O ajuste fiscal previsto para 2015 já teve início. Será mais recessivo do que seria necessário, considerando que parece depender mais de aumento de tributos do que de corte de gastos.
Ajustes fiscais feitos prioritariamente com alterações de impostos geram efeitos diferenciados na economia, comparativamente ao uso de variações nos níveis das despesas públicas. A literatura econômica especializada demonstrou que os ajustes fiscais duradouros e de boa qualidade são os que se baseiam em corte de gastos, enquanto os de pior qualidade dependem mais do aumento de impostos.
Redução de gastos possuem nítidas vantagens: cortam gorduras e ineficiências, combatem os "rent seekers" (agentes que tentam obter renda manipulando o ambiente político) e a corrupção, diminuem a demanda do setor público por poupança privada e preservam a capacidade de investimento das empresas. Já os ajustes baseados em aumento de tributos são mais fáceis operacionalmente, mas não possuem muitas das qualidades acima, além de serem recessivos ao asfixiarem o setor privado e o consumo das famílias.
Entre vários estudos que se debruçaram sobre o tema, cito o de Alberto Alesina e Silvia Ardagna, da Universidade de Harvard, que concluem que “no caso de ajustes fiscais, os que se baseiam em cortes de gastos sem aumento de impostos são mais eficazes para reduzir déficits e a relação dívida/PIB do que quando se pratica aumentos de carga tributária. Além disso, ajustes nos gastos, e não na tributação, têm efeitos menos recessivos”.
O ajuste que começa a ser posto em prática no Brasil é o mais perverso, uma vez que a prioridade envolve elevação de tributos. As estimativas são ainda precárias, mas poderá conter significativo aumento de carga tributária mediante incremento de alíquotas, criação de novos tributos e eliminação de isenções. A volta da Cide, o fim das reduções do IPI e das desonerações da cesta básica, os aumentos de IOF e do PIS-Cofins sobre importados, a nova tributação sobre bebidas e, possivelmente, sobre movimentação financeira poderão expandir o peso dos tributos em mais de 2% do PIB, um ajuste de magnitude considerável.
Por outro lado, as reduções de gastos públicos ainda são hipotéticas, mesmo que absolutamente necessárias. O superávit primário do governo federal, que chegou a 2,5% do PIB no período 2007/08, encerrou 2014 com déficit em 0,3% do PIB, em parte como resultado do crescimento dos gastos primários da União que saltaram de 15,7% do PIB em 2002 para 19% em 2014, segundo estimativas do ministro do Planejamento Nelson Barbosa.
Vale apontar que os gastos relacionados com a qualidade e com a disponibilidade de serviços públicos não foram expandidos na mesma proporção que as demais despesas. O custo com pessoal sofreu decréscimo de 4,8% para 4,2% do PIB, os custeios mantiveram-se constantes em 3,4% do PIB, e os investimentos tiveram crescimento marginal de 1,0% para 1,2% do PIB. No conjunto desses itens, que definem a disponibilidade e a qualidade dos serviços públicos oferecidos à população, houve um decréscimo de 9,2% do PIB para 8,8% do PIB entre 2002 e 2014, apesar do acréscimo relativo de 21% nos gastos primários totais.
Ineficiência não surpreende, portanto, que a sociedade brasileira sofra as consequências de um setor público ineficiente, com um funcionalismo desmotivado, mal remunerado e pouco capacitado, pois são dos serviços pessoais do funcionalismo público, além dos gastos de custeio e investimento, que dependem da oferta adequada em áreas essenciais como saúde, educação, segurança e justiça.
Por outro lado, com o sucateamento dos serviços públicos, os gastos com transferências de renda, subvenções e renúncias fiscais cresceram explosivamente entre 2002 e 2014, passando de 6,6% do PIB para 10,1%, um aumento relativo de 53%.
A urgência do ajuste e as dificuldades políticas para se efetuar redução de benefícios e transferências tendem a deslocar a maior parte do programa fiscal para o aumento da carga tributária nacional, que já chega a 36% do PIB, um recorde histórico e sem precedentes em países em desenvolvimento como o Brasil.
A questão da rigidez quanto à necessidade de cortar gastos no Brasil merece uma discussão mais aprofundada no processo de ajuste fiscal em andamento. A dificuldade em reduzir despesas públicas é fato notório no mundo todo, mas particularmente perceptível no caso brasileiro, que no final dos anos 80 optou por um modelo de Estado de bem-estar social, sem dispor de meios para financiá-lo.
O corporativismo, a cultura do “direito conquistado”, a demagogia, o populismo e a ditadura do “politicamente correto” transformaram o país na “república dos coitadinhos”, onde os que são considerados “vulneráveis” adquiriram direitos espúrios, a ponto de desafiarem as autoridades constituídas e as leis para conquistarem suas metas.
Questões objetivas de equidade e eficiência acham-se subordinadas à lógica da transferência de renda e a supostas metas de combate à desigualdade a qualquer custo. Nesse sentido, apoiados pela mídia engajada e pelos políticos populistas, os grupos organizados que se sentem prejudicados por reduções dos gastos públicos, mesmo que minoritários, encontram campo fértil para exercerem a defesa de seus “direitos”, mesmo que à custa de suas obrigações e dos interesses sociais mais amplos da grande maioria da população. Nesse ambiente, cortar gastos se transforma em tarefa morosa, e de ciclópicas proporções.
Outro foco de dificuldades na implementação de cortes de gastos governamentais encontra-se na rigidez do processo decisório público. No Brasil, as instâncias políticas deliberativas são múltiplas, com amplas oportunidades de interferências apriorísticas do Poder Judiciário e de vários órgãos de controle e fiscalização, oficiais e privados.
Além do mais, o processo orçamentário brasileiro é incremental. Os que militam na gestão pública sabem que as propostas orçamentárias para exercícios futuros tomam como baselines os projetos e programas em execução no exercício em curso. Essa prática adota como premissa que os gastos e ações em execução são justificáveis pelo simples fato de já existirem, cabendo aos que elaboram, aprovam e executam os orçamentos públicos interferirem apenas em decisões marginais de acréscimos ou de reduções desses programas. Os orçamentos tornam-se rígidos, carregados de vinculações legais e, portanto, inflexíveis para baixo. Programas, ações e atividades uma vez incluídos no orçamento público dificilmente são avaliados periodicamente para justificar sua continuidade, ou eliminação. Tornam-se permanentes, e frequentemente transformam-se em instituições mortas-vivas, antiquadas, sem aderência às necessidades reais da sociedade em constante evolução. Sobrevivem por inércia, e por vezes sem objetivos a serem atingidos, porém sempre consumidoras de escassos recursos públicos.
Essa tradição orçamentária transforma qualquer atividade pública incluída no orçamento em um camaleão institucional, capaz de sobreviver sem chamar atenção mesmo que desprovida de razões que justifiquem a continuação de sua existência.
Conclusão
Enquanto o setor público brasileiro não adotar processos orçamentários de “base zero” (que todo ano revisa e avalia a eficiência dos gastos do ano anterior), dificilmente os ajustes fiscais no Brasil poderão ser executados com a agilidade necessária. Esse método de elaboração do orçamento inverte a lógica atual, e tem a grande qualidade de partir a cada ano de uma página em branco, e assim requer permanente acompanhamento e avaliação de resultados das atividades públicas. A manutenção de programas e atividades preexistentes e sua exclusão ou alteração, bem como a inclusão de novas atividades e gastos, exigem sistemáticas e criteriosas avaliações anuais que justifiquem sua inclusão, exclusão ou alteração. Todo ano, cada projeto, novo ou preexistente, deve passar por rígida avaliação custo-benefício antes de ser incluído na peça orçamentária anual. Se esse exercício fosse praticado pelo governo brasileiro, descobriríamos uma infinidade de gastos injustificáveis sob qualquer critério objetivo de valia social, e que sobrevivem por mera inércia das autoridades públicas e dos contribuintes.
Cumpre lembrar que no âmbito da redução de gastos públicos no Brasil as dificuldades ideológicas, políticas e operacionais são enormes. Basta lembrar que apenas 10% das receitas federais são direcionados para gastos discricionários – não obrigatórios por lei –, incluindo investimentos. Para complicar, a presidente Dilma durante a campanha presidencial disse que os “gastos sociais” são intocáveis, independentemente de avaliação objetiva de seus méritos.
Publicado na edição de março da Revista Conjuntura Econômica.
Publicado no Jornal A Gazeta Regional (Caçapava - SP): 06/03/2015