"O imposto bom não é o imposto velho nem o imposto clássico. Imposto bom é o imposto insonegável e de cobrança automática. Qualquer imposto sonegável é socialmente injusto. E se a cobrança depende de documentos declaratórios, torna-se um desperdício." Roberto Campos
A desoneração laboral e patronal da folha de pagamento é importante por diversas razões. Primeiramente, ela pode reduzir de modo significativo a carga tributária sobre setores que serão fortemente onerados com o novo IBS/CBS, como serviços (+ 9,7%), extração mineral (+11.9%) e utilities (+ 6,0%) tornando-os mais competitivos e sustentáveis economicamente (vide tabela abaixo).
Em segundo lugar, a desoneração pode incentivar a empregabilidade da mão de obra, desestimulando a informalidade no mercado de trabalho. Além disso, a medida pode contribuir para a manutenção e criação de empregos, especialmente em setores altamente dependentes de mão de obra.
Outra razão importante é que se está propondo a introdução de uma Contribuição Previdenciária sobre Movimentação Financeira (nova CPMF) para compensar a perda de receita decorrente do processo de desoneração da folha. No momento a desoneração é apenas patronal e limitada a dezessete setores. Ademais, não há um mecanismo de compensação pela perda de arrecadação, agravando a já precária situação financeira da Previdência.
O que propomos é a desoneração patronal e laboral compensada pela introdução da nova CPMF para evitar a perda de arrecadação. A desoneração da folha, quando combinada com a nova CPMF, pode garantir que a arrecadação previdenciária não fique comprometida, o que é essencial para a sustentabilidade do sistema, que por ser de repartição, depende de uma base ampla e diversificada de contribuintes.
A maior vantagem do uso da movimentação financeira como base para o financiamento da Previdência é a capacidade de incluir uma grande parcela dos agentes econômicos que atualmente estão na economia subterrânea ou informal. Esses agentes não contribuem para o financiamento do sistema previdenciário e de outros serviços públicos, mas se beneficiam dele. Ao tributar as transações financeiras, mesmo aquelas realizadas por atividades informais ou ilegais, é possível capturar uma fonte de receita que atualmente não é alcançada pelos tributos tradicionais sobre renda, folha de pagamentos ou consumo.
Estimo que a economia subterrânea represente cerca de 30% do PIB brasileiro, composta por negócios informais, sonegação fiscal, crime organizado, elisão e outras atividades que não geram arrecadação pública. A tributação sobre movimentação financeira permitiria que esses agentes econômicos, que hoje não contribuem, mas usufruem dos benefícios públicos, passem a financiar o sistema de forma indireta, através das transações que realizam, em conformidade com o mandado constitucional de que a Previdência Social brasileira, sendo regime de repartição ou de caixa, seja financiado "por toda a sociedade" (artigo 195 da CF). Isso promoveria mais justiça fiscal e ampliaria a base de arrecadação, fortalecendo o financiamento da previdência social e de outros serviços essenciais.
Além disso, por ser um tributo de difícil sonegação e cobrança automática, como já sobejamente demonstrado pela velha CPMF, a tributação sobre movimentação financeira teria um custo de arrecadação baixo em comparação aos impostos tradicionais, que exigem uma máquina fiscal complexa para fiscalização e cobrança.
Portanto, ao incluir a economia subterrânea na base de contribuintes de forma indireta, essa modalidade tributária representa uma oportunidade de aumentar a arrecadação de forma justa e eficiente, garantindo recursos para a sustentabilidade do sistema previdenciário e de outras políticas públicas.
"Imposto justo é o que se consegue cobrar" Mário Henrique Simonsen
Esta nota estima o impacto da desoneração da folha de salários das empresas por meio do abatimento de dois salários-mínimos em todos os salários na cobrança da atual contribuição previdenciária ao INSS, juntamente com a introdução de uma contribuição sobre a movimentação financeira (nova CPMF) de forma compensatória para manter a arrecadação pública.
A estimativa do abatimento de dois salários-mínimos utiliza dados do Cadastro Central de Empresas (Cempre) do IBGE para o ano de 2021, o mais recente disponível. As variáveis consideradas são o total de pessoas ocupadas e o salário médio em reais em 260 atividades da economia.
O ponto de partida é a obtenção da distribuição salarial em cada atividade econômica utilizando a distribuição de Pareto, cuja referência é dada por uma função do tipo y = 1 – (β / x)α , onde β representa o parâmetro de escala e α representa o parâmetro da forma da distribuição.
Neste exercício o β é igual a 1 e o α é obtido para cada uma das 260 atividades da produção por meio de uma relação representada na forma logarítmica ln y = ln β – α ln x, onde ln y = total de ocupados da atividade produtiva; ln β = ponto do eixo x onde uma reta se une à assíntota vertical (o ponto do menor salário e é igual a 1 salário-mínimo); ln x = salário médio de cada atividade produtiva; e α = inclinação da curva em um gráfico logarítmico.
Desta forma foi possível estimar o acumulado da distribuição salarial de cada atividade produtiva por faixa de salário-mínimo e na sequência definir o contingente de ocupados em cada uma dessas faixas. Consequentemente obtêm-se o montante de salários sujeito à alíquota patronal de 20% do INSS e da contribuição individual da mão de obra empregada.
Com o abatimento de dois salários-mínimos em todos os salários o contingente que recebe até essa faixa salarial não teria nenhuma incidência do INSS de 20% sobre a folha de pagamentos. Da mesma forma salários individuais teriam os mesmos dois salários-mínimos de isenção para todas as faixas. Dessa faixa em diante haveria a cobrança apenas sobre a diferença entre o salário do empregado e os dois salários-mínimos de abatimento. Assim, as contribuições laborais e patronais ao INSS que atualmente incidem sobre 100% da folha de pagamentos continuariam sendo arrecadadas, mas incidiriam apenas sobre uma fração da folha de salários, reduzindo significativamente a cunha tributária no custo do trabalho.[1]
Para manter a arrecadação do INSS constante haveria uma contribuição sobre a movimentação financeira (nova CPMF) estimada em 0,689%, dividida entre o crédito de cada lançamento nas contas correntes bancárias, ou seja, uma alíquota de 0,3445% em cada perna de uma transação.
A tabela a seguir resume o efeito setorial da Emenda Constitucional 132/2023, que cria o IBS/CBS, em relação ao sistema vigente e o efeito da introdução de uma nova CPMF para substituir a desoneração da folha de pagamentos em dois salários-mínimos, como descrito acima, também comparativamente à situação atual.
Carga tributária sobre faturamento: atual, com a EC 132/2023 e com a desoneração compensada de dois salários-mínimos (SM)
Elaboração própria utilizando metodologia descrita no capítulo 2 do livro Bank Transactions: Pathway to the single tax ideal, disponível em https://www.marcoscintra.org/product-page/bank-transactions-pathway-to-the-single-tax-ideal . Os impactos estimados para setores desagregados estão disponíveis em https://www.marcoscintra.org/post/impactosdesoneracao
Os dados demonstram que a desoneração da folha em dois salários-mínimos beneficia todos os setores relativamente à situação atual, exceto a extração mineral que ficaria praticamente igual.
Vale apontar que setores que sofreriam elevação de suas cargas tributárias com a atual criação do IBS/CBS tais como serviços (+ 9,7%), extração mineral (+ 11.9%), utilities (+ 6,0%) e intermediação financeira (+ 4,9%), com a desoneração terminariam com redução significativa de carga, a exemplo de serviços que passaria de uma elevação de carga em 9,7% para uma redução de 8,6%; ou a extração mineral que de um aumento de 11,9% passaria a sofrer uma elevação significativamente mais baixa, de 1.1%. Por outro lado, os setores beneficiados pela EC 132/2023 teriam uma redução de carga tributária ainda mais acentuada, a exemplo da manufatura que de queda de carga de 15,8% passaria para uma redução para 25,2% em tributos sobre a produção relativamente a seu faturamento.
É fundamental reconhecer que a desoneração da folha de salários de todos os setores da economia, junto com a substituição dos atuais tributos sobre o trabalho por uma contribuição previdenciária sobre a movimentação financeira, promove equidade contributiva, universalização da base de contribuintes, e consequentemente uma redução do ônus tributário dos atuais contribuintes. Com essa mudança, evita-se a iniquidade de desonerar apenas alguns setores privilegiados, como se faz hoje.
A proposta de isentar dois salários-mínimos para todos os assalariados e empregadores resulta em um alívio imediato para trabalhadores de todas as classes e incentiva o crescimento econômico ao reduzir os custos de contratação. E acima de tudo, permite aos setores a sofrerem elevação significativa de carga tributária com a reforma prevista na EC 132/2023, como os serviços, assimilar a reforma sem os percalços previstos a ocorrerem na ausência dessa importante medida.
"As transações financeiras constituem uma das poucas bases potenciais de arrecadação futura na qual é possível ancorar o aumento da receita pública sem penalizar os setores produtivos e os segmentos sociais..." Maria da Conceição Tavares
A experiência bem-sucedida da antiga CPMF no Brasil demonstra que essa forma de tributação pode ser eficiente e justa. A tributação da movimentação financeira é difícil de ser sonegada e atinge todos os agentes econômicos, incluindo aqueles na economia informal que não contribuem atualmente, mas que se beneficiam dos serviços previdenciários. Dessa forma, ao adotarmos esta abordagem, promovemos uma arrecadação mais robusta e inclusiva, garantindo a sustentabilidade da previdência social e um tratamento mais equitativo para todos os setores da economia, e seus trabalhadores e empregadores.
Marcos Cintra é professor-titular da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Foi Deputado Federal e Secretário Especial da Receita Federal.
[1] Nas estimativas para as 260 atividades os 20% do INSS seriam reduzidos para um equivalente de no mínimo 3,6% e no máximo de 11,1% sobre a folha de pagamentos desses segmentos.
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