o diabo mora nos detalhes;
Altera critérios de partilha fiscal. Como ponto positivo, inclui novos tributos federais nos mecanismos de divisão da arrecadação. Por outro lado, dificulta a apuração para saber se Estados e municípios vão receber mais ou menos recursos;
Desconstitucionaliza critérios de partilha do ICMS. Isso vai prejudicar as capitais e os grandes municípios brasileiros;
Critérios de partilha incertos. Os métodos de “enforcement” não estão claramente definidos principalmente porque os repasses não serão de cima para baixo (União para Estados e municípios). As transferências serão laterais (entre Estados). Não se sabe quanto vai custar a estrutura de fiscalização, quem irá fiscalizar nem se os mecanismos de punição de Estados que não repassarem o ICMS serão eficazes;
Incertezas dos impactos do ICMS no destino. As compensações pelo Fundo de Equalização são incertas e subjetivas, não dando garantias seguras aos Estados perdedores;
Reforma protelatória. O governo pressupõe que governadores e prefeitos só pensam em seus respectivos mandatos e que aceitarão azedumes se ocorrerem daqui a 10 ou 20 anos;
Nota fiscal eletrônica. É uma medida ingênua e de difícil execução, já que gera custos para sua instalação, não considera o ambiente socioeducacional da população nem que a informalidade é quase uma regra no Brasil. Será uma “espada de Dâmocles” sobre a cabeça dos Estados, na medida em que sua nãoimplementação fará com que eles não participem do Fundo de Equalização. Se o governo acha que ela resolve o problema da sonegação, é bom lembrar que basta tirar o aparelho da tomada que a operação não será registrada;
Abertura para a multiplicação de alíquotas. Os especialistas em IVA consideram ideal a existência de apenas uma alíquota ou, no máximo, duas ou três. Voltaremos ao tema.
MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), e professor titular da Fundação Getulio Vargas.
Publicado na Folha de S. Paulo: 03/03/2008
Publicado na Revista Consulex: 15/04/2008