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  • Marcos Cintra

Livro: Imposto Único Sobre Transações (Prós e Contras) (parte 1/2)


APRESENTAÇÃO

JOSE VALNEY DE BRITO

A proposta de um Imposto Único sobre Transações foi apresentada pela primeira vez em 14/01/90. pelo prof. Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, em artigo na Folha.


Os fundamentos e as características básicas foram, então, delineados. A idéia de compilar e publicar em formato de livro, as matérias que a partir daí foram publicadas é levar aos líderes e formadores de opinião, formuladores de políticas e responsáveis pelas decisões importantes para o país, os membros do Congresso, a visão mais ampla possível dos argumentos pró e contra o imposto único.


O momento especialmente crítico que o país atravessa, no qual sofre a mais profunda depressão econômica de sua história, torna ainda mais oportuna a discussão de uma reforma tributária.


O Brasil precisa urgente e desesperadamente reencontrar o caminho do crescimento econômico. Esta é a forma de evitar nos transformarmos em um país do Quarto Mundo, com o conseqüente cortejo de indicadores sociais ainda piores do que os péssimos que atualmente apresentamos.


Há consenso de que o conjunto de impostos que forma o sistema tributário brasileiro tornou-se um dos fortes impedimentos à retomada do desenvolvimento. É uma das amarras que cerceiam a liberação das potencialidades. Esse consenso gera outro, de que é necessário mudar, mas por não haver acordo sobre em que direção, a mudança não ocorre. O atual sistema é muito deficiente por muitas razões que alguns dos textos apresentados exploram em mais detalhes. É injusto, por não conseguir os atributos de universalidade e progressividade. É caro para a sociedade por todos os custos envolvidos na apuração, legislação, regulamentação, fiscalização, controle, julgamentos e outras tantas atividades ligadas à simples arrecadação dos múltiplos impostos. É complexo demais, tornando difícil o correto cumprimento pelos agentes econômicos.


Desfigura o caráter dos indivíduos da sociedade, acentuando os seus piores defeitos ao estimular e propiciar a sonegação, a corrupção e esperteza. Amplia a má distribuição da renda, a indolência das pessoas e a ineficiência na produção e distribuição de bens.


Diante da constatação desse quadro, as mudanças devem privilegiar a simplificação, a redução do número de impostos, ampliação da base de incidência, redução das alíquotas e impedimento à sonegação.


O imposto único pode ser um caminho, mesmo não sendo a panacéia, a solução perfeita.


Acho necessário chamar a atenção para o fato de que aprovar e implantar a reforma tributária depende do governo. Mas o governo do país não é apenas o Executivo, como errada e acomodadamente nos acostumamos a ver e responsabilizar.


O governo, a quem o povo delega 100% dos poderes, é o conjunto do Legislativo, Judiciário e Executivo, principalmente o primeiro, que detém o poder de mudar a Constituição e aprovar as leis da reforma. Essa lembrança do óbvio é oportuna, porque uma mudança da dimensão da provocada pela implantação do IUT só será possível com o total e profundo comprometimento do "governo", na sua concepção mais ampla.


É nossa sincera esperança que o debate decorrente desta edição resulte em efetiva reforma tributária, no prazo mais curto possível, e que possamos retomar o crescimento econômico, a nosso ver ainda o melhor caminho para a estabilidade, para a redução dos índices de inflação e para o aumento do bem-estar dos brasileiros.


PREFÁCIO

JORGE KONDER BORNHAUSEN

Em janeiro do ano passado, o economista Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, com o apoio decidido da Folha de S.Paulo, lançou um desafio ao país.


Num ato de coragem cívica, o ilustre professor, homem de convicções liberais modernas, convidou-nos a todos, governantes e governados, a opinião pública em geral, para iniciarmos uma grande campanha visando liberar o país do cipoal tributário que emperra a economia e sobrecarrega a máquina administrativa, funcionando, cada vez mais, como um peso morto que somos obrigados a arrastar, em nossa penosa marcha para a construção de instituições democráticas estáveis.


A proposta do professor Cintra é radical: acabar com a multiplicidade de impostos que afogam o contribuinte para reduzir tudo a um único, o Imposto Único sobre Transações, pago no ato igualmente por ambas as partes, o vendedor e o comprador.


Claro que uma proposta tão drástica não poderia deixar de despertar reações de perplexidade, de aplauso e até de desconfiança. No debate, que se iniciou em seguida, surgiram diferentes objeções, às quais o autor tem procurado dar respostas lúcidas e convincentes.


Mas é justamente a simplicidade exemplar da proposta que passou a se constituir o seu maior atrativo, um atrativo quase. irresistível. Todas as pessoas que examinaram o assunto sem prevenções perceberam de pronto que havia um desafio muito sério, abrindo a perspectiva de um grande alívio, graças à descompressão do sistema tributário nacional, que hoje tolhe a iniciativa privada e a própria administração pública.


O debate se ampliou e agora volta a reacender-se com a edição da presente obra contendo a proposta de Cintra, o editorial da Folha e as opiniões sobre a matéria.


Estamos diante de um desafio que não pode ficar sem conseqüências práticas. O imposto único, tal como foi sugerido, pode e deve ser examinado sob diversos ângulos. Mas a idéia terá de gerar um importante benefício para o país, servindo de ponto de partida para um avanço real no sentido de estabelecer um elo claro e eficaz entre o cidadão privado e a coisa pública, já que a consciência desta relação está na raiz da verdadeira cidadania.


 

POR UMA REVOLUÇÃO TRIBUTÁRIA

MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE

Um dos temas mais discutidos no atual quadro econômico é a urgente necessidade de uma ampla reforma tributária. Porém, o problema é geralmente tratado de forma restrita, apenas como um programa que vise a recuperação da carga tributária líquida do setor público federal. Providências como o combate à sonegação, a tributação de ganhos de capital, a redução de incentivos e de subsídios e um orçamento de renúncia fiscal são freqüentemente avaliadas como meios para aumentar a arrecadação do governo e, portanto, como formas de equacionar a questão do déficit público e das pressões inflacionárias que resultam dos constantes desequilíbrios orçamentários do governo. Dúvidas relacionadas à eficiência dos mecanismos tributários, sua equidade, seus custos, sua incidência e outras importantes perguntas são relegadas a segundo plano.


A ampla reforma tributária de que o país necessita implica discutir todas essas questões. Porém, dentro de um contexto no qual o formulador de política econômica não se ache restrito às instituições fiscais existentes.


O Brasil tem uma estrutura de impostos das mais complexas do mundo. São inúmeras as formas de tributação. Impostos sobre a renda, sobre valor adicionado, sobre patrimônio, além de taxas de serviço, contribuições parafiscais, adicionais sobre tarifas... Enfim, uma parafernália de formas e meios de tributação que torna absolutamente impossível qualquer conclusão confiável acerca das características do sistema brasileiro. Não há como saber se é, ou não, regressivo; quais seus impactos alocativos; qual sua eficiência.


Uma reforma que mereça este nome exige uma detalhada discussão de dois importantes aspectos do problema: em primeiro lugar, a definição da base de tributação; em segundo lugar, a definição e as características do sistema.


A primeira pergunta é normalmente centrada nas vantagens e desvantagens da tributação sobre a renda versus a tributação sobre o consumo. A segunda se refere ao número de impostos a serem lançados, à forma de arrecadação, à incidência e outras questões correlatas.

Nesse sentido, surge a proposta do Imposto Único sobre Transações, cujas principais características são as seguintes:


Imposto Único sobre Transações

A sugestão contida neste artigo se refere à introdução no Brasil de um Imposto Único sobre Transações. Uma apresentação dessa idéia também pode ser encontrada em um trabalho de autoria de E. L. Feige, intitulado "Taxing AlI Transactions: The Automated Payment Transaction Tax System", apresentado em recente seminário realizado na Argentina.


O imposto único, um conceito com longa tradição na história do pensamento econômico, traz inúmeras vantagens de ordem tributária. A fiscalização torna-se mais simples; os critérios de taxação ficam mais transparentes; os custos de arrecadação por parte do poder público, e também os custos do setor privado vinculados às exigências tributárias, tornam-se mais leves. A simplificação do processo fiscal é evidente quando toda a arrecadação se concentra em um único tributo, incidente sobre uma única base.


Não há estimativas confiáveis sobre os custos de fiscalização e de arrecadação fiscal no Brasil. Porém, não seria exagero afirmar que devem chegar a 10% das receitas tributárias. Nos EUA os custos de arrecadação são de 7% da receita tributária do governo. No Brasil devem ser bem maiores, não apenas pela ineficiência da máquina arrecadadora, mas também pela multiplicidade de obrigações fiscais a que estão sujeitas as pessoas físicas e jurídicas.


Somando-se ao custo da arrecadação os custos da escrituração tributária a que estão sujeitos os agentes privados no Brasil, não será exagero chegar a um total de 15% a 20% das; receitas de impostos do país. É um peso morto, que se traduz apenas em gastos, sem qualquer contribuição ao aumento da produção e do bem-estar social.


Características do imposto único

Os pontos fundamentais desta proposta são dois. Em primeiro lugar, a existência de apenas um imposto. Todos os demais seriam extintos, com possíveis exceções, como no caso das tarifas aduaneiras. Não haveria mais Imposto de Renda sobre a pessoa física ou sobre a jurídica; os salários não sofreriam retenção de qualquer tipo, seja como antecipação de Imposto de Renda, seja para custeio da Previdência Social; não haveria mais necessidade de qualquer escrituração fiscal ou tributária nas empresas; não haveria mais qualquer forma de declaração para impostos de renda, de serviço, de circulação ou de qualquer outro tipo; não haveria mais necessidade da manutenção das múltiplas estruturas de fiscalização hoje existentes.


A segunda característica fundamental desta proposta se prende à transferência da base do imposto único exclusivamente para as transações monetárias, em substituição à multiplicidade de bases de tributação hoje existentes. Assim, toda vez que qualquer agente econômico efetuar um pagamento a outro haverá a incidência de um imposto cobrado sobre o valor da transação. O tributo será dividido em partes iguais e cobrado do emitente e do beneficiado.


Vantagens do imposto único:

As vantagens desta proposta são inúmeras.

Haverá enorme simplificação e redução de custos na arrecadação de tributos. A vantagem não se restringe apenas à redução da máquina governamental, mas também aos custos das empresas que hoje dedicam pelo menos cerca de 30% de seu pessoal administrativo para fazer frente às exigências de escrituração fiscal.


Como estimado acima, a redução nos custos da máquina arrecadadora do governo e do pessoal administrativo do setor privado poderá chegar a 20% da arrecadação fiscal bruta do país, de cerca de 22 % do PIB. Isso implica dizer que o impacto dessa proposta, em termos de liberação de recursos reais, seria da ordem de 4,4% do PIB. Esse montante equivale à totalidade das remessas de recursos reais ao exterior -pagamento de juros, de lucros e de dividendos- e significa uma vez e meia o impacto de uma moratória da dívida externa brasileira. São recursos que poderiam ser canalizados para investimentos produtivos, capazes de alavancar o crescimento econômico, em vez de serem absorvidos em atividades de consumo do governo e em custos administrativos privados.


Esta proposta acarretaria a virtual eliminação da sonegação, da corrupção fiscal e da economia informal, sem custos administrativos ou de fiscalização. A arrecadação tributária seria efetuada automaticamente a cada lançamento de débito e de crédito no sistema bancário. A cada transação, a conta credora e a conta devedora seriam debitadas em um percentual fixo do valor da transação. Assim, a cada transação efetuada mediante cheques ou qualquer outro tipo de ordem de pagamento, o sistema automaticamente transferirá o produto da arrecadação à conta dos Tesouros federal, estaduais e municipais, segundo critérios predefinidos.


Esse sistema torna impraticável qualquer tentativa de sonegação, pois bastaria uma fiscalização nos sistemas de compensação do setor bancário para que ela seja totalmente eliminada.


O mais significativo nesta proposta é que a alíquota do imposto pode ser baixa. Para que o governo -em seus três níveis- arrecade cerca de 25% do PIB, e considerando-se o volume de transações efetuadas na economia, estima-se que a alíquota do imposto sobre transações não, seria superior a 2% - 1% pago pela parte credora e 1% pela parte devedora na transação.


Assim, considerando-se a baixa alíquota marginal, o incentivo à sonegação virtualmente desapareceria. Ademais, isso se tornaria impossível, a não ser que a transação fosse efetuada em moeda, ou mediante escambo. Evidentemente, nestes dois casos o custo da sonegação seria maior do que seu benefício - apenas 1% da transação-, o que desincentivaria por completo qualquer tentativa de burla tributária.


Cabe lembrar ainda que, para evitar que as transações efetuadas em moeda fiquem isentas de tributação, todo saque, ou depósito, de numerário (moeda circulante) do sistema bancário poderia ser taxado de acordo com uma alíquota que em média reproduza o número de transações que se realiza com essa mesma moeda até seu retorno ao sistema bancário.


Para o caso norte-americano se estimou que a alíquota necessária seria o dobro da alíquota geral. Neste caso, seria de 4% no Brasil, cobrados quando da saída, e novamente quando da entrada, do numerário no sistema bancário. Com isso, se estaria eliminando a vantagem das transações em dinheiro.


Portanto, esse sistema de tributação eliminaria a sonegação -estimada em cerca de 30% a 40% da arrecadação- e implicaria uma liberação de recursos reais. Haveria uma sensível redução nos custos de produção e nas pressões inflacionárias, concomitantemente com a possibilidade de sensíveis aumentos na arrecadação tributária. Certamente serão ganhos do tipo "once and for all", mas que seriam suficientes para permitir um expressivo ajuste fiscal e uma sensível recuperação da capacidade de investimento do país.


A equidade do imposto único

Resta abordar questões que dizem respeito à progressividade da incidência desse tipo de tributação.


Tratando-se de um imposto em cascata, os produtos que envolvem um maior número de transações na cadeia produtiva -cujos métodos de produção são mais "round-a- bout"- serão proporcionalmente mais taxados. Isso implica garantir ao sistema tributário uma desejada dose de progressividade, já que os "wage-goods" -produtos da cesta básica .que compõem o perfil de demanda das classes de mais baixa renda- terão uma carga tributária relativamente menor do que os produtos mais sofisticados. Assim, estará garantida a progressividade desse sistema.


Cabe lembrar que o incentivo para a integração vertical da produção poderá se acentuar. Mas, consideradas as baixas alíquotas marginais do sistema, dificilmente esse processo irá além do que seria previsível por razões estritamente ligadas a economias de escala e outros tipos de externalidade.


Outra característica interessante desta proposta é que a base de tributação deixa de ser a renda e a atividade produtiva, como é hoje, passando para as transações. Assim, passa-se a tributar não apenas as atividades vinculadas à geração de riqueza, mas também aquelas que impliquem mera transferência de ativos. Passa-se a taxar, portanto, todas as operações financeiras e de capital, que hoje são notoriamente subtributadas. Corrige-se, assim, o viés anti-produtivista na estrutura tributária brasileira.


Cabe acrescentar que as transações de caráter especulativo continuarão a existir mesmo porque cumprem também um papel econômico-, porém passarão a contribuir para a arrecadação pública.


Esta proposta tem portanto algumas características essenciais que devem ser enfatizadas: garante a arrecadação tributária; elimina a sonegação e corrupção fiscal; aumenta a eficiência da arrecadação; libera recursos reais significativos no setor privado e no setor público; é um sistema abrangente e progressivo.


 

Folha, 14/01/90

CHOQUE DE CORAGEM

EDITORIAL

A crise econômica brasileira tem um nome: falta de coragem. Coragem para destruir de uma vez por todas os vícios de uma estrutura estatal falida. Coragem para extirpar pela raiz o processo inflacionário. Coragem para criar um país com menos governo e menos miséria. Coragem para romper o círculo vicioso de irresponsabilidade pública, de desperdício, de improvisação, de descontrole, de complacência com a irracionalidade, com a injustiça e com a mentira, que ameaça submergir a sociedade inteira no maior desastre de sua história.


O país está adiando seu encontro com a realidade. É preciso enfrentá-la com decisão. a Estado brasileiro está em colapso. Medidas profundas e implacáveis terão de ser tomadas para vencer a inflação. Não é mais possível recuar. a termo' 'ajuste fiscal" é certamente brando em demasia para definir o que deve ser feito. Trata-se de derrubar para sempre a máquina d,e dissipação, de incompetência, de cartorialismo, de atraso e de injustiça social que sufoca a sociedade brasileira.


Nada poderá ser considerado radical demais nesta tarefa: demissões de todos os funcionários públicos ociosos ou dispensáveis, privatização de centenas de estatais, suspensão imediata das emissões de moeda, interrupção completa do lançamento de títulos do governo no mercado financeiro, autonomia do Banco Central, ajustes decisivos e realistas no câmbio e nas tarifas públicas, extinção total dos subsídios e incentivos tributários, punição exemplar dos sonegadores, cortes sem precedentes nos gastos estatais.


É a partir de um impacto dessa ordem que medidas imediatas e emergenciais, como o congelamento de preços e o aumento de impostos, terão condições de ser tomadas, ao lado da reformulação do perfil da dívida interna e da renegociação da dívida externa. Pressuposto básico do sucesso de todas estas providências é uma extrema credibilidade; o governo terá de conquistá-la de pronto, ao empreender violento abalo na mentalidade arcaica que hoje domina o ambiente social brasileiro.


Comprometendo-se, de forma integral e permanente, a depender apenas de impostos para seus gastos de custeio, inclusive os da dívida; recusando-se, de maneira explícita e enfática, a fazer uso de novas fontes de financiamento -mesmo porque estas já se encontram esgotadas-, o governo poderá alongar o perfil de sua dívida interna, reduzindo a níveis próximos de zero a remuneração dos títulos públicos e liquidando, assim, com a atual ciranda financeira.


Junto aos credores externos, atitudes de igual ousadia e determinação precisam ser tomadas. A seriedade, a profundidade e a coerência do ajuste interno, e a rejeição de qualquer novo empréstimo dos bancos internacionais -apenas investimentos de risco seriam sempre bem-vindos-, constituiriam o ponto de partida para propostas duras e agressivas. O valor de mercado dos títulos da dívida brasileira é muito menor do que o seu valor de face. Dessa forma, não é mais possível hesitar diante de ideias realmente radicais, que contemplem, por exemplo, a determinação unilateral do governo brasileiro de pagar, com estrita pontualidade, somente os juros contratuais equivalentes ao valor de mercado da dívida. O que isso significa de poupança de divisas deverá permitir a redução do superávit comercial para expandir as importações, o que é básico para o combate à inflação e para o incremento da eficiência da indústria nacional, cuja proteção deve ser feita apenas por mecanismos tarifários e não pelos controles burocráticos e cartoriais atualmente em vigor.


Na área da Previdência Social, será preciso reexaminar a estrutura dos benefícios e das fontes de recursos, abolindo privilégios inviáveis, como por exemplo a aposentadoria por tempo de serviço. No Sistema Financeiro da Habitação, não se pode mais conviver com os déficits existentes -cumpre cobrar prestações mais realistas dos mutuários, além de buscar a recuperação das perdas passadas.


Na área das relações trabalhistas e empresariais, é preciso romper com o ranço fascista que ainda existe na organização sindical de empregados e empregadores, acabando de vez com o imposto e a unicidade sindicais. É preciso aceitar as ideias modernas de liberdade de organização e negociação. Quanto à política salarial, o governo e a Justiça do Trabalho devem deixar de baixar normas e julgamentos para os reajustes coletivos do setor privado, que passariam a ser livremente negociados pelas partes. No âmbito da administração pública e como parâmetro para a negociação nas suas empresas estatais, o governo deve remunerar segundo os padrões do setor privado, inclusive no caso dos benefícios indiretos. Com isso deixaria de arrochar algumas categorias e de outorgar privilégios a outras, como os trabalhadores do setor financeiro estatal.


Superar o quadro de extremas desigualdades sociais que se registra no país; evitar os efeitos perversos de uma recessão nas camadas mais pobres da sociedade, exigir dos mais privilegiados que arquem com a parcela preponderante dos sacrifícios econômicos -eis um esforço que, num comportamento irresponsável, imprudente e ilegítimo, nenhum governo até hoje se dispôs a empreender. A ampliação dos benefícios do auxílio-desemprego, a abertura de frentes de trabalho urbanas e rurais, a criação de programas modernos, eficientes e descentralizados de alimentação popular serão alternativas indispensáveis no curto prazo, ao mesmo tempo em que se apontem, 'com visibilidade e vigor inequívocos, estratégias orientadas para intensificar a atuação social do poder público, rompendo com a omissão e ineficácia, a imprevidência e a corrupção que sempre têm caracterizado o comportamento do Estado e das elites brasileiras.


Reformas abrangentes, que alterem o perfil da distribuição da renda, que abram o país para o investimento externo, que desburocratizem por completo a máquina pública e a economia, que simplifiquem radicalmente o sistema tributário, precisam ser feitas de imediato. Lançada em artigo do economista, colaborador desta Folha e diretor da FGV, Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, nesta edição, a proposta de um imposto único, capaz de extinguir a sonegação e a corrupção fiscal, além de tornar impraticável a chamada economia subterrânea, é amostra das alternativas profundamente inovadoras que podem ser tentadas no país, se trata de modernizá-lo realmente e de abrir-lhe caminhos inéditos de desenvolvimento e de justiça social.


Para fazer reformas destas dimensões, para implementar soluções sem precedentes na sua profundidade e abrangência, para encerrar o verdadeiro pesadelo em que se encontra a sociedade brasileira, faltou coragem até agora. Coragem para fazer sacrifícios e distribuílos de forma justa aos vários setores da sociedade. Coragem para enfrentar a miséria, fortalecendo o papel social do Estado. Coragem para propor a reforma da Constituição nos pontos em que é notório seu descompasso com a realidade econômica atual. O país não pode esperar mais. Convive há muito com o desgoverno, com a estagnação, com a crise e com o fracasso. É preciso reagir com audácia e determinação extremas. Não há outra alternativa -exceto a de ver, em meio a uma convulsão econômica sem paralelo, à turbulência política, à miséria e à irrupção de tensões insuportáveis, o fim de qualquer perspectiva de progresso e da democracia para a sociedade brasileira.

 

Folha, 14/01/90

A REVOLUÇÃO TRIBUTÁRIA DO IMPOSTO ÚNICO

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Li, com atenção, o artigo de Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque com sugestiva proposta para a adoção de um imposto único. Sua propositura implicaria a redução do capítulo do sistema tributário a um único artigo e aquele da partição da carga fiscal a outro, na lei suprema.


Entreguei, na semana passada à Saraiva, o primeiro tomo do 6° volume dos "Comentários à Constituição", que estou escrevendo com Celso Bastos. E dedicado aos 12 artigos que compõem o sistema brasileiro (145 a 156), e meus originais foram versados em 1.152 páginas datilografadas. E são comentários singelos.


Compreendo, pois, a angústia de Marcos Cintra ao ver a irracionalidade do sistema nacional, que possui seis impostos sobre a renda e patrimônio e nove impostos sobre transações, além das inúmeras contribuições especiais, taxas, empréstimos compulsórios e algumas contribuições de melhoria adotadas por uns poucos municípios.


O brasileiro, ao adquirir um automóvel, paga quatro automóveis para ficar com um, pois três deles correspondem ao preço dos impostos incidentes diretamente (IPI, ICMS) e indiretamente (IR, IPTU, 11, IOF, ISS e demais espécies), posto que para a empresa ter lucro necessita repassar todos os' tributos que paga, como empresa, para o preço final.


O usuário, por outro lado, sobre ter que recolher o IPV A, sempre que adquirir combustível, pagará ICMS e IVV, além do selo-pedágio e do próprio pedágio, quando viajar, posto que tem este mais característica de taxa que de preço público.


O exemplo demonstra a ir,racionalidade do sistema. Na Europa, há um único imposto sobre circulação (IVA). No Brasil há o IPI, o ICMS, o IVV, o ISS sobre as operações mercantis e de prestação de serviços.


É que o Brasil é uma Federação deformada, com cinco mil "países" independentes e soberanos (União, Estados e municípios), que se dizem apenas autônomos, mas não abrem mão de seus direitos, prerrogativas, além das estruturas políticas e burocráticas, que se alimentam, a rigor, das complicações que criam, não apenas na área tributária, mas em todas aquelas que dependem dos "carimbos oficiais" para que os cidadãos continuem a trabalhar com ônus maior do que o fariam, sem tais avais.


Em outras palavras, o nosso sistema é irracional, porque a nossa Federação é irracional e ela é irracional porque serve muito mais aos políticos e burocratas, que dela vivem, que à nacionalidade à sociedade. Estados existem sem densidade econômica, mas que duplicam ou triplicam sua organização para sustentar a classe dominante. Deveriam ter continuado como territórios, sem Casas Legislativas, judiciais e Executivas próprias, com o que terminariam não empobrecendo a nação, pelos recursos que dela tiram. O mesmo se diga dos municípios.

O ilógico sistema tributário, portanto, é fruto de uma ilógica Federação, visto que seus integrantes não dispensam as receitas diretas que se outorgaram como direito - nenhuma Federação do mundo permite competência impositiva em nível constitucional aos municípios-, com o que a duplicação ou triplicação de tributos sobre o mesmo fato gerador torna-se corolário imposto ao povo brasileiro.


E é em face deste "manicômio tributário", no dizer de Alfredo Augusto Becker, que a proposta de Marcos Cintra é original. Quebra, de uma vez, com um sistema que constitui a suprema realização da burocracia e dos políticos, sobre desmanchar a máquina estatal de forma absoluta.


Na sua proposta, todavia, deveria haver ressalva para as transferências de recursos das contas e para as contas dos próprios titulares, de tal forma que apenas as operações, em que houvesse transferência de titularidade do dinheiro, haveria a tributação.


Não tenho posição definitiva sobre a proposta, apesar de reconhecer seu indiscutível mérito. Quero sobre ela meditar e, principalmente, sobre os impactos nas operações bancárias. O máximo que propus até hoje, em livros e artigos, foi um sistema simples com um imposto sobre a renda, um sobre o patrimônio, um sobre transações e um sobre comércio exterior, com participação da receita entre os entes federativos. No meu sistema reduziria seu número de 15 impostos para quatro. No de Marcos, ele reduziu de 15 para um. É, pois, a dele muito mais ousada que a minha.


Qualquer que seja o resultado do debate que a proposta provocará, um elemento já me parece extremamente positivo. É que realça Marcos Cintra a perversa estrutura do sistema nacional tornando-se mais um aliado na luta por sua mudança.


 

Folha, 21/01/90

IMPOSTO ÚNICO

EDITORIAL

A necessidade de romper com toda uma rotina de timidez, de desgaste e de anacronismo na gestão da economia brasileira, tal como apontava o editorial "Choque de coragem", publicado recentemente na primeira página da Folha, corre o risco de ser interpretada -de tal modo profunda é a tradição acomodatícia e oportunista das elites políticas e sociais brasileiras- como um simples apelo em favor de maior austeridade nos gastos do governo. Não se trata apenas disto: extirpar definitivamente o déficit público exige uma disposição política, uma atitude psicológica de radicalidade absoluta -algo bem mais decisivo, renovador e corajoso do que a simples administração cotidiana do Tesouro.


Neste esforço, nenhuma conciliação poderá ser admitida, nenhum argumento que não considere, com exatidão e ênfase, o estado de emergência em que vive a sociedade brasileira poderá ser aceito. Vencer a ameaça hiperinflacionária é um imperativo que não mais tolera providências ditadas por um aparente espírito de moderação e gradualismo: há um choque psicológico e político a ser feito, custe o que custar.


Tampouco o empenho em realizar este choque imediato -sem o qual nenhum plano de estabilização poderá surtir efeito duradouro- deve ser entendido como um simples esforço contingencial, a ser abandonado tão logo a economia reencontrar condições mínimas de crescimento. Trata-se de ir mais além, discutindo soluções inovadoras para os problemas estruturais do sistema econômico e social brasileiro. Se o esforço antiinflacionário exige, por exemplo, uma recuperação imediata das receitas do governo -contem- plando, assim, a necessidade de um aumento da carga tributária e de ações exemplares contra os sonegadores de impostos-, há que trazer ao debate, por outro lado, modificações mais profundas no próprio sistema de impostos, capazes de extinguir por completo suas conhecidas distorções -cujos exemplos mais flagrantes são, sem dúvida, o fato de os ganhos de capital serem insuficientemente gravados, com o peso relativo dos tributos recaindo sobre a massa dos assalariados, e o problema do crescimento da economia informal, motivado pela extrema complexidade de um sistema fiscal inadministrável na prática.


A proposta lançada pelo economista e diretor da Fundação Getúlio Vargas, Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, em artigo nesta Folha, merece sob este aspecto ser analisada com atenção e sem preconceitos. É, sem dúvida, polêmica; em seus aspectos técnicos e operacionais deve ainda ser objeto de muitos debates e conjeturas. Mas apresenta, pela sua sedutora simplicidade, vantagens claras sobre a atual estrutura, que muitas das críticas que tem recebido não parecem avaliar com precisão.


A idéia pode ser resumida em poucas palavras. Trata-se de extinguir todos os impostos atualmente existentes, substituindo-os por um único tributo. Este incidiria, com uma alíquota única -possivelmente inferior a 2 % - , sobre todas as emissões de cheques e ordens de pagamento. O sistema bancário recolheria esta porcentagem em todos os cheques emitidos, transferindo-a automaticamente para os cofres do governo. As vantagens desse mecanismo não poderiam ser mais claras: instantaneamente, toda a imensa burocracia da arrecadação e da fiscalização dos impostos desapareceria por completo. Desapareceriam, também, todos os encargos e dificuldades que, tanto na vida cotidiana dos cidadãos, como no interior das empresas, estão associados ao trabalho de prestar contas ao fisco: declarações de Imposto de Renda, escrituração das vendas, cuidados no acompanhamento da legislação.


A sonegação fiscal, as tentativas de burla às determinações tributárias, a corrupção de fiscais estariam extirpadas pela raiz. Toda a imensa rede informal de empreendimentos econômicos, formada em função da própria inviabilidade prática que conhecem as pequenas empresas para seguir à risca a miríade de obrigações fiscais, seria de imediato conduzida para o campo da legalidade, sem nenhuma possibilidade de subterfúgio e sem maiores sacrifícios. O alargamento da base tributária, à medida que se incorpore toda a massa da economia subterrânea, que se acabe com toda hipótese de sonegação e de corrupção, permitiria que todos os atuais contribuintes pagassem proporcionalmente menos impostos e dedicassem a atividades produtivas o tempo considerável que hoje é gasto nas relações com a estrutura de arrecadação do Estado.


As críticas que esta proposta tem recebido parecem, em comparação a estes benefícios, singularmente frágeis e inconsistentes. Argumenta-se, por exemplo, que este tipo de imposto seria regressivo: como se trata da mesma alíquota, as grandes e pequenas fortunas, os altos e baixos salários terminariam respondendo de forma igual às exigências do fisco. Há, entretanto, um ponto que esta crítica não leva em conta. O preço dos produtos embutiria, na verdade, o custo de seguidas transações econômicas, à medida que estas mercadorias exigem, para serem fabricadas, componentes diversos, adquiridos de diferentes indústrias ao longo de toda uma cadeia de produção. É este o tipo de produto que entra com maior peso no orçamento das classes mais favorecidas; ainda que, a cada cheque emitido, a alíquota seja baixa, a sucessão de tributos incluída no preço final de um automóvel, por exemplo, seria superior à de um bem de consumo popular.


Lança-se, ainda contra a idéia, o raciocínio de que logo poderia ocorrer a simples extinção do uso de cheques, preferindo-se as transações em moeda, o escambo entre empresas ou o uso do dólar como meio de troca. Para o contribuinte individual, seja a empresa ou a pessoa física, este procedimento teria poucas vantagens. Não há estímulo para sonegar com uma alíquota marginal tão baixa; operações econômicas de grande vulto dificilmente poderiam ser feitas em papel-moeda. As desvantagens, em termos de viabilidade prática e de segurança, acabariam sendo, na verdade, bem maiores do que a economia que se pretendia obter.


Sem dúvida, novos argumentos poderão surgir contra a proposta. Lançada a título polêmico, é natural que seja examinada com cuidado e que se esgotem todas as críticas antes de se partir para sua implementação. Idéias desse gênero merecem, entretanto, ser destacadas pelo potencial de inovação, pelo interesse desburocratizante e renovador que revelam: são exemplo do que se pode fazer quando se procura simplificar de fato a vida econômica do país, romper com a carga burocrática que a sufoca e com a trama de interesses arraigados na falta de sentido prático, no gigantismo e na inviabilidade do sistema estatal. brasileiro.


 

Folha, 28/01/90

POR UMA REVOLUÇÃO TRIBUTÁRIA

EDUARDO CHUAHY

O final do século 20 vem se caracterizando por uma mudança profunda nas estruturas políticas e econômicas que vigoraram desde a 1ª Guerra Mundial. É como se o mundo todo começasse a se preparar para entrar de roupa nova na grande festa que se anuncia para o reveillon do novo século.


Enquanto isso, o Brasil começa essa última década debatendo-se numa avalanche de problemas crescentes, com a economia dando os seus primeiros sinais de desorganização, abrindo caminho para o caos político e social. Os diversos planos econômicos tentados sob a chefia de um governo sem comando não fizeram mais do que nos deixar, a todos, literalmente, em estado de choque.


Pelo andar da carruagem, estamos ameaçados de assistir o baile do século, do lado de fora, em andrajos.


Desde a primeira crise do petróleo, vivemos 17 anos de crises econômicas, ao longo dos quais, as receitas ortodoxas e heterodoxas dos mais renomados economistas só fizeram transferir, para uma data cada vez mais próxima, a explosão inflacionária.


Depois que tantas fórmulas antigas foram experimentadas sem sucesso, não seria o caso de buscarmos algo inteiramente novo para solucionar; esses velhos e persistentes problemas?


Economistas, políticos e empresários das mais diversas tendências ideológicas concordam num ponto: para recuperar as finanças do setor público, para tornar o déficit administrável e permitir que o Estado volte a investir é indispensável realizar uma reforma tributária. Os dados sobre a perda de receita são conhecidos. Basta examinar as contas nacionais, calculadas pelo IBGE, para constatar que a arrecadação total caiu de 25,1 % do PIB no período 1970/79, para 23% em 1980/87 e apenas 20,8% em 1988.


O problema é descobrir os caminhos mais eficazes para realizar essa reforma. As soluções apontadas até aqui passam pelo combate à sonegação, cortes de subsídios e incentivos, tributação dos ganhos de capital e elevação das alíquotas dos impostos já existentes. Ao que tudo indica, porém, é preciso ser mais ousado, criativo e objetivo para se realizar uma verdadeira revolução fiscal, pois as propostas já apresentadas representam apenas um remendo em relação à situação atual.


Nesse sentido, a tese mais avançada defendida até aqui partiu do economista Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, diretor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Ele propõe a adoção do Imposto Único sobre Transações e a eliminação de todos os demais impostos. Do que se trata? Explica o autor da proposta: "A cada transação, a conta credora e a conta devedora seriam debitadas em um percentual fixo do valor da transação. Assim, a cada transação efetuada mediante cheques ou qualquer outro tipo de ordem de pagamento, o sistema automaticamente transferirá o produto de arrecadação à conta dos Tesouros federal, estaduais e municipais, segundo critérios predefinidos".


Levando-se em conta o volume de transações realizadas na economia brasileira, para que o governo -em todos os níveis- arrecadasse cerca de 25% do PIB bastaria que a alíquota do Imposto Único sobre Transações fosse de apenas 2%. Metade seria paga pela parte credora e metade pela parte devedora. Para evitar que as transações realizadas em moeda ficassem isentas da tributação, todo saque ou depósito de moeda circulante poderia ser taxado de acordo com uma alíquota que reproduza em média o número de transações que se realiza com moeda até seu retorno ao sistema bancário. O recomendável é que essa alíquota seja o dobro da alíquota geral, ou seja, 4%.


As vantagens da criação do imposto único são enormes: simplificação tributária, combate à sonegação, redução de custos para as empresas, queda dos custos de arrecadação por parte do setor público e critérios mais transparentes de taxação. A multiplicidade de obrigações fiscais inferniza a vida dos contribuintes e obriga o governo federal, os Estados e municípios a disporem de batalhões de fiscais, com uma complicada estrutura burocrática, cuja manutenção corresponde a pelo menos 10% da arrecadação, de acordo com as estimativas mais conservadoras.


Uma das maiores vantagens do imposto único é que a alíquota não passa de 1% em cada transação, o que torna a tributação perfeitamente aceitável -suave até-, desestimulando a sonegação. Além disso, o novo imposto passaria a tributar não apenas as atividades ligadas à geração de riquezas, mas também as que impliquem mera transferência de ativos. Assim, as operações financeiras e de capital deixariam de ser subtributadas, como acontece atualmente. Por outro lado, ele deverá incorporar à arrecadação toda a massa de economia subterrânea que é hoje estimada em 30% do PIB.


Outro ponto importante a assinalar na proposta do economista Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque é que, como se trata de um imposto em cascata, os bens mais sofisticados, que passam por processos mais elaborados de fabricação, serão mais taxados que os produtos da cesta básica. Assim, o imposto obedece ao critério da progressividade -o que significa atrelar o sistema tributário aos parâmetros da justiça social. Possivelmente, ao final de sua implantação, todos pagarão menos e o Estado arrecadará mais.


Enfim, as enormes vantagens associadas à adoção do imposto único recomendam que o assunto seja debatido em profundidade. Em especial pelo Congresso Nacional, a quem caberia a decisão de aprovar essa verdadeira revolução tributária que parece ter a simplicidade do ovo de Colombo. Neste momento em que o Brasil busca caminhos para reordenar sua economia e resolver a aguda crise financeira do setor público, o imposto único pode ser a luz no fim do túnel... Que desembocará -quem sabe?- no tão esperado país do futuro.

 

Jornal do Brasil, 02/02/90

POR QUE O IMPOSTO ÚNICO NÃO É SOLUÇÃO

CLOVIS P ANZARINI

À época da propaganda eleitoral gratuita, surpreendi-me com a proposta de um candidato à Presidência da República, no sentido de criar um imposto único no Brasil. Tentei imaginar qual seria o fato gerador de tão exótico imposto, apregoado como a panacéia para todos os males do país; qual seria sua alíquota; como seria rateado o produto de sua arrecadação entre as três esferas de governo e, mais importante, como seriam repartidos os quinhões estadual e municipal entre os seus partícipes. Afinal, seria ingênuo imaginar que a receita viesse a ser rateada na proporção da arrecadação verificada em cada território, pois os Estados da região Sudeste absorveriam a quase totalidade dos recursos e os demais Estados quebrariam. Definir o critério de rateio desse tributo significaria, portanto, definir o tamanho do orçamento de cada Estado e de cada município e, por via de conseqüência, o volume de serviços e obras públicas a que cada coletividade teria direito em cada período orçamentário. Governar seria, então, meramente priorizar as aplicações desses recursos, previamente definidos exogenamente.


Quem definiria tal critério? Seria o Congresso Nacional? Aqueles que acompanharam a elaboração do sistema tributário na Assembléia Nacional Constituinte puderam assistir de perto o milagre operado pelo conflito distributivo regional. Puderam ver, estupefatos, marcharem, lado a lado, radicais. de esquerda e representantes da mais conservadora oligarquia, na justa defesa de fatia tributária mais relevante para os Estados menos desenvolvidos. "Duzentos e noventa e dois votos e uma só vontade" diziam os cartazes que faziam pano de fundo nas paredes do Congresso Nacional, lembrando que as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, unidas, detêm maioria absoluta no Congresso Nacional, e fazendo velada ameaça a uma ruptura nas relações Norte-Sul.


E a parcela de cada uma das quase cinco mil prefeituras existentes no Brasil? Seria definida por lei federal ou arbitrariamente fixada por algum burocrata de plantão no Planalto Central? As demandas locais de bens públicos seriam respeitadas? Desvincular-seiam os direitos do eleitor-cidadão dos deveres do cidadão-contribuinte? O sistema federativo continuaria a existir ou os governadores e prefeitos passariam a ser nomeados por Brasília para administrar esses exóticos fundos? Enfim, nunca imaginei que essa proposta viesse um dia a ser levada a sério.


Entretanto, o assunto novamente volta à discussão e assusto-me agora com a envergadura intelectual e seriedade de seu novo defensor. Assusto-me mais ainda porque instituições e tributaristas acima de qualquer suspeita saem em defesa incondicional desse modelo que, só pelo conflito distributivo regional acima apontado, liquidaria com o sistema federativo, colocaria em risco as instituições democráticas e, provavelmente, conduziria o país - a um conflito regional de proporções inimagináveis.


Mas, além desse problema de distribuição entre níveis de governo e entre regiões, permito-me enumerar mais alguns entraves para a adoção desse modelo.


1. Esse tributo teria característica de incidência em cascata, gravando simultaneamente o valor bruto da produção, a renda nacional, a despesa interna bruta e as transferências entre as entidades do sistema econômico. O volume de arrecadação dependeria mais do rearranjo do sistema produtivo que esse tipo de imposto provocaria do que propriamente das alíquotas fixadas em lei. Tributo em cascata induz à integração vertical da economia com indesejável perda de eficiência. Por exemplo, a incorporação de uma indústria de pneumáticos por uma montadora de automóveis significaria evasão tributária de alguns milhões de dólares por ano.

2. O imposto teria a função única de prover o setor público dos recursos necessários ao financiamento dos bens públicos demandados pela sociedade. O governo perderia importantes comandos de caráter distributivo e de estabilização.

3. O imposto em cascata não permite a desoneração tributária plena, quando necessária. A exportação de produtos manufaturados no Brasil, por exemplo, só começou a ganhar importância a partir da reforma tributária de 1967, quando a instituição de impostos do tipo valor adicionado (IPI e ICM) permitiu a isenção plena nas saídas de mercado- rias para o exterior, dando-lhes condições de competitividade no mercado internacional. Por outro lado, esse imposto, como concebido, teria o efeito perverso de tributar menos fortemente os bens importados que os nacionais, uma vez que aqueles sofreriam uma ou no máximo duas incidências, enquanto que os nacionais sofreriam a tributação em cascata: o minério de ferro, por exemplo, desde a saída da mina até a chegada ao consumidor final, na forma de um paralama de automóvel, seria tributado seis ou sete vezes. Como se vê, esse imposto mágico, além de implodir a balança comercial, destroçaria o parque industrial brasileiro.

4. Inúmeras distorções de ordem distributiva poderiam ser apontadas. O leite, por exemplo, teria carga tributária igual ou maior que a do cigarro; a pensão recebida por uma viúva, carga idêntica aos dividendos percebidos pelo magnata. Por fim, não se pode negar que o sistema de imposto único tem suas vantagens em relação ao sistema tributário atual. Desburocratizar enormemente os controles fiscais e reduziria tanto a sonegação quanto a corrupção. Mas, a sua implementação equivaleria a “atear fogo na casa para assar o leitão”.

 

Folha, 10/02/90

O "FALSO" MILAGRE DO IMPOSTO ÚNICO

FERNANDO REZENDE

Há muito que o sistema tributário brasileiro padece de graves enfermidades que debilitam a receita governamental e atormentam a vida dos contribuintes sem que tenha sido possível adotar a medicação conhecida para resolver os ,: seguintes problemas: como evitar que sejam aumentadas as injustiças que caracterizam o sistema tributário brasileiro? Como fazer com que o aumento da arrecadação seja alcançado mediante a melhoria na eficiência dos mecanismos de controle e fiscalização de molde a eliminar a sonegação e combater a evasão fiscal? Como mobilizar apoio político suficiente para que o aumento da arrecadação seja alcançado pela erradicação dos privilégios e pela redução dos incentivos e outras modalidades de favorecimento fiscal?


O professor Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque anuncia, agora, um remédio milagroso. Em artigo publicado na Folha, em 14 de janeiro: de 1990, ele propõe uma revolução tributária capaz de resolver, de um só golpe, todos os conflitos que marcam as complexas relações Estado-contribuinte e que não tiveram solução ao longo dos últimos 200 anos. Por que não substituir as inúmeras formas de tributação. existentes no Brasil -diz ele- por um único imposto: O Imposto Único sobre Transações? Afinal, a cobrança de muitos impostos (federais, estaduais e municipais) complica a vida dos contribuintes, dificulta a tarefa dos administradores e torna mais difícil avaliar a efetiva repartição do ônus tributário e o grau de injustiça do sistema. O imposto único reduziria os custos da arrecadação como os custos privados relacionados ao cumprimento das obrigações fiscais. Simples, não? Por que; então, solução tão milagrosa nunca foi aplicada? Indagado a respeito, o professor Marcos Cintra responde que a implantação desse imposto não poderia ter sido feita antes porque ela depende da 1nformatização do sistema bancário. Será que o Brasil é o primeiro país a preencher esse requisito?


Para que se opere o milagre não é preciso invocar nenhum poder sobrenatural, basta adotar como base única da tributação as transações monetárias. O imposto único seria aplicado toda vez que fossem realizados pagamentos, cobrado sobre o valor da transação e repartido, eqüitativamente, entre as duas partes envolvidas. A arrecadação seria feita automaticamente a cada lançamento de débito e de crédito no sistema bancário, uma vez que as contas credoras e devedoras seriam debitadas em um percentual fixo do valor da transação, seja ela efetuada mediante cheque ou outro tipo de ordem de pagamento. Assim, o sistema bancário poderia transferir automaticamente o. montante arrecadado para os cofres federal, estaduais e municipais, segundo critérios a serem estabelecidos.


Para o autor, o paraíso fiscal do imposto único traria ainda outras vantagens: ficaria impraticável qualquer tentativa de sonegação, pois bastaria fiscalizar a compensação bancária; a alíquota do imposto poderá ser baixa, o que também desincentivaria a sonegação; seriam também tributadas as transações especulativas e financeiras; ficaria garantida a progressividade na distribuição do ônus tributário.


A tese básica é a de que, por incidir sobre o valor total das transações bancárias, a alíquota do impo.)to poderá ser baixa: uma alíquota de 2% seria suficiente, conforme estimativa do autor, para gerar uma receita de 25% do PIB. Como explicar um resultado tão surpreendente quando a arrecadação de todos os impostos federais, estaduais e municipais hoje existentes não chega a alcançar a cifra equivalente a 20% do PIB? Mágica? Não. O fantástico volume de transações bancárias que permite multiplicar a arrecadação com uma alíquota tão baixa deve-se à frenética especulação financeira que eleva o volume de transações no sistema bancário muito além do que seria necessário para sustentar o valor real dos negócios. Ou seja, a alíquota é baixa porque as transações diárias de caráter especulativo são freqüentes, inchando, artificialmente, a base do imposto sugerido. Vale a pena lembrar que a aplicação de uma alíquota de 1,2 % sobre o faturamento de todas as vendas de mercadorias e serviços no país -alíquota correspondente ao Finsocial- produz uma receita de apenas 1,5% do PIB. Mesmo que a sonegação do Finsocial seja elevada, (alguns a estimam em 50 %) é fácil ver que a receita a ser obtida com o imposto único de 2 % sobre pagamentos referentes a transações de compra e venda de mercadorias e. serviços dificilmente ultrapassaria a casa dos 5 % do PIB.


À primeira vista parece uma solução genial. Apenas um quinto da arrecadação prevista seria proveniente do setor produtivo. As transações de caráter especulativo no sistema financeiro arcariam com o ônus mais elevado: quatro quintos da arrecadação. Uma reflexão mais cuidadosa, no entanto, põe a nu a fragilidade da proposta. O sistema tributário giraria em torno da especulação financeira que por sua vez é sustentada pelo próprio Estado. É o cachorro -ou melhor, o leão- mordendo o próprio rabo. A tese do imposto único, tal como proposta só sobrevive nas trevas do overnight. Exposta à luz do dia ela perde toda a aparência de vitalidade e consistência.


A afirmação de que o imposto único aplicado a transações com mercadorias e serviços garante progressividade ao sistema tributário também é facilmente contestada. Esse imposto tem as mesmas características do Finsocial (um imposto em cascata, com alíquota uniforme aplicada ao faturamento das empresas) que é unanimemente apontado pelos especialistas como o mais perverso dentre os impostos que compõem o sistema tributário brasileiro. O argumento defendido baseia-se na suposição de que os produtos supérfluos envolvem um maior número de transações que os essenciais e' suportarão, portanto, uma carga tributária mais elevada, Mesmo que isso fosse verdadeiro, as diferenças de carga tributária seriam insignificantes dado o baixo valor da alíquota e, portanto, incapazes de dar conta das enormes diferenças na distribuição da renda nacional (caso as diferenças de carga tributária o justificassem, a integração vertical da produção de bens supérfluos se encarregaria de eliminar as alegadas características de progressividade do imposto).


Outros fatores ainda concorreriam para agravar a injustiça. O autor argumenta que a sonegação só seria possível quando as transações fossem efetuadas em moeda (ou por escambo) passando ao largo da compensação bancária. Como o acesso à conta bancária e ao cheque pressupõe o preenchimento de alguns requisitos (estabilidade no emprego e nível de renda, por exemplo) boa parte da população brasileira -os 30 % mais pobres- já estariam previamente condenados ao sacrifício. Eles teriam que arcar com uma alíquota duas vezes mais elevada, que corresponde ao desincentivo criado para desestimular as transações em dinheiro. Mesmo os trabalhadores mais felizardos -aqueles aquinhoados com uma conta bancária- dificilmente escapariam ao pagamento da alíquota duplicada. É fácil imaginar que as regras propostas estimulem o comércio a rejeitar cheques nas vendas ao consumidor, principalmente quando se tratar de mercadorias de primeira necessidade e de menor valor. Isto porque o vendedor não sofreria o desconto de 1% na compensação bancária enquanto o comprador teria que pagar duas vezes mais a cada saque que efetuasse na sua conta para comprar as mercadorias que necessita. O lucro do comerciante seria totalmente isento do imposto que seria inteiramente repassado para o consumidor.


Nas transações entre empresas, o sistema do imposto único estimularia o subfaturamento generalizado e desestimularia a intermediação financeira, Não havendo registros contábeis nem a necessidade de comprovar a origem do rendimento para explicar o acréscimo patrimonial, a intermediação financeira doméstica ficaria ameaçada pelas vantagens não-tributárias concedidas à transformação dos excedentes financeiros em dólar, ouro ou depósitos bancários no exterior. Não só a sonegação pode atingir níveis elevados, como também os riscos envolvidos são muito maiores do que os que se relacionam diretamente com o não-pagamento das obrigações tributárias. Desde os primórdios da humanidade, os governantes estão à busca de um imposto que tome impraticável a sonegação. Assim como o moto-perpétuo ele provavelmente nunca será inventado.


Nada foi dito sobre as conseqüências da adoção do imposto único do ponto de vista das necessidades de estímulo à exportação. Nesse caso, todos os ganhos obtidos no passado no sentido de isentar as exportações da incidência de impostos domésticos seriam cancelados. Não haveria meio de isentar o produto exportado do imposto pago nas etapas anteriores do processo de produção e circulação de mercadorias, posto que regrediríamos à idade da tributação em cascata -um lamentável retrocesso. Não só o produto seria onerado: pelas regras sugeridas, as operações internas de financiamento à exportação também seriam tributadas, contrariando as propostas de estimular a liberalização do comércio e a integração do Brasil ao mercado internacional.


Causa espanto o eco provocado pela proposta de criação do imposto único. O editorial da Folha do mesmo dia a incluiu como uma das alternativas inovadoras que devem ser tentadas para que os objetivos de modernização do país possam ser alcançados. De modo geral, parece haver uma clara simpatia pela proposta. É preciso cautela, no entanto, para evitar maiores estragos no já combalido sistema tributário brasileiro, severamente castigado por uma enxurrada de mudanças casuísticas nos últimos anos. A reforma do sistema tributário aprovada pela Constituição de 1988 não criou o sistema tributário dos nossos sonhos mas lançou as bases para o seu progressivo aperfeiçoamento, nos limites dados pela realidade brasileira. A consolidação desses avanços dependerá da regulamentação dos dispositivos constitucionais que deverá beneficiar-se do debate e da discussão de idéias inovadoras.


A proposta do professor Marcos Cintra tem a marca da ousadia que estimula a polêmica e contribui para o desenvolvimento dos argumentos necessários ao fortalecimento de princípios e convicções. Nesse sentido, ela é extrema mente bem-vinda.


 

Folha, 12/02/90

VAMOS AO ATO DE CORAGEM!

JORGE KONDER BORNHAUSEN

No dia 14 de janeiro último, a Folha publicou um artigo do economista Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque intitulado "Por uma revolução tributária" e, no mesmo dia, um extenso editorial, "Choque de coragem", contendo uma ousada proposta de reforma tributária, com base na análise feita por aquele economista. Não posso deixar de me pronunciar sobre os dois documentos, embora com algum atraso, já que me encontrava nos Estados Unidos quando da sua publicação.


Marcos Cintra sugere uma medeia radical: ele pretende reduzir todos os impostos a um único tributo, o qual incidiria sobre todas as transações monetárias. Toda a nossa complicadíssima estrutura fiscal seria substituída por um único mecanismo simples, compreensível e transparente para o público, Os tributos teriam uma base só e não múltiplas bases. Haveria, assim, uma verdadeira racionalização de todo o processo de ação fisco, com o que se reduziria drasticamente o custo do sistema de cobrança dos tributos.


Atualmente, os custo de fiscalização e de arrecadação fiscal chegam a cerca de 10% das receitas tributárias. Somando-se a estes custos os da escrituração tributária, a que estão sujeitos os agentes privados, poderíamos chegar, segundo Cintra, a 15% ou 20% das receitas de impostos no país.


É esse peso morto que o articulista pretende tirar de cima do país, fazendo com que seja possível liberar recursos reais avaliados em 4,4% do PIB, recursos que poderiam ser destinados a investimentos produtivos, para a criação de riquezas e de empregos em ampla escala.


Coube à Folha transformar a sugestão do economista num desafio a todos os que têm a preocupação de dar um novo impulso modernizante e democratizante ao Brasil, particularmente os governantes e os representantes do povo, para não falar dos líderes dos diversos segmentos sociais.


Parece-me evidente que a idéia de um novo sistema tributário, que venha a melhorar substancialmente o funcionamento da máquina estatal, tornando-a, a um só tempo, mais ágil, mais eficiente e menos onerosa para a nação, deve merecer, o exame atento de todas as pessoas, com alguma parcela de responsabilidade na condução dos negócios públicos.


Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque é um técnico de alto gabarito, com uma postura liberal moderna formalmente assumida. O seu enfoque das questões econômicas e sociais está em consonância com as tendências atuais do mundo avançado, segundo as quais não é através da hipertrofia crescente do Estado, mas do estímulo crescente à iniciativa dos cidadãos, que vamos melhorar o padrão de vida do povo.


Parece-me que a análise do economista e o desafio da Folha terão de ser estudados. Há dúvidas a esclarecer, tanto de natureza técnica, {quanto a números e meios práticos ,de implementação do novo, imposto), como na avaliação do conteúdo social dos tributos (não seria preciso preservar, de alguma forma, o imposto por excelência da cidadania, o Imposto de Renda?).


Mas tudo isso já é parte do debate que deve ser travado no país sobre o seu destino. O importante é que estamos diante de um desafio inarredável para que possamos romper as amarras do Brasil arcaico. Somente isso já basta para suscitar o nosso aplauso e o nosso entusiasmo. Vamos ao ato de coragem!


 

Folha, 16/02/90

RESPOSTA A ALGUMAS CRÍTICAS AO IMPOSTO ÚNICO

MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE

Em artigo publicado no dia 14 de janeiro nesta Folha propus para debate uma revolução tributária no Brasil, com a adoção do Imposto Único sobre Transações (IUT).


Em linhas gerais, o IUT prevê a substituição de todos os impostos e demais exigências fiscais por apenas um imposto incidente sobre todas as transações monetárias, sem exceções. O fato gerador deste tributo seria a transação consumada no sistema bancário. Documentos como cheques, ordens de pagamento, avisos de débito ou crédito etc. automaticamente detonariam a cobrança de 1% de ,cada parte da transação, o que implicaria a neutralidade da proposta em termos de arrecadação bruta -cerca de 25% do PIB. A única alíquota diferenciada -propõe-se o dobro da alíquota geral- se aplicaria a saques e depósitos de numerário do sistema bancário, com o objetivo de desestimular as transações em dinheiro. O produto da arrecadação seria instantaneamente transferido para os vários níveis de governo, segundo critérios de rateio previamente definidos.


Esta forma de tributação tem várias vantagens. Pratica- mente elimina a sonegação, a corrupção e a economia informal, já que toda a arrecadação ocorreria no circuito bancário, onde a fiscalização pode ser fácil e barata. Ao ampliar enormemente o número de contribuintes, torna-se possível uma redução sensível da incidência nos segmentos que hoje arcam com o grosso da tributação no Brasil, fundamentalmente o assalariado e parte das empresas organizadas.


Também no setor privado ocorreriam enormes reduções de custos administrativos, pois toda a atual escrituração fiscal seria abolida, juntamente com a extinção de maior parte dos impostos e contribuições fiscais como o IR, IPI, ICMS, ISS, lapas, retenções na fonte e toda a parafernália de exigências que segundo o jurista Ives Gandra da Silva Martins supera, no Brasil, a absurda soma de 50 tipos de tributos.


As críticas de Panzarini e de Rezende

Antes de passarmos a novas análises sobre o IUT, serão abordadas algumas críticas levantadas recentemente nesta Folha.


Espantei-me com a surpresa de Panzarini, ao indicar que tomou contato com a proposta de um imposto único no horário eleitoral gratuito. Causa pasmo que um conceito que vem sendo discutido na literatura econômica há alguns séculos, apenas tenha chegado ao conhecimento do articulista naquela forma.


Quanto ao argumento de que a definição dos critérios de rateio da arrecadação do IUT entre os três níveis de governo poderia levar o país a "um conflito regional de proporções inimagináveis" (sic), cabe lembrar que a repartição da receita tributária no Brasil não é nova, tendo sido tratada inúmeras vezes no Congresso Nacional (vide, por exemplo, artigos 157 a 162 da nova Constituição), sem que tenhamos tido qualquer guerra de secessão entre nós. Panzarini lamenta a perda de tributos com características extrafiscais. Também eu lamentaria, daí ter deixado aberta a porta para casos excepcionais -que esperaria serem muito poucos- como o caso do Imposto de Importação, cuja finalidade não é fiscal, mas sim de proteção à indústria nacional. Também o ITR progressivo sobre terras improdutoras poderia ser defendido como mecanismo de incorpora- o de áreas ociosas ao ciclo produtivo.


Rezende, cuja crítica é mais consistente, porém, não menos preconceituosa, se coloca como um ardente defensor do status quo. Parece posicionar-se contra a busca de soluções que caminhem no sentido de aperfeiçoar o sistema tributário brasileiro pelo simples fato de que "os conflitos te marcam as complexas relações Estado-contribuinte não eram solução ao longo dos últimos 200 anos" (sic). Cabe indagar se isto justificaria renegar mudanças, aceitar o que existe e abafar a tentação (condenável?) de inovar. Provavelmente ainda teríamos rodas quadradas, se dependesse de meu crítico. Trata-se da mesma atitude insólita dos que indagam "se a ideia é tão boa porque não foi jamais utilizada em outros lugares até hoje?", como de fato Rezende questiona.


Ainda no rol de questões perfunctórias, Rezende pergunta onde vem a economia de recursos reais que o IUT acarretaria e avaliada em meu artigo em 4,4% do PIB. A resposta acha-se no próprio texto. Redução de custos administrativos, privados e públicos, de 20% da arrecadação estimada em 22% do PIB. Simples aritmética explica o aparentemente "misterioso" -mas não menos impressionante- número.


Afirma Rezende que os especialistas dizem que os impostos em cascata -e imagino que poderíamos estender esta crítica aos impostos indiretos- são perversos. Ora, argumentos de autoridade perderam qualquer respeito na comunidade científica. Pessoalmente acredito que estes dogmas devam ser questionados, e que estejam surgindo novas justificativas para uso crescente da tributação indireta, e mesmo em cascata.


Igualmente injustificável, para quem deseja criticar, é o pouco entendimento da proposta, refletido nos comentários de Rezende sobre o impacto da tributação dobrada incidente nos saques e nos depósitos de moeda do sistema bancário. Diz ele que a sonegação seria elevada, pois haveria estímulo para "o comércio rejeitar cheques nas vendas ao consumidor..." (sic). Não há razão para esta afirmação. Pelo contrário, a penalidade tributária seria aplicada tanto no saque quanto no depósito de numerário no sistema bancário. Assim, o comerciante que aceitar pagamentos em dinheiro arcaria com elevação de tributos no momento em que os depositasse em sua conta bancária.


A alternativa seria a manutenção dos recursos em moeda corrente, com todas as desvantagens e riscos que, desde a invenção dos bancos, os agentes econômicos já aprenderam a evitar. O mais provável é que nas transações pagas em dinheiro o vendedor exija do comprador um ágio equivalente à elevação dos encargos tributários que a transação em moeda irá implicar, a mesma forma que hoje se faz com compras financiadas com cartão de crédito, relativamente aos pagamentos à vista. Pode-se prever que apenas pequenas operações no dia-a-dia sejam pagas em dinheiro, mesmo que isto implique um ágio para o comprador.


Em realidade, os agentes econômicos passarão a avaliar a diferença nos custos de transação com moeda relativamente ao pagamento em cheque. Como este último implica um custo fixo, as transações que envolvam pequenos valores poderão continuar a ser feitas em moeda, sem que isto signifique qualquer artifício significativo de contornar a tributação do IUT. Quanto às que ultrapassem o limiar determinado pela comparação do acréscimo tributário versus o acréscimo no custo de transação, certamente continuarão a ser feitas pelo sistema bancário, pois a economia tributária será mínima (1% da transação), ao passo que os riscos e custos crescentes da monetização certamente serão bastante mais elevados. Provavelmente o IUT estimularia significativamente o uso do cheque -que já é a forma preponderante de pagamento-, bem como a prática saudável dos bancos cobrarem taxas por serviços prestados, em vez de auferirem seus ganhos por meio do "float", como ocorre hoje.


Rezende prossegue em suas críticas do subfaturamento que seria incentivado pelo IUT. Diz ainda que a intermediação financeira seria desestimulada, pois "não havendo registros contábeis nem a necessidade de comprovar a origem do rendimento para explicar o acréscimo patrimonial, a intermediação financeira doméstica ficaria ameaçada pelas vantagens não-tributárias concedidas à transformação dos excedentes financeiros em dólar, ouro, ou depósitos bancários no exterior" (sic).


Vale notar que para Rezende a inexistência de comprovação de bens, registros fiscais etc. é uma falha, ao passo que para os que defendem o IUT trata-se de uma das principais vantagens da proposta. De fato, não caberá mais ao fisco exigir comprovação de nada, já que todas as transações serão taxadas no sistema bancário, único local onde se fará a fiscalização. Se há ilegalidade envolvida, a investigação e punição caberá ao Banco Central e à polícia, não ao fisco.


Quanto ao subfaturamento que, segundo Rezende, poderá ser incrementado, cabe apenas apontar que este conceito desaparecerá com a vigência do IUT. O subfaturamento não é um desconto, mas sim uma transação com parte do pagamento ocultado. Porém sempre realizado. Na medida em que apagamento "oculto" se realize, com dinheiro ou com cheque, será alcançado. pela tributação. E como apontamos anteriormente, o pagamento com dólares, contas no exterior ou outros meios ilegais acabará acarretando um acréscimo nos custos de transação que não será compensado pelo produto e pelos riscos da sonegação.


Caberia lembrar ainda que, se na vigência do IUT houver vantagens para sonegar, como as descritas pelo articulista, mais fortes ainda devem ser hoje, pois o tributo que economizariam na vigência do IUT é de apenas 2 %, ao passo que hoje é algumas vezes mais elevado. Portanto, comparativamente ao atual sistema tributário, o IUT deverá reduzir sensivelmente a prática de transações em moeda estrangeira, em contas correntes no exterior ou transformação de excedentes em ouro ou dólar.


Rezende alerta os defensores do IUT acerca do excessivo otimismo implícito na estimativa de que com uma alíquota de 2 % sobre o volume de transações se torne possível uma arrecadação bruta equivalente a 25% do PIB. Afirma ainda que isto apenas se tornaria possível devido à "frenética especulação financeira que eleva o volume das transações do sistema bancário muito além do que seria necessário para sustentar o valor real dos negócios" (sic). Em seguida, utiliza dados referentes à atual contribuição do Finsocial para concluir que o setor produtivo contribuiria com apenas 20% da arrecadação projetada.


Esta questão extrapola a argumentação conceitual apresentada na proposta, e remete a discussão para uma avaliação empírica de abrangência do IUT. As estimativas preliminares que consubstanciaram a proposta acham-se fundamentadas na necessidade de uma relação “volume de transações/valor do PIB” de 12,5. Neste caso, o produto da arrecadação equivaleria aos 25% do PIB oficial de hoje mencionado na proposta.


Inicialmente cabe apontar que o exercício apresentado por Rezende comete uma impropriedade ao igualar o conceito de faturamento (= Valor Bruto da Produção) com o conceito de transação. Este último é mais amplo que o VBP, pois incorpora, além do faturamento, o volume das transações intermediárias referentes ao valor adicionado em cada etapa de produção abatido do "mark-up" do produtor (visto que este não é objeto de transação intermediária).


Fazendo-se esta correção, que implica acrescentar ao VBP os valores correspondentes à participação da massa de salários, dos aluguéis e dos juros na atividade produtiva, chegase a uma estimativa da relação “volume de transações produtivas/PIB” à qual devem-se acrescentar os valores correspondentes ao mercado de ativos patrimoniais -como o mercado imobiliário, Bolsas de Valores, mercado de veículos usados etc. Feitos esses ajustes, chegase a uma relação próxima de 5. Neste caso, abstendo-se totalmente do mercado financeiro onde se acha a "frenética especulação" (sic)- o mercado "real" geraria receita próxima de 10% do PIB.


Os 7,5 restantes para que cheguemos à relação necessária de 12,5 serão gerados no mercado financeiro. Cabe apontar que este mercado inclui transações não-especulativas como as cadernetas de poupança e as linhas de crédito ao consumidor e à produção. Se considerarmos que as operações especulativas são as do overnight -com giro diário no sistema financeiro- é fácil perceber que a relação "transações do over/PIB" de muito ultrapassará o valor necessário. Em realidade, e aqui concordamos com Rezende, a especulação financeira hoje faz com que este valor chegue próximo a 50.


Fica claro, portanto, que as estimativas apresentadas na proposta do IUT em nada dependem da manutenção da desenfreada especulação do overnight. Em realidade, está implícita na proposta uma dramática redução nesta especulação, o que fará com que o giro naqueles mercados sejam reduzidos de 50 para cerca de 7 vezes o valor anual do PIB.


Apenas para efeito de comparação, vale lembrar que estimativas para a economia norte-americana -onde certamente existe especulação, porém, não frenética como no Brasil- indicam uma relação transações/PIB equivalente a 60. Para o Brasil, estamos aceitando como hipótese de trabalho uma relação de 12,5. É importante ressaltar que a preocupação de Rezende ao levantar esta questão é absolutamente legítima, mas que se trata de preocupação empírica a ser resolvida com maior exatidão oportunamente.


Tanto Rezende como Panzarini levantam duas outras questões. Uma se refere à equidade do IUT. Certamente os produtos consumidos pelas classes de renda mais elevada o que não significa necessariamente que sejam supérfluos, como afirma Rezende- tenderão a embutir uma carga tributária mais elevada em função de uma cadeia de produção mais longa. Assim, na média, a incidência do IUT tenderá a ser progressiva, embora na margem seja proporcional.


Em essência a desejada equidade fiscal implica uma intenção redistributiva de renda por parte do governo. Este objetivo pode ser alcançado pelos dois termos da equação fiscal, ou seja, pela receita e/ou pela despesa. O que deve ser enfatizado é que o IUT implica, de fato, uma imprescindível rigidez no lado da receita. Mas, caso as metas redistributivas não sejam totalmente alcançadas por este ângulo, ainda resta aos governantes o instrumento oferecido pela alocação dos recursos tributários agindo pelo lado das despesas.


O poder público poderá alcançar as metas redistributivas de forma explícita, e mais transparente, mediante o uso de subsídios e outros tipos de transferências, minimizando-se o recurso a instrumentos de renúncia fiscal, focos notórios de abusos e de privilégios velados. Esta mesma argumentação, por sinal, responderia às preocupações dos críticos no tocante à desafetação fiscal nas exportações.


Finalmente, Rezende e Panzarini apontam os riscos de um indesejável processo de integração vertical da produção, com o objetivo de economizar impostos. Não há porque imaginar que isto ocorra com intensidade maior do que já se verifica hoje. A integração, além do que seria recomendável do ponto de vista econômico/tecnológico, envolve custos que facilmente superarão os seus benefícios. Afinal, a cada etapa de integração se estará reduzindo o custo tributário em apenas 2%, comparativamente à especialização. Além disso, a tendência moderna dos métodos de produção caminha no sentido inverso, ou seja, o de uma maior especialização, o que apenas aumentaria o custo de oportunidade da integração.


O IUT no mercado financeiro.

O mercado financeiro será responsável, segundo nossas estimativas, por aproximadamente 50% ou 60% da arrecadação prevista. A aplicação do IUT implicará uma forçosa ampliação de prazos, pois a alíquota única de 2 % incidente sobre cada operação fará com que o giro rápido de capitais reduza sensivelmente a rentabilidade daquelas aplicações. Por exemplo, para que uma aplicação financeira renda liquidamente ao investidor 6% reais ao ano, a taxa de juros reais bruta teria de ser de 36% para um prazo de 90 dias. Contudo, com a ampliação dos prazos, a taxa bruta poderia ser significativamente reduzida. Para prazos de aplicação de 180 dias, ela poderia cair para 18%, e para cerca de 9% para aplicações de 360 dias.


Em outras palavras, as aplicações de curto prazo envolveriam alto ônus tributário. Contudo, os aplicadores poderiam legitimamente reduzir esta carga mediante uma ampliação de prazos. Cabe lembrar que se discute no momento a introdução de uma estrutura tributária capaz de alongar prazos. Pois o IUT obtém exatamente este efeito.


Outro subproduto do IUT, interessante do ponto de vista conjuntural, se refere à eliminação da corrosão das receitas públicas pela defasagem entre a ocorrência do fato gerador e o recolhimento dos tributos aos cofres públicos -o chamado efeito Tanzi. O IUT é um tributo perfeitamente indexado, pois incide sobre o valor corrente das transações, e seu recolhimento ocorre simultaneamente à compensação bancária. Assim, elimina-se o risco de que a aceleração inflacionária acarrete pressões fiscais.


Finalmente, algumas considerações sobre a forma de implantação do IUT. Certamente não se poderia subitamente decretar a eliminação dos impostos hoje existentes e sua substituição pelo novo tributo. Apesar das estimativas de arrecadação apresentadas é forçoso reconhecer que se trata de uma sistemática de tributação ainda nova. A inovação abrange até mesmo as categorias analíticas relevantes. No caso, o volume de transações e sua distribuição setorial não é um dado formalmente coletado pelos institutos oficiais de estatística. Daí a dificuldade de implantação brusca do IUT.


Uma alternativa seria sua implantação por partes. Inicialmente poderia se instituir o IUT apenas no mercado financeiro. Seria importante teste para verificação de receita potencial, além de levar ao desejado alongamento de prazos e ao aumento de arrecadação para se efetuar o necessário ajuste fiscal.


Outro caminho seria a implementação total do IUT, porém com uma alíquota apenas simbólica -digamos de um décimo de um porcento. Após a aferição de seus resultados se partiria para a eliminação dos demais tributos, .concomitantemente com o ajustamento de sua alíquota às reais necessidades tributárias do governo.

 

Folha, 22/02/90

IMPOSTO ÚNICO FERNANDO ALBINO

O artigo de Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, "Por uma revolução tributária", publicado no dia 14 de janeiro, na Folha, propõe a adoção de um imposto único. Apesar da correção de algumas de suas proposições, dele discordo, na sua essência.


Desde a Constituição de 1891 -calcada no exemplo americano- o Brasil optou pelo regime federativo, que pressupõe autonomia dos entes políticos, Estados e União. A autonomia política, a seu turno, implica autonomia financeira. Esta só é alcançável com a outorga de competência tributária, que significa a possibilidade de editar leis impositivas de tributos:

Assim, a primeira dificuldade é saber de quem será o imposto único, da União ou dos Estados. Ou haverá dois?


Não basta dizer que a receita do imposto único seria atribuível ao Estado onde foi arrecadado. Isso geraria dois tipos de problema: (a) o da distribuição da receita, que conferiria à União um enorme poder político sobre os Estados, o que sempre se quis evitar com a discriminação rígida de tributos, desde a Constituição de 1891; (b) o da perpetuação das desigualdades regionais, pois o imposto arrecadado no Piauí seria irrisório diante do de São Paulo.


Mas ainda falta o município, cuja tradição de autonomia financeira data da organização política aqui implantada pela colonização portuguesa. No Brasil, desde o início, convivem três ordens de poder tributante, União, Estados e municípios. Como estes últimos ficariam diante do imposto único? Submetidos à União e aos Estados? Mas isso não contraria toda a tendência moderna de estímulo à descentralização política, num país tão multiforme e diferenciado como o Brasil?


Se isso é verdade a nível dos entes autônomos -União, Estados e municípios- que são inerentes à nossa história e tradição políticas, também o é diante da categorização dos tributos, reconhecida na atual Constituição e fruto de uma longa reflexão dos estudiosos de direito tributário.


O ideal da carga fiscal simplificada, que seria traduzível no imposto único, não seria jamais- de molde a eliminar as taxas, contribuições de melhoria e contribuições -espécies, junto com o imposto, do gênero tributo.


E é ótimo que assim o seja. Enquanto o imposto é tributo genérico e impessoal do cidadão independentemente de qualquer atuação estatal, como fonte de recursos primária do Estado, as taxas, contribuições de melhoria e contribuições são tributos vinculados a atuações estatais específicas e proporcionais aos gastos públicos decorrentes dessas atuações.


Assim, o ideal do imposto único jamais afastaria a complexidade tributária da convivência de inúmeras exações, que apenas refletem a presença do Estado nos mais variados setores, o que de resto se encontra em todo o mundo ocidental. Continuaríamos pagando taxa de pavimentação, taxa de iluminação pública, taxa de lixo e limpeza urbana, taxa de licenciamento de veículos, taxa de registro de emissões públicas na CVM, taxa de seguridade social, contribuição de .melhoria por obras públicas que valorizassem os imóveis particulares etc. etc. etc.


O ideal de simplificação -do qual todos devemos compartilhar de sinônimo de eficiência e desburocratização da máquina arrecadadora- pode nos levar a uma analogia com similar inquietude dos arquitetos. Da mesma forma, a cidade se multiplica e se toma complexa, fugindo dos planos preparados pelos urbanistas e arquitetos. São demonstrações de vida. Assim como a simetria da prancheta é violada pela teia decorrente da vida urbana, a simplicidade do cálculo matemático da carga tributária acaba violentada pela complexidade das instituições políticas e sociais.


Mas os problemas não param aí. O ideal de imposto único é duplo. Um só imposto com uma só base de cálculo. Essa base de cálculo única, que seria a "transação" e mais especificamente a "transação monetária", esquece a realidade jurídica subjacente. Por incrível que possa parecer, representa um retrocesso de 25 anos, aos tempos do imposto do selo.


Naquela época havia o Imposto sobre Transações Jurídicas, que era o imposto do selo. A assinatura de qualquer documento era válida apenas se aposta sobre estampilhas, coladas sobre o mesmo.


A oposição a tal imposto, revogado pela reforma tributária de 1965 (emenda constitucional n° 18/65), precursora do atual Código Tributário Nacional, era de que ele desconhecia a realidade econômica subjacente à transação materializada no documento.


A sugestão do imposto único representa, de certa forma, a restauração do imposto do selo, apenas que modernizado pela informática, calculado por computadores.


Um exemplo é suficiente. Imagine uma empresa que adquirindo outra, nos termos de contrato celebrado entre ambas, pague o preço de US$ 50 milhões, recolhendo um "selo" de US$ 500 mil (1%). No dia seguinte, e ainda nos termos do mesmo contrato, ocorrendo condição suspensiva nele prevista, haja a devolução do preço, ocasião em que outro "selo" seria recolhido (mais US$ 500 mil). Ao cabo de dois dias, US$ 1 milhão teria sido pago sem que juridicamente nada tivesse ocorrido, nenhuma alteração patrimonial, nenhuma circulação de riqueza, nenhuma manifestação de capacidade contributiva.


Ou seja, a "transação monetária", base de cálculo do imposto único, não pode ser erigida como realidade em si, abstrata, sem vínculo com a realidade jurídica da qual é mero efeito.

A tendência moderna é a de colher na realidade concreta, no mundo fenomênico, manifestações de criação e circulação de riqueza e eleger tais fatos econômicos como fatos jurídicos ensejadores de pagamento de imposto. Nem toda "transação monetária" implica criação de riqueza e a eleição desse fato econômico para sua "jurisdificação" pelo direito tributário constitui uma simplificação exagerada que ensejará enorme injustiça fiscal.


Assim como a economia, o direito não convive bem com "choques heterodoxos". O maior choque é simplesmente o cumprimento da lei.


A criação de um corpo especial de fiscais que submetidos ao ministério público fiscalizassem o cumprimento da lei atual já aumentaria em muito a arrecadação do imposto sobre a renda. A revogação de todas as isenções e subsídios fiscais e o cálculo do tributo em moeda constante fariam outro tanto. A criação de uma alíquota única (e baixa) geraria o desinteresse pela sonegação, já desestimulada por punições (não "exemplares", mas simplesmente de acordo com a lei).


Isso tudo pode ser feito já, por decreto, sem longas negociações com o Congresso e com vigência e eficácia imediatas. A maior revolução tributária, por incrível que pareça, é a aplicação da letra da lei atual, em um país em que a sonegação virou regra.


Por outro lado, antes da "revolução" do imposto único com uma alteração profunda em nossa tradição constitucional; talvez seja mais fácil começar por tributar, com justiça, através do imposto direto sobre a renda efetivamente auferida, na pessoa física, os lucros na valorização de ações negociadas em Bolsa, na aposta em cavalos e nos ganhos da loteria, apenas para citar alguns “paraísos fiscais” internos.


São Essas as considerações que aqui deixo e que espero possam contribuir para o debate que o assunto certamente provocará.

 

Folha, 27/02/90

APOIO LIBERAL A REVOLUÇÃO FISCAL

JORGE KONDER BORNHAUSEN

Recentemente, reportei-me à proposta do economista Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque a respeito do Imposto Único sobre Transações monetárias, a qual foi transformada pela Folha num desafio à sociedade, concitando os homens públicos do país a empreenderem uma reforma corajosa de todo o nosso sistema tributário.


A proposta, como se sabe, prevê a substituição de todos os impostos e demais exigências fiscais por apenas um imposto incidente sobre todas as transações monetárias, sem exceções.

A tese, sem dúvida alguma, fascina quem sonha com a eliminação dos entraves da excessiva regulamentação e alimenta a esperança de ver um dia o cidadão mais respeitado na sociedade brasileira e o Estado menos inchado e mais eficiente.


Na ocasião, comentando o assunto aqui mesmo nesta coluna, ressaltei que a análise do respeitado economista e o desafio da Folha deveriam ser cuidadosamente estudados. Recentemente, o sempre presente Marco Maciel, líder liberal moderno, possibilitou-nos um encontro com o autor da proposta. Pudemos, então, discutir, eu como leigo, as dúvidas de natureza técnica referentes a números e à implementação prática do novo imposto.


Com muita confiança, ressalvando a necessidade da confrontação de seus cálculos com os dados oficiais, o autor da proposta manteve a sua convicção de que a alíquota de 2%, dividida entre as partes, seria equivalente à soma de todos os impostos atuais, quanto ao montante da arrecadação, ao mesmo tempo que, prudentemente, afirmou que a implementação poderia ser feita via o atual Imposto sobre Operações Financeiras com uma alíquota mínima durante o prazo de seis meses durante o qual poderia ficar demonstrada a validade numérica resultante da introdução do novo imposto. A colocação do autor convenceu-me ainda mais da necessidade de continuarmos a perseguir a idéia.


Por outro lado, no meu artigo anterior, tive também a preocupação de ressalvar a necessidade de uma avaliação concreta do conteúdo social do novo tributo, uma vez que o Imposto de Renda, o da cidadania, seria sepultado. Outra vez, de forma inteligente e defensável, o economista defendeu a tese de que, se não é possível fazer a justiça fiscal pelo lado da receita, esta pode se concretizar e ser compensada pela despesa, destinando-se mais recursos especialmente aos mais carentes, através das atividades essenciais do Estado, e atendendo-se também às inegáveis distorções regionais.


A diminuição quase que completa da sonegação, a desburocratização, a diminuição dos custos das empresas, as facilidades para as pessoas físicas, a incorporação à sociedade legal da economia informal não foram objeto de contestação ou dúvida, porque são vantagens flagrantes da proposta inovadora.


O encontro agradável e o fascínio da idéia determinaram o pedido do senador Marco Maciel e do meu presidente do PFL, senador Hugo Napoleão, para que, através do Instituto Tancredo Neves, seja promovido um painel sobre o assunto, o que foi aceito de imediato.


Assim, Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque e a Folha ganham aliados para a idéia da revolução fiscal: os integrantes do grupo liberal moderno do PFL.


 

Folha, 02/03/90

POR QUE O IMPOSTO ÚNICO NÃO É SOLUÇÃO

CLOVIS PANZARINI

Em recente artigo publicado na Folha (10/02/90, pág. B-2), escrevi que “surpreende com a proposta de um candidato à Presidência da República no sentido de se criar um imposto único no Brasil”. Essa afirmação, de meridiana clareza, levou o professor Cavalcanti a concluir que minha perplexidade decorre não da proposta de implementação no Brasil desse esdrúxulo modelo, mas sim do debate em si do modelo, que qualquer tributarista ou economista mediana- mente informado sabe que vem ocorrendo nos meios acadêmicos há muito tempo e que, justamente pela sua inaplicabilidade, nunca foi levado a sério. Nesse mesmo artigo levantei o problema da partilha da arrecadação desse imposto entre os três níveis de governo (centralização versus descentralização de poder) e também o problema dá divisão dos quinhões estadual e municipal entre, respectivamente, os Estados e os municípios (conflito distributivo regional), dois problemas sérios, porém completamente distintos. O professar Cavalcanti, por conta própria, fundiu os dois problemas em um só e atribuiu a mim o seguinte imbróglio: “quanto ao argumento de que a definição dos critérios de rateio do IUT entre os três níveis de governo, poderia levar o país a ‘um conflito regional de proporções inimagináveis’.” Acredito, portanto, que seja necessário explicitar melhor as causas de minha preocupação com a questão da partilha do IUT.


No que tange à questão da distribuição da receita tributária entre os níveis de governo, não se pode dissociá-la da questão da divisão dos encargos entre eles. Entretanto, a experiência recente no Brasil (leia-se Assembléia Nacional Constituinte) mostrou que essa postulação perde importância diante dos embates políticos. O modelo tributário consagrado na nova Constituição depauperou o orçamento federal em favor dos Estado e municípios, sem que houvesse preocupação, por parte da maioria dos constituintes, em descentralizar, paralelamente, os encargos. As estimativas mais conservadoras indicam que o orçamento federal, já à época deficitário, perdeu cerca de 30% da receita tributária líquida com a nova Constituição.


Assinalei no artigo anterior, e volto a insistir, que mais delicada que a questão da definição do tamanho de cada nível de governo é a da definição do critério de partilha das fatias estadual e municipal entre os respectivos governos locais. O professor Cavalcanti, em sua réplica, tergiversou ao analisar o problema e citou como exemplo de experiência brasileira sobre partição de receita tributária os fundos constitucionais compensatórios. Aponta, como exemplo pacífico de repartição de recursos, os artigos 157 a 162 da nova Constituição.


Há que se considerar, todavia, que no atual sistema tributário apenas 26% dos recursos totais são distribuídos às esferas inferiores de governo, enquanto que no modelo proposto a totalidade da receita tributária haveria de ser partilhada. O atual sistema de partilha para os Estados mais desenvolvidos tem importância apenas marginal, pois. objetiva, basicamente, compensar desequilíbrios regionais, transferindo recursos financeiros às unidades federadas que não possuem base econômica suficiente para gerar os recursos tributários de que necessitam. Os artigos citados como exemplo de repartição de receita tributária no Brasil (artigos 157 a 162 da Constituição) realmente foram tranqüilamente aprovados porque se limitam a: 1) dilapidar o orçamento da desguarnecida União, em favor de Estados e municípios; 2) estabelecer um teto de 20% na participação individual de cada unidade federada nos recursos do fundo compensatório aos Estados pelas perdas decorrentes das exportações de produtos industrializados (artigo 159, par. 2º). Esse dispositivo contraria os interesses apenas do Estado de São Paulo, que responde por 52 % das exportações brasileiras de manufaturados e recebe apenas 20% do fundo. Os n-1 Estados festejaram esse artigo, pois receberam os 32 % (52% menos o teto de 20%) do fundo que deveriam ser destinados a São Paulo; 3) remeter à lei complementar a definição do critério de rateio dos fundos compensatórios; 4) cuidar da obrigatoriedade de divulgação de valores repassados (artigo 162). Os repasses dos fundos compensatórios estão disciplinados pelas leis complementares federais de nºs 61/89, 62/89 e 63/90. O critério de rateio do FPE (Fundo de Participação dos Estados), que é alimentado por 21,5% da arrecadação do IPI e do Imposto de Renda (atualmente 19,5%), está definido na lei complementar federal n° 62 de 28/12/89. Essa lei, uma "pérola" de tecnicidade, estabelece que 85 % dos recursos do fundo pertencem às unidades federadas das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e os 15 % restantes às das regiões Sudeste e Sul (artigo 2°, I e lI), e determina que 1% do fundo "está de bom tamanho" para o Estado de São Paulo. Ninguém discorda que esse fundo tem caráter redistributivo e objetiva "promover o equilíbrio sócioeconômico entre Estados e municípios", como manda o artigo 161, II, da Constituição. É inconcebível, entretanto, a forma como o Congresso Nacional impôs essa distribuição, de forma absolutamente subjetiva, sem lastro em qualquer variável sócio-econômica. Talvez pouca gente saiba que essa lei, sem qualquer critério técnico, dividiu por quatro (como poderia ter dividido por seis ou por 17) a antiga fatia que o Estado de São Paulo recebia do FPE, que era de 3,946% (vi de resolução n° 236/89 do TCV, publicada no D.a.V. de 01/03/89), quando calculada pelo critério estabelecido no decreto-lei n° 1.434/75, que se baseava no fator inverso da renda per capita e na população de cada unidade federada. Felizmente para o Estado de São Paulo, o FPE representava apenas 1,2 % da receita líquida do Tesouro. Hoje, dividido por quatro, representa 0,3% (1). No Estado do Acre, por exemplo, o FPE responde por 76% de seus recursos líquIdos. No modelo proposto pelo professor Cavalcanti, o FPE representaria 100% da disponibilidade total de recursos, tanto no Acre como em São Paulo, e o critério de partilha continuaria sendo definido politicamente. A discussão da partilha de um componente da receita que pesa 1,2% do orçamento é, seguramente, mais amena que a discussão da definição de 100% do orçamento!


A suposta tranqüilidade do professor Cavalcanti na questão da partilha da receita tributária, portanto, repousa em monumental falácia. Daí, minha preocupação com o conflito distributivo regional, uma vez que representatividade política e representatividade econômica não caminham juntas. (Não se deve inferir dessas colocações que os representantes dos Estado mais desenvolvidos no Congresso tenham sido pouco atuantes. Quem acompanhou os bastidores da Assembléia Nacional Constituinte viu como é difícil negociar sendo minoria -a questão é aritmética.) Retirar dos Estados e municípios a competência para instituir tributos significará dissociar a pujança econômica de cada unidade federada do tamanho de seu orçamento e, conseqüentemente, da capa- cidade de produzir os bens públicos demandados pela sociedade.


Causa pasmo que esse perigoso "balão de ensaio" chama- do imposto único tenha sido candidamente levantado justamente pela intelectualidade do Estado de São Paulo! Quanto aos problemas técnicos e operacionais do IVT, já discutidos à exaustão, prefiro não mais comentá-los. A concepção de um sistema tributário não deve começar pela estimativa da arrecadação tributária, definição de alíquotas, prazos de recolhimento do imposto e outras questões menores. Há, antes disso, que se estudar com mais profundidade a estrutura das contas públicas do país, sua história, suas causas e conseqüências econômicas, sociais e políticas.

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