APRESENTAÇÃO
A urgente necessidade de uma nova estrutura tributária no Brasil tem sido um dos temas mais polêmicos na pauta de discussões sobre as grandes questões nacionais. O caráter inadiável dessa reforma se explica por si só, uma vez que diz respeito a um dos principais elementos da economia do país e compreende um fator decisivo para a atuação dos diferentes agentes econômicos, públicos e privados.
Nos últimos dez anos, foi notável a intensificação do debate tributário. Nesse período foram feitas várias propostas, de onde surgiu uma clara divisão de correntes de pensamento sobre o assunto. De um lado, a corrente ortodoxa, baseada nos conceitos tradicionais de finanças públicas e nos cânones convencionais do direito tributário, alguns deles ultrapassados pelos avanços tecnológicos e sobretudo pela forma eletrônica das principais transferências de ativos; de outro, a proposta inovadora e antidogmática dos tributos nãodeclaratórios, epitomizada no renascimento do histórico conceito do Imposto Único.
A primeira corrente, a dos impostos declaratórios, a que diz que “imposto bom é imposto velho”, incorpora, segundo os reformistas mais radicais, a continuidade de paradigmas ultrapassados pela economia contemporânea, caracterizada pela globalização, e pelos impactos avassaladores da era da informação eletrônica. Sua defesa, segundo o saudoso economista, diplomata e homem público Roberto Campos, não consegue ocultar ser apenas um melancólico exercício de se tentar “aperfeiçoar o obsoleto”.
A segunda corrente baseia-se nos impostos não-declaratórios, arrecadados mediante impulsos eletrônicos emitidos dentro das centrais de processamento de dados do sistema bancário. Segundo os tradicionalistas, trata-se de proposta ousada, chegando às raias do ilusionismo. Apesar de possuir notável capacidade arrecadatória e de revelar padrão de incidência quase universal, os postulados dessa corrente e seus defensores atraem a ira dos guardiões da ortodoxia, do estamento burocrático, dos sonegadores contumazes e daqueles que, em prol de um novo paradigma, não abrem mão de seus esforços intelectuais e profissionais de décadas, ainda que todas as evidências demonstrem estar superados.
O embate entre estes dois paradigmas tributários, o declaratório e o não-declaratório (que poderiam ser resumidos a “com-” e “sem-papelório”) traz à tona questões resultantes não apenas das mudanças profundas no ambiente econômico das economias modernas, mas também do posicionamento da área tributária, ou de finanças públicas, como ciência.
Uma área de estudo transforma-se em ciência, segundo Thomas Kuhn, quando um paradigma, ou seja, um conjunto de problemas e de padrões uniformes de abordagem, tornam-se aceitos consensualmente por uma comunidade de especialistas, com uma teoria básica, e um conjunto comum de tradições explicativas e interpretativas. “A autoridade de uma proposição científica passa a se fundamentar em sua capacidade de gerar consenso no âmbito de uma dada comunidade. Tal consenso, por sua vez, não depende de que as proposições científicas proporcionem uma visão indiscutível da contextura íntima do real. Depende, isto sim de que sua elaboração tenha sido orientada por critérios de demarcação autoritariamente prevalecentes no âmbito dessa comunidade. É por esse motivo, afirma Kuhn, que os paradigmas destacam-se por sua incomensurabilidade. Se cada paradigma estabelece as condições de cientificidade do conhecimento produzido em seu âmbito, as provas invocadas em favor dos demais paradigmas tendem a ser desqualificadas a priori”.
Essa visão inovadora dos progressos conceituais no terreno científico (que pode ser aplicada, mutatis mutandis, para a vida em sociedade) nos permite por outro lado afastar a argumentação de tipo defensivo dos “tradicionalistas”, que tendem a rechaçar o imposto único a pretexto de que “se fosse bom, já teria sido adotado há muito tempo por economias mais avançadas”. O argumento não leva em conta o peso inercial de velhas estruturas tributárias ou, no sentido inverso, a revolução criada pelas transações eletrônicas de ativos. O Brasil, por exemplo, comparativamente a países de economia relativamente mais avançada, é significativamente mais moderno do ponto de vista do sistema bancário, o que permite justamente o salto conceitual e essa revolução paradigmática do imposto único.
Na questão tributária, nota-se o gradual esgotamento do paradigma convencional, que entra em crise a partir de sua incapacidade em fornecer explicações, diagnósticos, justificativas ou soluções para fatos novos que surgem no panorama econômico atual. O que se observa, contrario sensu, é justamente a erosão dos mecanismos tradicionais de “extorsão” tributária, baseados no conceito de que o contribuinte é um fraudador em potencial, até prova em contrário, daí resultando uma soma impressionante de sistemas de controle e vigilância que não conseguem impedir a evasão e a elisão fiscais.
Em realidade, o desenrolar desse debate tenderá a se tornar cada vez mais previsível, na medida em que dois fenômenos fundamentais na história contemporânea imporão um desenlace inevitável nesta polêmica em favor da corrente não-declaratória. Referimo-nos, em primeiro lugar, à revolução tecnológica da era da informação e, em segundo plano, mas não menos importante, ao fenômeno do atual processo de globalização das relações econômicas mundiais.
A era da informação alterou em profundidade a função de produção agregada das economias modernas. A expansão dos métodos de processamento de grandes massas de dados permitiu enorme agilidade no processo de tomada de decisões. A sofisticação no processamento de informações induziu melhorias nos métodos de coleta e análise de dados. A oferta e o controle das informações tornaram-se insumos fundamentais no processo decisório das empresas modernas, explicitando de forma dramática a precariedade dos mecanismos declaratórios e semi-artesanais utilizados nos sistemas tributários convencionais, que haviam surgido no ambiente tecnológico e organizacional imediatamente posterior à revolução industrial.
Ademais, a expansão da participação dos serviços no produto nacional reduziu significativamente a eficácia das regras de controle e dos mecanismos de arrecadação de tributos vigentes anteriormente. A produção tornou-se intangível e desmaterializada, o que vem tornando mais ineficaz a continuidade dos mecanismos convencionais de apuração e fiscalização de impostos. De fato, um serviço intangível circulando via Internet – um novo programa de administração contábil, por exemplo, de custo relativamente elevado mas reduzido a simples bits and bytes no processo de fornecimento e de utilização – tornou-se, hoje, inalcançável para as autoridades tributárias, que são mantidas completamente à margem desse tipo de intercâmbio. Mesmo a transação financeira daí resultante poderia ser feita em paraíso fiscal, sem especificação de origem ou destino, o que dificulta bastante uma taxação específica, sobre produto ou serviço, por exemplo. Mas, em algum momento, a transferência a título de pagamento ou os resultados decorrentes da utilização do produto ou serviço terão forçosamente de situar-se em território tributário determinado, que constitui a base de operação normal da empresa em questão (que obviamente não vende nada em paraíso fiscal). Nesse momento, o imposto sobre transações financeiras faz todo o sentido, uma vez que incide sobre a movimentação bancária desse agente.
Os modelos tributários tradicionais assumiam que a produção e a geração de renda tributável surgiam em processos produtivos manuais, (e posteriormente mecânicos), concentrados em espaços geográficos definidos, centrados em estruturas organizacionais autônomas, independentes e submetidas a regras nacionais definidas por um Estado soberano. Essa realidade está moribunda, como parece evidente a qualquer pessoa versada nas realidades da globalização.
A obrigação tributária rapidamente tornou-se exigível de praticamente todo o universo de pessoas físicas e jurídicas. A universalização da exação tributária ampliou o conjunto dos contribuintes, que antes era composto por poucas e grandes unidades de produção e de comercialização típicas do início do processo de industrialização, passando a englobar a totalidade das empresas e dos indivíduos existentes nas economias modernas. As funções de cobrança, apuração e controle das obrigações tributárias alcançaram escala totalmente incompatível com os sistemas declaratórios caracterizados pelo método tradicional da “auto-apuração, auto-lançamento, auto-recolhimento e auditoria pública”, característico dos sistemas declaratórios convencionais.
Nesse sentido, a revolução da informática passou a oferecer um instrumento imprescindível de coleta e análise da enorme massa de dados e informações necessária para o processo de controle, acompanhamento e arrecadação de impostos. Os sistemas bancário e tributário do Brasil contemporâneo se situam, diga-se de passagem, entre os mais modernos conhecidos no mundo, o que habilitaria o País a dar o salto paradigmático acima mencionado.
Contudo, a era da informática não imprime sua importância apenas como método auxiliar no controle, na fiscalização e na análise das informações tributárias. Vai muito além e torna-se fator determinante na concepção de novos modelos de exação de tributos, principalmente na configuração de novas bases impositivas, como a movimentação financeira, os fluxos eletrônicos, os impulsos telefônicos, as ondas elétricas e outras bases intangíveis que antes dificilmente eram alcançadas pelos tributos convencionais.
O segundo fenômeno modificador das velhas concepções tributárias é a globalização, fato complexo, de múltiplas características, e que vem implicando profundas alterações na vida econômica e social da humanidade. Segundo José Eduardo Faria, a globalização vem sendo responsável pela “relativização de alguns importantes conceitos, princípios e categorias – como soberania, legalidade, hierarquia das leis, direitos subjetivos, igualdade formal, cidadania, equilíbrio de poderes, segurança e certeza – fortemente atingidos por mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais em grande parte ocorridas à margem das estruturas jurídicas, dos mecanismos judiciais, das engrenagens institucionais, dos procedimentos democráticos e da capacidade de regulação, controle, gestão, direção, planejamento e adjudicação dos Estados nacionais”.
De fato a globalização enfraqueceu o poder das administrações públicas nacionais através da descentralização e fragmentação da capacidade decisória dos poderes tradicionais e, de maneira ainda mais evidente, “debilitou a capacidade de taxação e regulamentação dos governos”. Aduz José Eduardo Faria que: “neste cenário altamente cambiante, o direito positivo ...passou a enfrentar um dilema cruel: se permanecer preocupado com sua integridade lógica e com sua racionalidade formal, diante de todas essas mudanças profundas e intensas, corre o risco de não acompanhar a dinâmica dos fatos, de ser funcionalmente ineficaz, e, por fim, acabar sendo socialmente desprezado, ignorado, e (numa situação-limite) até mesmo considerado descartável; caso se deixe seduzir pela tentativa de controlar e disciplinar diretamente todos os setores de uma vida social, econômica e política cada vez mais tensa, instável, imprevisível, heterogênea e complexa, ...corre o risco de terminar sendo desfigurado como referência normativa.”
O divórcio entre as bases conceituais do poder público que emergiu do período pósguerra e os pressupostos reais da globalização do mundo moderno vem resultando no que José Eduardo Faria denominou de “ingovernabilidade sistêmica” do Estado tradicional. Daí a pergunta: até que ponto esta nova realidade, profundamente marcada pela revolução da informática e pela intensa globalização vem sendo apreendida pelos modelos tributários tradicionais?
São questões colocadas no âmbito mais amplo do direito positivo, concebido tanto pelo Estado liberal-burguês como pelo Estado intervencionista keynesiano, mas que se aplicam com ainda mais intensidade no âmbito das instituições tributárias convencionais marcadas por profunda corrosão de sua eficácia e pelo desgarçamento de seus mecanismos de imposição.
O sistema tributário tradicional pressupõe que o contribuinte, pessoa jurídica (e o mesmo princípio se aplica à pessoa física), seja uma empresa nuclear produtora de bens tangíveis, com uma ou poucas instalações físicas concentradas em um único Estado nacional (ou território fiscal), e cercada por empresas fornecedoras e compradoras com as mesmas características. O quadro abaixo ilustra esta situação.
QUADRO 1
Empresa nuclear tradicional
Neste sistema é simples a avaliação da capacidade contributiva da empresa nuclear, bem como a fiscalização através do cruzamento de informações com as empresas periféricas fornecedoras ou compradoras.
A situação torna-se radicalmente diferente com a organização e as estratégias operacionais das empresas organizadas em redes descentralizadas, espalhadas por vários Estados-nações, e produtoras de bens tangíveis e, crescentemente, de serviços, que por sua natureza são intangíveis e de grande mobilidade e portabilidade através de meios eletrônicos. O quadro abaixo ilustra a complexidade operacional dessas empresas, envolvendo variáveis internas e externas, considerações comerciais, interesses societários difusos, estratégias tecnológicas e de market-shares, implicando uma sofisticação de conceitos e de operações não contempladas nos modelos tributários convencionais.
QUADRO 2
Processos e estratégias na economia globalizada
Exemplo deste questionamento moderno do paradigma tributário convencional pode ser encontrado na crescente incapacidade dos Estados nacionais lidarem com os problemas gerados pelos “paraísos fiscais”, pelos métodos cada vez mais sofisticados de “lavagem de dinheiro”, e pelos incontroláveis fluxos de recursos internacionais (preços de transferência) entre empresas de um mesmo conglomerado global. Sofisticados mecanismos induzem os capitais a abandonarem os países onde foram gerados e a buscarem taxas de retorno mais elevadas e custos tributários menos progressivos e mais baixos em qualquer ponto do globo. Ao mesmo tempo, a prática da sonegação e da fuga para a economia informal, fenômeno em rápida expansão em todo o mundo, reduz ainda mais a capacidade de exação tributária dos governos.
Edgar Feige, um dos pioneiros no estudo e mensuração da economia informal, cunhou o fenômeno de tax revolt, afirmando que: “the irregular economy appears to have little respect for conventional geopolitical boundaries. Indeed, it is being increasingly noticed in almost all developed societies.” Diz o autor: “I wish to note that I began this investigation suspecting that the irregular economy was smaller than previous estimates had suggested. I am now convinced that the irregular economy is indeed of staggering proportions and growing rapidly.”
O impacto da fuga para a economia informal na solvência do sistema previdenciário brasileiro vem sendo apontado com crescente preocupação. José Pastore afirma que: “a informalidade está arruinando a Previdência, havendo cerca de 18 milhões de contribuintes potenciais que não contribuem para a Previdência Social.”10 É desnecessário enfatizar a gravidade desta situação. Sabidamente a Previdência Social é altamente deficitária e mostra um preocupante potencial para desorganizar ainda mais dramaticamente as contas públicas brasileiras.
A deterioração e a perda de eficácia operacional dos tributos convencionais motivou a revista The Economist a publicar matéria antevendo “a morte do imposto de renda” e a crescente incapacidade dos governos nacionais de garantirem a operacionalidade de seus sistemas tributários tradicionais, fortemente abalada pela crescente sofisticação e diversificação dos métodos de planejamento tributário por parte das empresas, e dos mecanismos de tax competition utilizados pelos governos nacionais.
De fato, a crescente mobilidade dos capitais, aliada às novas facilidades oferecidas pelos centros financeiros off-shore, bem como à realidade ainda importante da autonomia fiscal de cada Estado soberano, contribui cada vez mais para erodir as antigas bases territoriais de arrecadação, limitadas às fronteiras nacionais e tendo de competir com esses free-riders do fiscalismo tradicional. O processo de globalização tende a exacerbar esse tipo de comportamento, que não parece suscetível de ser coibido pelas ameaças verbais das autoridades tributárias nacionais.
O aparecimento de fatos novos e os conseqüentes questionamentos deles resultantes, é razão para o surgimento de novos paradigmas. Daí o conflito atual entre o paradigma convencional dos tributos declaratórios, que ainda mantém o status de ciência madura, e o desafio dos tributos não-declaratórios, notadamente os tributos sobre movimentação financeira, cuja aplicação vem se impondo, por sua eficiência arrecadatória, baixos custos e virtual impossibilidade de sonegação. Assiste-se, no momento, o surgimento de uma nova espécie tributária, em torno da qual formam-se novos consensos conducentes à sedimentação de novos paradigmas. Do ponto de vista prático, o raciocínio poderia ser o seguinte: evitar ao máximo “chatear” o contribuinte com dezenas de papéis de recolhimento tributário, mas intervir no processo de circulação de ativos e retirar, sem dor e de forma insonegável, uma pequena parte dessa riqueza para aplicação social, da maneira mais transparente possível.
Fica claro, portanto, a dificuldade encontrada pelos modelos tributários ortodoxos em pessoas, grupos empresariais e instituições sobre as quais (o Estado) tem escasso poder de controle... ”
O presente ensaio discute o Imposto Único à luz desses fatos. Abrange o debate desde o lançamento da proposta original, quando rompeu-se a crença generalizada de que o sistema tributário tradicional, apesar de seus defeitos e de sua crescente corrosão operacional, era insubstituível, um mal necessário. Discute o surgimento da vertente inovadora do Imposto Único e dos impostos não-declaratórios, em contraposição ao pensamento fiscal-tributário conservador. Trata do conflito tripartite entre arrecadação, sonegação e eficiência nessas propostas, e discute aspectos relacionados aos principais projetos de reforma tributária.
Achei oportuno iniciar este trabalho avaliando, no capítulo I, o atual sistema tributário nacional, onde procuro apresentar uma evolução do sistema, como ele é hoje, as principais anomalias existentes e as propostas de reforma tributária que vêm sendo debatida no país nos últimos dez anos.
No capítulo II, apresento e discuto alguns conceitos e definições a respeito de aspectos relacionados à questão tributária. A intenção é fazer com que o leitor não-iniciado no tema possa encontrar subsídios para compreender alguns pontos básicos envolvidos nesta polêmica. Nas seções finais daquele capítulo introduzo e discuto as características dos novos impostos sobre movimentação financeira (IMFs), tomando os impostos sobre valor agregado (IVAs) como padrão de referência.
O capítulo III introduz o Imposto Único e trata do histórico dessa proposta. A análise deste novo, e ao mesmo tempo tradicional, modelo tributário traz à baila questões relacionadas à partilha da receita, às críticas e vantagens do sistema e ao seu potencial de arrecadação. Ao final do capítulo discuto a reforma tributária e a evolução do debate desde inícios da década de noventa e introduzo para debate a proposta do Imposto Único Federal, projeto de reforma constitucional que se acha em discussão na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
Marcos Cintra - Verão de 2002.
PREFÁCIO
“IMPOSTO ÚNICO FEDERAL”
UMA FÓRMULA PLAUSÍVEL DE REFORMA TRIBUTÁRIA:
ADOÇÃO DAS MOVIMENTAÇÕES FINANCEIRAS COMO BASE TRIBUTÁRIA FEDERAL PREDOMINANTE.
Objeto e método
A tributação das movimentações financeiras é ainda um tema infreqüente na literatura especializada. Atualmente o Brasil é o detentor da primazia na mais rica, ampla e bemsucedida experimentação no campo dessa peculiar técnica tributária.
Nessa matéria não há socorro disponível em inglês, francês, alemão, japonês ou italiano. Por uma vez, somos o único referencial de nossas próprias reflexões, e a experiência brasileira é a referência básica para os estudiosos estrangeiros.
Os trabalhos teóricos pioneiros do prof. Marcos Cintra a respeito do chamado “Imposto Único”, incidente sobre transações financeiras, frutificaram numa profícua atuação política, fazendo amadurecer concretizações sucessivas, que ora culminaram na proposição legislativa em epígrafe, para cuja apreciação instalou-se Comissão Especial da Câmara dos Deputados.
Paralelamente, escapando ao controle de seu patrono, o imposto sobre transações materializou-se no IPMF, posteriormente ressuscitado na forma da CPMF, constituindo excelente laboratório experimental que desmentiu reiteradamente a maioria dos preconceitos contrários e consolidou uma doutrina administrativa, na Receita Federal, surpreendentemente favorável aos méritos dessa incidência.
O presente texto contribui com alguns modestos comentários preliminares, que podem ser úteis aos trabalhos da Comissão Especial, mas não substituem a leitura da generosa e sedutora “justificação” anexa ao texto da PEC nº 474/01, nem das publicações do eminente Deputado Marcos Cintra.
A incumbência legislativa específica concerne a redefinição de algumas diretrizes constitucionais da política tributária. O cerne da questão é uma saída plausível para o impasse da reforma tributária, mediante a adoção da base das movimentações financeiras não destinadas a investimento como tributo federal predominante.
Não se trata aqui, então, de nenhum pacote regulamentar, que teria de envolver a colaboração do Poder Executivo, nem de simulações numéricas ou de avaliação acadêmica sobre presumíveis efeitos macro e microeconômicos do imposto sobre movimentações, a cujo propósito até já constam poucas teses universitárias.
São considerações pragmáticas, reflexões qualitativas, multifocais, que procuram ativar a discussão da complexa variedade de dimensões do tema, inclusive sob pontos de vista menos usuais, da psicologia social, da sociologia financeira, da análise administrativa institucional, além de, por certo, da técnica legislativa.
O impasse da reforma tributária
As transformações da sociedade e da economia brasileira, desde a última festejada reforma tributária de 1965, acumularam distorções em nosso sistema tributário, cujo enfrentamento malogrou em várias tentativas de reforma, seja na “Comissão Sayad”, de 1986, sucedida pela “Comissão Aryoswaldo”, ambas do Poder Executivo, seja na Constituinte Revisional, de 1993/94, do Poder Legislativo.
Na seqüência, a política tributária oficial, durante a presente octaetéride presidencial, premida pelas exigências da estabilização econômica e dos ajustes externos, enfatizou a produtividade e a confiabilidade da arrecadação em detrimento da racionalidade do sistema tributário.
Investiu-se preferencialmente nos tributos de arrecadação fácil, que sobrecarregam os mesmos contribuintes de sempre, adiando-se o enfrentamento das distorções e iniqüidades crescentes do sistema tributário.
As contribuições cumulativas da União, por não serem partilháveis com os demais entes federados, apresentaram extraordinário crescimento no período. O imposto de renda adelgaçou-se para atender às expectativas dos investidores externos e dos grandes contribuintes, terminando por resumir-se, hoje, numa assombração quase apenas dos extratos superiores da classe média assalariada. Ironicamente foi a possibilidade de cruzar dados da CPMF que veio em socorro da exigência, antiga, de uma ampliação da base do imposto de renda.
Convencionou-se que as demandas por reforma tributária concentravam-se na tributação do consumo. Ali estaria o foco dos desequilíbrios a remediar com prioridade. O governo investiu num projeto de imposto unificado sobre o valor agregado, sem convicção. O próprio Secretário da Receita Federal veio confessar, anos depois, que não o considera viável no horizonte temporal que consegue enxergar.
Ganhou nitidez a percepção, antes difusa, de que nossa peculiar estrutura federativa não comporta um IVA, e, também, que se o IVA satisfaz a grande indústria e o comércio de porte, prejudica o setor de serviços e a imensa massa dos pequenos empreendedores.
A PEC no 175/95, após sete anos de muito ruído, jaz sepultada. Apenas não deixou de suscitar um modesto subproduto, o projeto do PIS/PASEP não-cumulativo, restrito, experimental e escalonado no tempo, interessando a grandes contribuintes e empresários da exportação.
Entrementes, a carga tributária incrementou-se em perto de dez pontos percentuais. A arrecadação dos tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal experimentou aumento real de 42,73% entre 1994 e 2001.
Sobretudo, a iniqüidade da distribuição do ônus fiscal agravou-se, o que deveria fazer da reforma tributária tema prioritário dos programas dos candidatos presidenciáveis à eleição de 2002.
A possível redução da carga tributária global, mas, como condição prévia a essa discussão, a redistribuição mais eqüitativa dos encargos por um universo contributivo muito mais amplo e a racionalização da pressão fiscal de sorte a aliviar o trabalho e a produção e favorecer o crescimento econômico, constituem, sem dúvida, os desafios de mais crucial relevância para a gestão pública do Brasil atual.
A preocupação focalizada na reforma da tributação do consumo estaria equivocada, segundo análises acadêmicas como a da FIPE/USP para a FIESP, posicionamentos como o do ex-secretário Prof. Nakano, e posturas programáticas de partidos oposicionistas, no sentido de que o mais importante estaria alhures. Isto é, para consertar nosso desequilíbrio tributário, seria preciso inverter a predominância brasileira da tributação do consumo relativamente à tributação da renda e da propriedade, para entrar em harmonia com o modelo vigorante na maior parte do mundo desenvolvido, onde o consumo é tributado suavemente e a renda responde pelo grosso das receitas públicas.
É provável que os industriais e os exportadores brasileiros estivessem menos preocupados com a tributação do consumo, se ela fosse muito mais suave, se a tributação da renda e da propriedade fossem predominantes, como acontece, por exemplo, nos Estados Unidos, Inglaterra, Japão, países escandinavos etc.
Outros analistas, como equipes do BNDES e IPEA, entendem que um país em vias de desenvolvimento, com as brutais desigualdades de renda e riqueza que o Brasil ostenta, só pode contar mesmo, sobretudo, com a tributação indireta, devendo procurar fazê-la o menos distorsiva possível
Nesse último leito, mas divergindo das postulações teóricas do IPEA em favor do valor agregado, alinham-se estudos empíricos muito interessantes que a Receita Federal vem publicando em seu endereço eletrônico, sugerindo que o efeito das contribuições cumulativas não é regressivo, como se imaginava, mas parece uniformemente proporcional em todas as faixas de poder aquisitivo, muito próximo do efeito esperado de um IVA ideal, melhor do que o ICMS ou o IPI com sua seletividade e sua técnica do valor agregado.
Sugere-se que tributos aparentemente toscos, insensíveis às diferenças individuais, como as contribuições sobre a receita bruta e sobre as movimentações financeiras, sendo mais simples, mais módicos e menos sonegáveis, acabem engendrando efeitos econômicos menos distorcidos do que tributos sofisticados de altas alíquotas sobre o valor agregado ou sobre a renda líquida, que são muito complicados, heterogêneos e mais sonegáveis.
A esse respeito, os estudos da Receita Federal, sobre a experiência com a CPMF e sobre a ilusória regressividade das contribuições cumulativas, confirmam simulações teóricas e observações nas quais o prof. Marcos Cintra vem insistindo há tempo.
Tantos anos de insucesso, malgrado esforços ingentes, atestam a exaustão dos paradigmas tradicionais para nossa reforma tributária.
Não parece viável, a médio prazo, unificar a tributação do consumo pelo valor agregado, dados os conflitos de nossa estrutura federativa e a dependência, dos Estados federados, em relação ao ICMS. O governo federal também não poderia, a essa altura, renunciar ao aporte de receitas dos impostos e contribuições sobre o faturamento ou receita bruta.
Permanece o desafio de suavizar a pressão tributária mediante sua distribuição mais eqüitativa, o desafio de prevenir a evasão e incorporar o mundo da informalidade, sem fazer apelo a uma solução, irreal, de agigantamento dos aparelhos fiscalizadores.
Nesse quadro de impasse, a tributação mais intensiva das movimentações financeiras surge como um caminho plausível de reforma tributária, cuja base difere pouco das bases consumo e receita bruta atualmente predominantes no país, oferecendo vantagens de custo baixo, simplicidade, suavidade, alcance universal e dificuldade de evasão.
Escolhas de política tributária
Não há tributo perfeito. A escolha de determinado perfil do sistema tributário, dados os embates de interesses entre grupos e setores numa sociedade complexa, deve perseguir o dano mínimo à maioria, já que não pode alcançar a satisfação máxima de todos.
O fracasso da reforma tributária não se explica, como acusam alguns, apenas pela ausência de empenho governamental. A aparente indecisão ou desorientação governamental, que se interpreta erroneamente como ausência de empenho, reflete os desacordos sem perspectiva de composição viável naquela linha observados na sociedade.
É que a estrutura tributária que invejamos aos países mais desenvolvidos, onde, inversamente ao que ocorre no Brasil, tributa-se intensamente a renda e moderadamente o consumo e a propriedade, repousa sobre o pressuposto sociológico de democracias sólidas, de elevada renda per capita, com vastas classes médias, educadas e politizadas, capazes de exercer amplo controle social sobre a atuação de administrações fiscais ricamente aparelhadas.
Continua válido, ainda hoje, o diagnóstico proferido pelo corifeu de Cambridge, Nicholas Kaldor (Colloque International sur la Fiscalité et le Dévellopement, Paris, 1982), de que as reformas tributárias latino-americanas continuariam a ser arranjos cosméticos condenados ao fracasso enquanto as elites dominantes, dessa parte do mundo, não se dispusessem a adotar uma postura mais patriótica, a manter sua fortuna em seus próprios países e a participar mais substancialmente do esforço contributivo, como se tinha feito, por exemplo, na Europa Ocidental, no último meio século.
Mas é irrealista esperar que as elites dominantes, em sociedades profundamente desiguais, renunciem ao poder de manipular o sistema fiscal em benefício próprio e se disponham, espontaneamente, ao sacrifício tributário. O patriotismo, a que Sir Kaldor aludia, vai se tornando um valor em desuso no presente cenário de globalização.
A sociedade de massas não comporta mais aquele imposto cujo pagamento era um ato consciente de adesão ritual ao Contrato Social. Prevalece, hoje, a preferência pelo “imposto anestésico”. O bom senso recomenda, então, edificar fórmulas indiretas e automáticas de tributar proporcionalmente a todos, sem exceção, preferencialmente sem apelo a valores e à consciência ética. A movimentação financeira é a base que satisfaz esse desafio.
Os impostos diretos, incidentes sobre a renda e a fortuna pessoal, são, teoricamente, tanto mais justos quanto mais sensíveis à diversidade das situações individuais. Mas essa vantagem teórica se perde diante das dificuldades da execução.
A experiência brasileira da tributação da renda pessoal aponta distorções muito acentuadas e praticamente insuperáveis. O saudoso e excepcional tributarista prof. Henry Tilbery manifestou-se contra a implantação do imposto sobre grandes fortunas no Brasil explicando que, embora favorável à justa conformação teórica desse imposto, apostava numa execução iníqua, que, dando preferência à facilidade, agravaria a pressão fiscal sobre os contribuintes de sempre e continuaria deixando de alcançar os evasores de sempre.
A base das movimentações financeiras é mais democrática do que as bases da renda e da riqueza pessoais, porquanto, na prática, alcança amplitude mais efetiva. A profª. Maria da Conceição Tavares captou bem essa característica e não se omitiu em exprimir esse reconhecimento.
O achado teórico do prof. Marcos Cintra repercutiu, na primeira metade da década de noventa, no projeto do imposto único que se incorporou à campanha presidencial do candidato Flávio Rocha. Ganhou forma, também, em algumas propostas da revisão constitucional que centravam o sistema tributário em um imposto sobre transações ou movimentações financeiras, destacando-se as proposições dos deputados Roberto Campos e Luís Roberto Ponte.
Posteriormente, enquanto o foro parlamentar da reforma tributária discutia em vão, durante os últimos sete anos, a inviável implantação de um IVA unificado em nossa república federativa, o Deputado Marcos Cintra amadureceu, sucessivamente, diversas fórmulas de aproveitamento da tributação das movimentações financeiras.
Primeira, a emenda no 47 à PEC nº 175/95, propunha a substituição gradativa dos tributos federais, que continuariam a existir por três anos, compensando-se, enquanto sobrevivessem com o imposto sobre movimentações cobrado dos mesmos titulares. A fórmula incorporaria novos contribuintes ao esforço fiscal, permitindo a redução das alíquotas dos demais impostos ou, afinal, sua supressão.
Era um mecanismo prudente que permitiria uma avaliação da eficácia do novo imposto sem nenhum risco. Essa vertente admitiria, inclusive, a possibilidade de adoção do imposto sobre movimentações como técnica de arrecadação antecipada a serviço do sistema tradicional que poderia terminar sendo mantido. Uma técnica barata capaz de suprir as lacunas dos tributos tradicionais, tornando-os mais eficientes, ao alcançar o mundo da informalidade, da evasão e da sonegação.
Segunda, a PEC no 183/99, previa um sistema múltiplo, com ênfase ao imposto sobre movimentações financeiras, que seria dotado de um adicional homônimo, para financiamento da seguridade social, ao lado de impostos especiais sobre bebidas, cigarros, automóveis, telecomunicações, energia e combustíveis, além de um imposto de renda marginal, sobre altos rendimentos e sobre ganhos no mercado financeiro, abolindo-se a tributação da renda das pessoas jurídicas.
Terceira, sugeria a adoção do imposto sobre movimentações financeiras como “imposto social”, substituto de todas as contribuições sociais das empresas, destinadas ao financiamento da seguridade social, com o intuito de desonerar os encargos sociais das empresas e, assim, fomentar o emprego.
Quarta, a fórmula materializada na PEC em foco, que ousa preconizar a substituição imediata de todos os impostos federais arrecadatórios, assim como de quase todas as contribuições sociais federais, pela incidência, não única mas predominante sobre a base das movimentações financeiras.
A simplicidade operacional dessa incidência, sua leveza jurídica e administrativa, seu baixo custo e seu vasto alcance de escape difícil, conferem, a ela, excepcional agilidade e flexibilidade como instrumento fiscal oferecendo, ao formulador de políticas tributárias, um vasto cardápio de utilizações alternativas, de que as fórmulas acima relatadas constituem boa ilustração.
Essas características que, de um lado, tornam o tributo sobre movimentações financeiras incomparavelmente vantajoso, em relação a qualquer outro, como instrumento da função financeira do imposto, isto é, como mecanismo eficaz de arrecadação de receitas, de outro lado, deixam de mãos vazias aqueles formuladores com pendores intervencionistas, aqueles que insistem em explorar as funções extrafiscais do imposto.
Está claro que, a prevalecer o intervencionismo fiscal, o tributo sobre movimentações poderia ser adotado como instrumento auxiliar de arrecadação, ao lado de outros tributos tradicionais, eventualmente compensando-se com eles. Seria optar pela continuidade de um sistema tributário complicado, pesado e caótico, dotando-o apenas de um alcance mais amplo, com redução da evasão.
Convém atinar para o que os adeptos do IMF como arrecadação antecipada de outros tributos não têm observado, isto é, que a arrecadação adicional que vier a ingressar, de um lado, com o alcance sobre a informalidade, pode escoar pelo outro lado, via compensação, pelo emprego artificioso do planejamento dos demais tributos, cujas lacunas continuariam a emprestar o mesmo caráter distorcido que se denuncia no sistema atual.
A escolha política do IMF como apenas mais um tributo, como vem ocorrendo com a CPMF, é decepcionante, porque mantém as distorções dos tributos tradicionais e impede o florescimento de um cenário em que as qualidades do novo tributo suplantassem os defeitos dos tributos tradicionais.
O emprego ótimo do tributo sobre movimentações, na visão liberal de seu formulador, implicaria optar pelo reforço da função financeira do tributo em sua pura instrumentalidade arrecadatória, descarregando o sistema fiscal, exceto no âmbito do comércio exterior, de suas confusas responsabilidades extrafiscais, as quais deveriam transferir-se, com maior eficácia e transparência, para o lado da despesa pública.
Desapareceriam, com os tributos atuais, as renúncias fiscais e seu cortejo de privilégios obscuros e regimes de exceção, resgatando-se a função de fomento do orçamento público. É só nessa vertente que a adoção do tributo sobre movimentações poderia cumprir a promessa de propiciar aos empreendedores e a toda a população a descompressão das obrigações e controles fiscais, o enorme alívio de custos, preocupações e riscos fiscais, liberando energias para utilizações mais proveitosas.
O mito da exação única
A história do pensamento econômico oferece pelo menos duas vertentes da teoria do imposto único. Uma, superada pelo próprio desenvolvimento dos modos de produção, foi a idéia fisiocrática da tributação única do fator terra.
Outra, que jamais chegou a ser discutida seriamente, a do imposto único sobre o capital, foi formulada, no pós-guerra, pelo brilhante economista liberal francês Maurice Allais, laureado com o Prêmio Nobel de Economia de 1987. Mas hoje, o próprio Monsieur Allais, sem renunciar a seu imposto sobre o capital, recomenda expressamente, à União Européia, um tripé fiscal que inclua, ademais, a tributação moderada da renda e do consumo pelo critério do valor adicionado, abandonando, portanto, o mito do imposto único.
As utopias do encargo fiscal único encerrariam, talvez, um componente psicológico regressivo, o desejo de fuga das complexidades da vida social e de retorno a uma simplicidade pastoral, o devaneio de uma vida desprovida de constrangimentos fiscais. A isso se opõe o dogma patriarcal, repressivo, da necessidade de sistemas tributários complexos capazes de amputar toda a variedade de formas possíveis da pujança econômica.
Segundo uma perspectiva de psicologia do imposto, a força magnética da idéia do imposto único não repousa tanto no atrativo intelectual da solução única, que seduz um número reduzido de especuladores intelectuais sensíveis ao fascínio das teorias unificadas, dos sistemas absolutos, das arquiteturas fechadas. Pois, embora essa sedução se enraíze naturalmente no espírito humano, é certo que a época pós-moderna consagrou o triunfo do múltiplo, do diverso, do fragmentário, do aberto e do relativo. A complexidade, diversificação e pulverização dos sistemas tributários contemporâneos é o espelho de idênticas características das sociedades no mundo atual.
Mas sua força deriva, sobretudo, de uma pulsão libertária profundamente arraigada no coração dos homens, de uma disposição anárquica, de uma aversão à opressão, muito consistentes com o individualismo exacerbado, típico de nossa época.
Avulta uma percepção de incômodo em relação ao poder de intervenção fiscal do Estado na vida privada dos cidadãos. A complexidade crescente dos sistemas fiscais faz multiplicar as instâncias de controle. Faz adensar as redes captadoras de informação. Faz proliferar os rituais de exercício da cidadania fiscal que passam a consumir mais tempo e mais energia dos cidadãos contribuintes, tornando-se sufocantes e alimentando, neles, mais do que a aversão ao imposto, o rancor contra os aparelhos burocráticos fiscalizadores.
O mal-estar fiscal decorre, desde logo, do sentimento de impotência do indivíduo em face do poder coercitivo do Estado. Agrava-se o estresse fiscal à medida que as obrigações fiscais se pulverizam e os regimes fiscais se diversificam, ensejando uma competição crescente, entre os agentes econômicos, por situações fiscalmente mais vantajosas. O indivíduo se vê preso a uma armadilha, forçado a participar de um jogo de obstáculos, entre as permissões e proibições no interior de uma densa floresta fiscal, premido, de um lado, pelos agentes da repressão, e de outro lado, pelo imperativo de sobrevivência em busca de não perder posições em relação aos jogadores concorrentes.
Esse empenho de energia, a contragosto, em mesquinhas atividades meio a serviço da instrumentalidade fiscal, desperdiçada no acúmulo de papéis, documentos, provas, cuidados, prazos, truques, cálculos, planejamentos, socorrendo-se em auxiliares, contadores, advogados, consultores, gera notável desconforto e coloca o contribuinte, a cada momento, no limiar da inadimplência, da evasão, da delinqüência, da desobediência e da revolta fiscal.
A idéia da exação única sempre acenou com uma promessa de alívio substancial desse desconforto, creditado à simplicidade e homogeneidade da contribuição única. Mas o lado oposto da moeda está em que todos aqueles que tenham conquistado situações de privilégio e vantagens obscuras, dentro de sistemas fiscais caóticos, aqueles agentes mais aptos ao sucesso na competição fiscal, os sócios ocultos do caos fiscal, tendam a resistir aos riscos da transparência, que está no bojo da exação única.
A simplicidade e transparência de um imposto universal são armas da cidadania contra aqueles agentes anti-sociais que, sempre à caça de privilégios fiscais, parasitam e saqueiam a comunidade em proveito próprio. Sistemas fiscais caóticos são viveiros do comportamento parasitário.
Se a vida dos homens em comum não é possível sem a adesão a um “Contrato Social”, cada um de nós desejaria legitimamente que a necessária contribuição ao Bem Comum pudesse ser a mais indolor possível, que pudesse exigir de nós pouco ou nenhum esforço, que não nos incitasse à competição com os concidadãos, e também, que pudesse manternos a salvo de desassossego ante a atuação investigatória e repressiva do Estado.
Vê-se claramente, então, como a reivindicação de um sistema tributário leve, simples, automático, universal, não-declaratório, módico, eqüitativo, dificilmente fraudável, assentase sobre sólidos fundamentos da psicologia fiscal.
Esses são os bons fundamentos da legitimidade do imposto, que asseguram o consentimento, pressuposto subjetivo indispensável de uma institucionalidade fiscal eficaz.
Para completar o rol dos requisitos do “bom imposto”, costumeiramente referidos pelos doutrinadores tributários, só faltam duas, a progressividade e a neutralidade alocativa, que convém examinar mais detidamente adiante.
Imposto “único” não é exação única
O nome do “imposto único” é apenas apelido, é um nome de fantasia.
O nome jurídico, sugerido pela PEC em foco, é de “imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira”.
O nome jurídico é complicado, é para uso de especialistas. Para uso comum, entre “imposto do cheque”, “imposto sobre transações”, “imposto sobre débitos bancários” ou “imposto sobre movimentações financeiras”, o último é o menos impreciso, mas não deixa de ser um conceito abstrato e incomum, um acréscimo improvável ao referencial lingüístico popular.
Já o nome de “imposto único federal”, a despeito de sua imprecisão, é facilmente identificável e tem a vantagem de denotar a peripécia que se materializa neste momento histórico, com a PEC no 474/01, como etapa integrante do movimento pelo imposto único, deflagrado na década passada, idéia já difundida no imaginário popular.
O uso do nome “imposto único federal”, em lugar de um menos impreciso porém menos decodificável “tributo sobre movimentações financeiras”, tem inegável efeito comunicativo, apelo mercadológico e eleitoral, ao qual não haveria por que renunciar.
Mas é certo que o prof. Marcos Cintra jamais pretendeu, nem em seus escritos mais antigos, menos ainda em suas proposições recentes, que o que chamou, sucessivamente, de imposto único, imposto único sobre transações, imposto único federal viesse a ser um imposto absolutamente exclusivo, nem um tributo efetivamente único.
Não existe a intenção de estabelecer, no sistema tributário brasileiro, uma política de terra arrasada. Longe disso, verifica-se que a PEC nº 474/01 reconhece e respeita a excelência do arcabouço jurídico constitucional tributário em vigor, a ponto de procurar amoldar a revolução tributária que preconiza, muito habilmente e com alterações mínimas, no interior dessa moldura tão longamente desenvolvida e tão festejada por nossos doutrinadores tributários.
O tributo que está sendo proposto, ao mesmo tempo imposto e contribuição (social) sobre movimentações financeiras, não é imposto único. Pretende ser o imposto arrecadatório predominante, responsável pela parte mais substancial das receitas do Estado, sem deixar de conviver com outros impostos regulatórios.
Também não é tributo único, convivendo com as taxas de serviço e taxas de polícia, com as contribuições de melhoria, com as contribuições especiais, subdivididas em contribuições sociais, corporativas e interventivas e com os empréstimos compulsórios, enfim, com todos os demais tributos contemplados em nosso Estatuto Político.
Fica preservada, na sua inteireza, a seção dos princípios gerais do sistema tributário nacional, esculpida nos artigos 145 a 149, que inauguram o capítulo tributário da Constituição de 1988, onde se consubstanciam os resultados de décadas de evolução da tributarística brasileira.
Não é exação única, só quer ser quantitativamente hegemônica, sem prejuízo de conservar-se qualitativamente solidária da diversidade de construções encontradas no ambiente jurídico em vigor, as quais são conquistas irrenunciáveis porquanto balizam o exercício da cidadania tributária em ambiente democrático.
Sem questionar as conquistas de que se orgulha o Direito Tributário Brasileiro, apenas almeja concentrar em uma única fórmula simples, automática, transparente, universal, dificilmente escapável, a missão financeira fundamental do tributo, a essência financeira do tributo, que é a arrecadação de receitas necessárias ao financiamento da atuação genérica do Estado.
Isso, sem prejuízo dos tributos, financeiramente pouco significativos, dotados quer de função regulatória, como os impostos sobre comércio exterior, quer de feição finalística específica e circunscrita, como as taxas e as contribuições corporativas e interventivas.
Essa riqueza de instrumentos é desejável e não precisa ser demolida. Essa diversidade de encargos não assoma a massa dos contribuintes no seu dia-a-dia, mas afeta, apenas esporadicamente, aqueles agentes que se envolvam em relações sinalagmáticas em vista de uma contraprestação estatal específica. São encargos de reduzida expressão financeira, que não fazem sombra ao tributo “único”.
Por exemplo, é perfeitamente razoável que o viajante internacional pague, uma vez em cada cinco anos, uma taxa de valor irrisório pela emissão e controle de seu passaporte. Não tem nenhum cabimento a decepção ingênua de quem se escandaliza com o fato de a proposta do imposto supostamente único não querer abolir, por exemplo, a taxa de passaporte. O passaporte representa atuação específica do Estado em favor de contribuintes determinados e pouco numerosos, não fazendo sentido fazê-la financiar por todos mediante o imposto, que é tributo genérico e se destina ao financiamento de prestações estatais genéricas disponíveis para todos.
A atuação genérica do Estado federal, financeiramente expressiva, bem como a atuação previdenciária sob regime de repartição, também financeiramente expressiva, passam a ser custeadas por um tributo único incidente sobre a base das movimentações financeiras.
A PEC no 474/01 ostenta a preocupação escrupulosa de introduzir um novo paradigma financeiro tributário, uma revolução no financiamento básico do Estado, uma fórmula arrecadatória hegemônica, sem danificar em nada nossa boa arquitetura jurídica tributária em suas dimensões não estritamente atinentes ao financiamento público genérico.
Obviamente não seria realista pretender liquidar, em nome do mito do imposto único, a diversidade e a sofisticação jurídica qualitativa resultante de trabalhos e demorada sedimentação histórica.
Correlativamente, não seria sensato ver menosprezada a alteração proposta sob injusta alegação de timidez, por deixar de destruir o elaborado e diferenciado aparato jurídico reinante. É que a simplicidade buscada não se confunde com simplismo. A tremenda simplicidade do mecanismo de operação, do tributo arrecadatório federal predominante, que se propõe, conjuga-se com alta sofisticação tecnológica e jurídica.
A simplificação tributária proposta não pressupõe truculência antijurídica. A arrecadação simplificada não implica regressão a um arcabouço jurídico tosco. A proposta deveras não atende, nem deveria satisfazer, a demanda simplória pela extinção de todas as figuras tributárias constitucionais diferentes do imposto supostamente “único”.
É admirável constatar-se como a ambiciosa revolução tributária proposta se esmera em evitar causar estragos no estatuto constitucional tributário em vigor e acomoda-se aos paradigmas tributários constitucionais sem transtornos.
As alterações normativas constitucionais propostas são, comparativamente, muito menores do que aquelas que pululam na PEC no 175/95, dita da “reforma tributária”, embora restrita, essa última, à modesta ambição de unificar meramente a tributação do consumo pelo valor adicionado.
A PEC em exame ostenta um propósito de financiamento público equilibrado, revestese de uma articulação jurídica prudente, impregna-se de uma concepção racional que desafia preconceitos arraigados, alicerça-se em evidências empíricas colhidas em seis anos de prática da CPMF e repercute uma demanda social identificável.
Prudência, preconceito e propósito racional
A regra de ouro da teoria das reformas tributárias consiste em evitar a queima prematura de ideias promissoras mediante implementação imprudente. Mas a inércia, a apatia, a acomodação, a capitulação ante o preconceito, não devem ser o desembarcadouro do receio da desventura.
O caminho da boa reforma tributária é um delicado fio da navalha, entre o imobilismo defensivo e o ímpeto descuidado, entre o rígido formalismo jurídico e a barbeiragem tecnocrática, entre a desconfiança preconceituosa e a adesão irrefletida, entre o interesse geral idealizado e os interesses concretos articulados.
O motor último da reforma é a demanda social. Uma vez que essa demanda não é monolítica, cabe ao reformador perseguir uma resultante equilibrada de sua composição multifacetada.
Prosperou, no início da década passada, uma demanda bem vista pelo setor industrial, pela adoção de um imposto sobre vendas no varejo, incidente na ponta do consumo, renunciando-se à tributação do consumo pelo valor agregado.
Evidentemente desequilibrada, a proposta aliviaria os encargos fiscais do setor industrial, mas sobrecarregaria os setores comercial e prestador de serviços.
Inspirada no modelo norte-americano, a demanda omitia as demais características daquele modelo, todas inexistentes no Brasil, a saber, um poderoso, odiado e onipresente aparelho fiscal repressivo, um imposto de renda predominante sobre as pessoas físicas, a presença de uma classe média pletórica, um imposto sobre a propriedade que alcança, lá, doze por cento da arrecadação total, e aqui, só três por cento.
Descartada essa solução, debruçou-se em vão, anos a fio, sobre a demanda pelo IVA, também desequilibrada, porquanto, além de conflitar com nossa estrutura federativa, favorece o setor industrial organizado, o grande negócio, o ramo exportador, mas prejudica o setor prestador de serviços e a grande massa dos pequenos empreendedores dotados de contabilidade rudimentar.
Ademais, um IVA que substituísse os atuais impostos sobre o consumo, mais as contribuições cumulativas, alcançaria alíquotas astronômicas, superiores a trinta por cento, induziria forte sonegação e resultaria em inevitáveis e indesejáveis desequilíbrios alocativos.
Nesse ínterim, a experimentação com a CPMF floresceu muito acima das expectativas, esvaziando os prognósticos alarmistas sobre desintermediação bancária, deformação dos mercados etc.
Estão maduras, portanto, as condições para uma reforma mais audaciosa, que vá além dos modelos importados, criticados como obsoletos em seus próprios países de origem. Convém-nos uma reforma adequada à nossa realidade, ao nosso estágio tecnológico, ao nosso perfil social, à nossa experiência administrativa.
Viu-se, nesses anos de discussões sobre a reforma tributária, o desfile dos chavões, utilizados de parte a parte, ao sabor da conveniência, ideias feitas do tipo “imposto bom é imposto velho”, “imposto único, imposto iníquo”, “imposto bom é aquele que se consegue cobrar”, e, até mesmo, esta curiosa expressão de passividade e de baixa autoestima, segundo a qual “imposto novo, se funcionasse, já existiria em países mais avançados” (leia-se, abaixo, na sessão “sistema bancário”, a refutação dessa última falácia especificamente no caso do tributo sobre movimentações).
Cabe, nesta altura, questionar alguns preconceitos paralisantes, examinar com olhos limpos algumas situações exemplificativas e convidar os representantes dos vários setores da sociedade, indústria, comércio, serviços, agricultura, extração mineral, bancos, terceiro setor, administração pública fiscal e previdenciária, comunidade científica, juristas, profissionais da contabilidade, auditoria e tecnologia da informação, a externar suas perspectivas a respeito de um cenário tributário cuja base hegemônica passasse a repousar sobre as movimentações financeiras.
Globalização e harmonização tributária
Uma variante tecnicamente mais persuasiva do que aquela falácia acomodatícia, de que “se o imposto sobre movimentações funcionasse de verdade, já teria sido adotado no estrangeiro”, é o libelo de sua suposta incompatibilidade com a harmonização tributária.
Alega-se que a globalização estaria engendrando uma tendência de harmonização crescente dos sistemas tributários, sobretudo no que se refere à tributação dos fatores dotados de maior mobilidade, como o capital imaterial e o trabalho altamente qualificado. Os acordos de não-bitributação se multiplicam, permitindo a dedução recíproca de impostos análogos exigidos por países diferentes sobre o mesmo fato jurígeno tributário.
Nesse contexto, como a tributação das movimentações financeiras não existe na maioria dos outros países parceiros, exceto cinco pequenos países latino-americanos (Colômbia, Equador, Peru, Venezuela e Argentina), sua existência, no Brasil, constituiria um empecilho à harmonização.
Sobressai, no bojo desse estranho raciocínio, um impasse lógico, uma petição de princípio, de que seus enunciadores não estão se dando conta, e que convém esclarecer.
É como se, apanhados no contrapé da globalização, os sistemas tributários nacionais devessem petrificar-se e renunciar a qualquer inovação. Como se a harmonização internacional tivesse conquistado o status de critério prioritário para a adoção de qualquer medida tributária.
A tributação das movimentações financeiras, saudada por muitos especialistas como tributo do futuro, estaria impedida de ganhar esse futuro, já que sua implantação não estaria disponível, imediata e simultaneamente, para todos os países.
É como se fosse preciso desprezar o enraizamento histórico, cultural, endógeno, dos sistemas tributários nacionais. Como se paradigmas transcendentais devessem prevalecer sobre a conveniência local de escolher tributos em função das características sociais, econômicas e políticas de cada país.
Caberia, então, a cada nação, despojar-se de seus tributos eventualmente dissonantes, o que suscita uma delicada questão política de decidir qual deveria ser o perfil tributário hegemônico, a referência da uniformidade que suplantaria a diversidade, doravante interpretada como divergência indesejável.
Salta à vista o exagero fantasioso dessa linha de raciocínio. Está claro que os vetores da globalização e da harmonização tributária subsistem, são reconhecidos, mas não impõem veto ou anátema sobre particularidades tributárias reputadas convenientes por nações soberanas.
Investimento estrangeiro
A objeção comentada acima adquire dimensão mais séria do que se poderia razoavelmente prever quando, por exemplo, no mês de abril passado, a Câmara Americana de Comércio de São Paulo, embora admitindo como excitantes as perspectivas simplificadoras da tributação das movimentações financeiras, decidiu manifestar-se desfavoravelmente à adoção do imposto único federal, porque, em sua visão, documentada em seu endereço eletrônico, isso constituiria um “desastre para o investimento estrangeiro”.
Tal veredicto se alicerça na alegação de que a OCDE e a ONU não reconhecem, no tributo sobre transações, uma base assimilável às bases dos tributos tradicionais, cuja compensação recíproca é admissível no âmbito das convenções internacionais de nãobitributação.
O Brasil, até hoje, não celebrou acordo de bitributação com os Estados Unidos da América. O desinteresse seria deles, e, não, nosso. Disso decorre que os rendimentos, lucros e ganhos, remetidos aos Estados Unidos, sofrem a incidência do imposto brasileiro sobre a renda. Mas a legislação norte-americana admite a compensação do imposto, pago no Brasil, com o imposto de mesma natureza, normalmente de alíquota mais elevada, devido nos Estados Unidos.
Alega-se que o investidor norte-americano, habituado a esse tratamento, ficaria transtornado com a hipótese de não poder mais contar com essa parcela a deduzir de sua obrigação perante o Fisco de seu país e de passar a sofrer a incidência do tributo sobre movimentações, cuja dedução não seria admitida pela legislação americana, em virtude de sua natureza distinta.
É possível que essa condenação exprima uma conclusão precipitada de uma análise equivocada. Mas é um bom exemplo de como a inovação, ao abalar hábitos arraigados, engendra resistências nem sempre razoáveis.
Tome-se o exemplo da distribuição de lucros e dividendos, que, desde 1996, não sofre tributação no Brasil, com a justificação de que já teria havido incidência sobre o lucro da empresa, na forma do IRPJ. Remetidos aos EUA, estariam sujeitos à tributação local plena, não havendo nada a deduzir.
Se fosse adotado o imposto único federal, como proposto, a remessa passaria a sofrer a incidência sobre a movimentação, digamos, à alíquota de 2% (dois por cento). Mas, primeiro, a remessa seria maior, pois o imposto mais contribuição sobre lucros, de 34%, teria sido abolido! Fica patente o desatino de repelir uma incidência de apenas dois por cento, logo depois de beneficiar-se de um alívio de trinta e quatro por cento! Onde estaria o desastre?
Segundo, o ônus é do remetente, o contribuinte do tributo sobre movimentações é o titular da movimentação no Brasil, não é seu beneficiário no exterior, ou seja, em suma, o investidor estrangeiro terá auferido substancial incremento e não redução de seu retorno líquido o que faz parecer improcedente a análise referida.
No caso de remessa de outras espécies de rendimentos, como, digamos, remuneração de serviços de assistência técnica, deve observar-se que o respectivo imposto de renda retido na fonte, no Brasil, à alíquota de 15%, é assaz freqüentemente assumido, contratualmente, pelo remetente no Brasil, mediante o correspondente reajuste da base de cálculo, de tal sorte que o beneficiário, no exterior, receberá a remuneração integral, líquida de imposto, sujeita ao imposto vigente em seu país.
Nesse caso, a abolição do imposto de renda, com a adoção do imposto único federal, em nada mudaria a remuneração auferida pelo beneficiário no exterior, que permaneceria idêntica, mas aliviaria o ônus do remetente no Brasil. Não se vê, aí também, onde estaria o desastre apontado. Também nesses casos a análise referida parece improcedente.
Ainda que assim não fosse, caberia observar, por fim, que a missão intrínseca do sistema tributário, longe de ser a de propiciar deduções fiscais a investidores externos perante o Fisco de seus países, é, antes, a de arrecadar recursos necessários à operação básica do Estado. Eventual estímulo ao investimento externo é atribuição da política monetária, e, não, da política tributária.
Substancialidade econômica da base do imposto
Mais de um jurista proferiu opinião de que seria impossível tributar a movimentação financeira na medida em que ela não corresponderia a nenhuma matéria econômica palpável e, conseqüentemente, não poderia constituir base imponível legítima. O sofisma propagou-se, nos primórdios da implantação do antigo IPMF, mas não prosperou nos tribunais.
O argumento impressiona os leigos, mas carece, ele sim, de substância lógica palpável. É um raciocínio mais mitológico do que científico e ignora os alicerces históricos da teoria do imposto.
A história das práticas tributárias concretas revela que jamais país algum tributou exclusivamente verdadeiras substancialidades econômicas.
A essência da técnica tributária sempre foi, e continua sendo, a de gravar indícios de capacidade contributiva, que não se confundem, obrigatoriamente, com puras grandezas econômicas.
Os antigos “direitos de passagem” eram fórmulas oportunas, ainda que toscas, de captar uma capacidade contributiva presumida pela passagem de um veículo ou de uma carga.
O imposto sobre janelas, ou sobre fachadas, ao qual se credita, como exemplo, a arquitetura da cidade de Amsterdã, com suas casas compridas de fachadas estreitas e janelas diminutas, era uma fórmula praticável, ainda que imprecisa, de ferir a riqueza presumida pela ostentação de espaços e janelas sobre a paisagem.
Algumas técnicas impositivas modernas procuram determinar, após complexos mecanismos de apuração, o que poderia aproximar-se da renda líquida, do lucro líquido, do valor agregado, como grandezas econômicas substanciais, como matérias eminentemente suscetíveis de sofrer uma tributação justa.
Seriam essas as bases tributáveis ideais porque seriam a expressão mais fiel do poder aquisitivo. Acontece que a complexidade da apuração individualizada dessas bases inviabiliza edificar um sistema tributário exclusivamente sobre elas.
Nenhum país do mundo tributa exclusivamente o lucro líquido, a renda líquida e o valor adicionado. A contabilidade exata dessas grandezas só é acessível a número reduzido de grandes contribuintes. Sua apuração é sempre imperfeita, dependendo de uma série de convenções contábeis e simplificações legislativas que são, também, deformações. Sua verificação completa, por sua vez, sem uso de amostragem, é impraticável para qualquer Fisco do mundo, por mais bem aparelhado que possa ser.
Então, todos os sistemas fiscais do mundo apelam, em grau maior ou menor, para técnicas de estimação, de presunção, de forfait, a partir de indícios, de tal sorte que a correlação entre o tributo e a verdadeira capacidade contributiva é sempre insatisfatória.
No Brasil, apenas quinze por cento das empresas apuram o lucro real e apenas três por cento da população ajustam a renda líquida tributável pelo formulário completo. O lucro presumido, o Simples, o faturamento ou a receita bruta, que são as bases tributárias predominantes, também contêm pouca substância econômica, constituem aproximações da capacidade contributiva tão ou mais grosseiras do que a movimentação financeira.
Muitas críticas apressadas sobre a tributação das movimentações financeiras simplesmente ignoram essa realidade. Insta deixar claro que tais críticas não procedem porque estão impregnadas de uma visão mitológica da tributação da renda líquida e do valor agregado, a qual não existe concretamente, em estado puro, em lugar nenhum.
Conteúdo da movimentação financeira
Quem afirma que a movimentação financeira não guarda nenhuma correlação com a capacidade contributiva, porquanto não contém substância econômica, comete uma impropriedade. Pois não percebe, ou esconde, que está raciocinando com suporte no paradigma da renda, ou mais precisamente, da remuneração líquida, ou do acréscimo patrimonial líquido.
É preciso ressaltar esse equívoco elementar. Ainda que o acréscimo patrimonial possa ser eleito como base tributável ideal, seria abusivo considerá-lo como signo exclusivo da capacidade contributiva. Por outro lado, se a movimentação financeira nem sempre representa renda ou acréscimo patrimonial (mas freqüentemente o representa, sim), nem por isso deixa de atestar capacidade contributiva.
Um exemplo típico é o do empréstimo. Mostra a contabilidade que o recurso que sai do patrimônio do emprestador, para ingressar no patrimônio do tomador, e afinal retornar ao emprestador, não implica alteração definitiva dos respectivos patrimônios. Já a remuneração do empréstimo, que é o juro, diminui o patrimônio do tomador que nele incorre e aumenta duravelmente o patrimônio do emprestador que o aufere.
Então, é justo que o imposto de renda não incida sobre o valor do empréstimo, e sim, apenas, sobre a receita líquida de juros, auferida pelo emprestador, admitida, para o tomador que os tenha pago, sua dedução como custo ou despesa.
Ora, essa rotina lógica, válida dentro do universo mental do imposto sobre a renda, não pode excluir outras dimensões do fenômeno.
É evidente que o recurso de empréstimo tem, sim, substância econômica, é manifestação do crédito, que é grandeza econômica quantificável, e denota capacidade contributiva de quem o detém. Este recurso, suporte da alavancagem financeira, pode ser usado, gasto, aplicado, rentabilizado, multiplicado, renovado, “rolado”, em suma, explorado economicamente.
É verdade que não constitui renda, portanto seria absurdo tributá-lo com alíquotas elevadas, entre quinze e vinte e sete e meio por cento, do imposto sobre a renda. Mas constitui operação financeira, utilização de capital, indiscutivelmente ato econômico, aliás já submetido, no Brasil, ao imposto sobre operações financeiras, o IOF, de baixas alíquotas, mais a CPMF, os quais seriam substituídos pelo tributo proposto sobre movimentações financeiras. Isso é muito claro e não há motivo para tergiversações, como, aliás, os tribunais já acataram.
Tome-se, agora, o caso habitual do cidadão médio assalariado, que tem, no salário mensal depositado em conta bancária, sua única fonte de renda. Em condições normais, o cidadão não ficará brincando de retirar e repor, inúmeras vezes, o mesmo recurso, de e para sua própria sua conta corrente bancária, quando sofreria incidências repetidas e desnecessárias do imposto.
Caso ofereça um empréstimo, o recurso sairá e voltará, normalmente, uma vez. Normalmente, o recurso sairá, apenas uma vez, para consumo, lazer, caridade, equipamento, manutenção ou aprimoramento da fonte produtora, ou para poupança e investimento.
O recurso saído para investimento financeiro não sofrerá incidência do tributo proposto, conforme comentário na seção abaixo. O restante, no sistema atual, pelo valor líquido das deduções permitidas e acima do piso de isenção, sofreria incidência do imposto sobre a renda, com alíquotas de quinze a vinte e sete e meio por cento e de CPMF, além dos tributos embutidos nos preços dos produtos e serviços consumidos.
No sistema proposto, o recurso sofreria incidência do tributo sobre movimentações, sob alíquota cerca de dez vezes menor que a do imposto sobre a renda, além do montante do tributo, presumivelmente menor que o de hoje, embutido nos produtos e serviços.
Atualmente, metade ou mais dos tributos embutidos nos preços de produtos e serviços são embolsados pelos vendedores e não são repassados ao Tesouro. Constituem receita ilegítima apropriada por empresários delituosos e concorrentes desleais.
Como se pretende, em princípio, manter inalterada a carga tributária e como as receitas do Tesouro não chovem do céu, mas amputam a renda disponível na economia, é claro que não há mágica, o tributo que deixa de sair de um lugar passará a emergir de outras fontes. Como a evasão fiscal é muito alta no Brasil, é de esperar-se, com a incidência universal sobre movimentações financeiras, uma salutar redistribuição do encargo e conseqüente suavização da pressão fiscal.
A redução do componente tributário dos preços dos produtos tenderá a ocorrer na medida em que o empresário deixar de ser depositário de tributos e também na medida em que aquela parcela dos empresários, que hoje escapa ao Fisco, for incorporada ao universo dos contribuintes, sujeitando-se à incidência inescapável sobre as movimentações financeiras.
A situação de um profissional liberal, cuja remuneração seja representada por numerosos cheques de pequeno valor, parte dos quais será empregada no pagamento de fornecedores, difere em pouco ou nada do caso do assalariado. Em ambos os casos o contribuinte se sentirá injustamente tributado na parte movimentada de seus rendimentos brutos que represente custo, que constitua obrigação perante terceiros.
Tende a ser prejudicado, pela incidência sobre movimentações, o contribuinte cuja estrutura de negócio envolva grande volume de movimentações não representativas de ganhos. Isto é, os empreendimentos, individuais ou coletivos, que manipulem recursos de terceiros, que envolvam custos elevados e margens diminutas, seriam prejudicados, ou até inviabilizados, por esse tipo de incidência.
Poderia ser justo, mas não seria simples, prevenir esse efeito, pois, no fundo, implicaria manter uma sistemática de apuração do valor agregado e do lucro líquido. Por outro lado, o efeito não seria necessariamente maléfico, enquanto desestimulasse toda uma gama de negócios especulativos, desprovidos de verdadeira utilidade econômica, envolvendo detenção de ativos com ganhos no jogo da intermediação.
Observe-se que a adoção da base das movimentações financeiras é perfeitamente compatível com a construção de mecanismos de ajuste capazes de tornar a incidência periódica do imposto mais justa e mais adequada à variedade das situações individuais.
Apenas, convém deixar claro que o ajuste e a individualização do imposto pressupõem a sobrevivência de obrigações declaratórias e da interface com o Fisco, ou seja, excluem a vantagem primordial da simplicidade e do baixo custo.
Talvez seja preferível sofrer uma incidência grosseira e não estar sujeito a obrigações e verificações fiscais, do que sofrer incidência em sintonia fina, mas permanecer na dependência de um relacionamento, permanente e custoso, com o Fisco.
A aposta dos autores da PEC implica a preferência pela simplicidade, pelo baixo custo de operação, pela abolição do regime declaratório, pela eliminação da subjetividade fiscal.
Tributação diferida das aplicações financeiras.
Pretende-se que o tributo não interfira na formação do custo do dinheiro, nem represente uma cunha na remuneração dos ativos financeiros. O tributo proposto incorpora um postulado de neutralidade financeira.
Nas elaborações precedentes de seu modelo tributário, o prof. Cintra imaginara um sistema de contas-espelho, aderentes às contas correntes bancárias, por onde transitariam, sem incidência de imposto, os recursos representativos de aplicações nos mercados financeiros ou de capitais, sofrendo tributação apenas quando retornassem às respectivas contas correntes.
Os negócios celebrados nos mercados financeiros e de capitais estariam protegidos como que numa redoma fora do alcance de qualquer incidência tributária. No retorno à movimentação corrente, as remunerações líquidas obtidas sofreriam a incidência de uma alíquota especial do imposto, o que redundaria, na prática, em um imposto de renda sobre rendimentos e ganhos de capital. Seria a única forma sobrevivente do imposto sobre a renda.
Na versão da PEC em foco, desaparece cabalmente o imposto de renda, aproveita-se a idéia da redoma protegida, que se traduz no princípio do diferimento do imposto, necessidade do sistema de contas paralelas, e preserva-se o requisito da universalidade do imposto, ou seja, não se tributa o recurso que sai para aplicações financeiras, mas tributa-se o recurso que sai para consumo, seja qual for sua origem.
Se o recurso que sai para consumo proveio de aplicação financeira, será tributado pelo montante saído para consumo, e não mais, sobre o rendimento líquido do investimento. As aventuras ou desventuras com papéis financeiros esvaziam-se de qualquer dimensão tributária.
Tributa-se unicamente a movimentação financeira não destinada a investimento financeiro, desaparece qualquer resquício de tributação da renda e a tributação é uniforme, geral e proporcional, independentemente da fonte do recurso.
O modelo proposto não é incompatível com uma tributação diferenciada de rendimentos financeiros e ganhos de capital, mas isso implicaria uma sistemática de controle e apuração de ganhos líquidos, que militaria contra a simplicidade do modelo.
Temos, então, uma base tributária que não discrimina seu conteúdo, que são os recursos movimentados, em função da natureza jurídica ou econômica de sua proveniência, mas discrimina as formas de aplicação dos recursos, protegendo a poupança e o investimento financeiro.
A base tributária proposta resume-se, portanto, rigorosamente, nas movimentações financeiras não destinadas a investimento em títulos ou valores mobiliários.
Renda Consumida
Vistas as considerações precedentes, fica cristalinamente patente que, no caso das pessoas físicas, o tributo único sobre movimentações financeiras funciona como um encargo suave sobre a renda bruta, preservando o investimento financeiro, ou seja, funciona, grosso modo, como tributo sobre a renda bruta não investida, portanto, sobre a renda consumida.
O tributo sobre movimentações financeiras poderia ser concebido como uma fórmula praticável de aproximação daquele chamado imposto Kaldor a que um candidato presidencial se refere sem explicar como sonha implementá-lo na prática.
O imposto sobre a despesa, ou sobre a renda consumida, expenditure tax, desenvolvido em 1955 por Nicholas Kaldor, posteriormente retomado por James Meade, economista britânico Prêmio Nobel de 1977, tem excitado a imaginação dos reformadores tributários, esbarrando sempre, contudo, em sérios obstáculos de implementação.
A escolha da base das movimentações financeiras que ocorram fora dos mercados financeiros e de capitais, que é o núcleo da proposta em exame, significa opção por uma variante simplificada da tributação da despesa.
O sistema tributário daí decorrente, uma vez provada sua funcionalidade, estaria potencialmente apto a converter-se, evolutivamente, num sistema de tributação progressiva da renda pessoal consumida, que é o grande sonho dos modernos reformadores tributários.
Bastaria, no futuro, havendo uma demanda social organizada e madura nessa direção, fazer-se alguma concessão a complexidades suplementares, em troca de um refinamento da característica de eqüidade do tributo.
Vícios e luxos. Ambiente. Tributação interventiva
O estudo dos sistemas tributários comparados aponta, entre outras soluções bastante comuns, à tendência de sobretaxar itens de consumo classificáveis como luxo, vício, consumo legalmente restrito como pornografia e armamentos, artefatos poluidores, combustíveis não-renováveis, jóias e objetos de arte, bens duráveis.
Circulação de cigarros, bebidas, perfumes, drogas, armas, fármacos controlados, itens de consumo conspícuo. Automóveis, barcos de recreio, eletrônicos sofisticados.
Uma vez adotado o imposto único federal, a correlativa extinção, proposta, do IPI, somada, num futuro especulativo, à do ICMS, acarretaria substancial barateamento dos preços dos bens referidos, o que poderia, circunstancialmente, considerar-se indesejável.
São situações exemplificativas em que o formulador de políticas públicas poderia lastimar a inaptidão do tributo sobre movimentações financeiras a servir como instrumento interventivo.
Cumpre, aqui, voltar a sublinhar as ricas potencialidades do instrumental jurídico tributário, com sede no art. 149 da Constituição Federal, que os proponentes cuidaram de preservar.
A CIDE, contribuição de intervenção no domínio econômico, ali parametrizada com grande flexibilidade, podendo inclusive prover-se de fatos geradores idênticos aos de outros tributos, existentes ou extintos, é a solução perfeita para suprir essas lacunas. É um tributo pouco explorado e recentemente redescoberto.
Já temos agora, em pleno funcionamento, o precedente da CIDE dos combustíveis. Conviria instituir uma análoga CIDE dos cigarros. É óbvio que a desoneração tributária dos cigarros seria desastrosa para as políticas públicas na área da Saúde, além de promover significativa amputação das receitas públicas.
As estatísticas atuais mostram uma correlação deficitária entre o aporte tributário dos cigarros e a despesa pública imputável ao tratamento de doenças causadas pelo consumo de cigarros. A CIDE poderia ser facilmente calibrada para cobrir esse déficit. Ela tem a vantagem de ser tributo finalístico, vinculado a afetações determinadas, o que lhe confere eficácia interventiva muito mais precisa do que a dos impostos sobre a produção e o consumo.
A CIDE seria o instrumento adequado para substituir, com superioridade, a falta que se poderia lastimar do IPI seletivo, cuja abolição está sendo proposta. A principal vantagem é que a CIDE não tem vocação arrecadatória e pode modular-se, com sintonia fina, para atingir finalidades interventivas bem delimitadas.
A figura da CIDE é o instrumento mais adequado, em nosso arcabouço constitucional tributário, para incorporar, também, os ditos impostos ambientais, que a OCDE promove e que começam a brotar pelo mundo.
Uma nova CIDE, crucialmente relevante para o equilíbrio sistêmico do modelo proposto, seria a CET, contribuição de equalização tributária, que o Deputado Marcos Cintra apresentou na forma de projeto de lei complementar, com o intuito de acrescentar, aos preços dos produtos e serviços importados, um ônus eqüivalente ao efeito cumulativo do imposto único federal sobre a produção nacional a ser estimado mediante utilização da matriz intersetorial apurada e publicada pelo IBGE.
O mecanismo de desoneração das exportações, mediante rebate do tributo acumulado ao longo da cadeia produtiva, aplicável na saída para o exterior, e a CET, aplicável na importação, constitui requisito básico de viabilidade do tributo sobre movimentações. Mas isso é matéria regulamentar, cujas diretrizes genéricas podem veicular-se em lei complementar.
A extinção do IOF, imposto sobre operações financeiras, não seria indispensável para o modelo, pois o IOF é imposto inerentemente regulatório, e o tributo único sobre movimentações pretende substituir tributos arrecadatórios.
A proposta satisfaz um intuito simplificador, inclusive levando em conta que o fato gerador do IOF tem ampla área de interseção com o tributo sobre movimentações. Caso não seja preservado e sua extinção possa inquietar a autoridade monetária, eventualmente desejosa de algum instrumento tributário de intervenção nos mercados financeiros, poderia ser perfeitamente pertinente lançar mão, também nesse setor, da instituição de CIDE.
Tributação patrimonial
A extinção do ITR, imposto territorial rural, também não seria indispensável para o modelo, uma vez que o ITR teria vocação predominantemente regulatória, com arrecadação irrisória.
Também aí a proposta satisfaz um intuito simplificador, considerando que a inépcia histórica dessa complicada modalidade tributária, no Brasil, justificaria descartá-la de vez, assim cultivando, inclusive, coerência com a feição não-declaratória do modelo pretendido.
Na verdade, o ITR tem sido leiloado pela União, nas últimas tentativas de reformas tributárias, quer em favor dos Estados, quer dos Municípios, dadas às dificuldades de implementá-lo contra os interesses de um segmento de proprietários rurais, politicamente influente.
Mas fica estranho, no contexto dos sistemas tributários comparados, que o Brasil se devote a tributar a propriedade urbana e se omita em tributar a propriedade territorial rural, inclusive para reprimir a especulação com terras estocadas como reserva de valor.
A eliminação final de qualquer modalidade de tributação da terra, no Brasil, poderia revelar-se nefasta para a imagem internacional de um país apontado como campeão de desigualdades de renda e riqueza, de baixa exploração do potencial agrícola e com um quadro agudo de conflagração no campo.
O ITR poderia ser preservado, não precisando ser, necessariamente, declaratório. Mas, se for considerada conveniente sua supressão, nada impede sua substituição por CIDE, com arrecadação vinculada à administração da reforma agrária.
Um ponto fraco, reconhecido pelos estudiosos que se detiveram sobre os modelos de tributação da renda consumida, é que os detentores de propriedade se vêem numa situação favorecida, relativamente aos desprovidos de propriedade, inclusive podendo valer-se de permutas para contornar a incidência do imposto.
O tributo proposto representa certeiro desestímulo à aquisição e à transmissão de patrimônio não financeiro. Há um apenamento da imobilização e também de seu inverso, da mobilização de ativos não financeiros.
Pode-se acusar o modelo de favorecer, até certo ponto, uma coagulação patrimonial. O modelo favorece o direcionamento da renda poupada a investimentos em títulos e valores mobiliários.
Como o modelo se circunscreve, inicialmente, ao âmbito federal, permanecem as modalidades estaduais e municipais de tributação da propriedade territorial urbana e da transmissão patrimonial entre vivos e por causa de morte. Vale observar que, segundo os especialistas, a globalização tende a promover uma retomada da tributação do patrimônio não-mobiliário, exatamente pela sua inaptidão à mobilidade transfronteiras.
A tributação da fortuna pessoal costuma ser apontada, pela doutrina, precisamente, como um antídoto contra a coagulação patrimonial mencionada. É também com esse intuito que Maurice Allais recomendava a tributação do capital.
É que o imposto sobre fortunas apresenta esta peculiaridade de gravar a fruição do patrimônio, estimulando sua mobilização e sua rentabilização, punindo a coagulação, ou seja, o oposto do que faz o tributo proposto. Um poderia equilibrar o outro.
Assim, o imposto sobre grandes fortunas, que está sendo suprimido sem haver nunca sequer entrado em vigor, talvez pudesse ser preservado, a despeito de sua declaratoriedade, pouco apreciada pelos autores do modelo proposto, considerando que ele atingiria um número reduzido de pessoas detentoras de patrimônios muito superiores à média, talvez pouco mais de cem mil, funcionando como um contrapeso, social e progressivo, sem ambição de grande produtividade arrecadatória, ao modelo proposto.
Regressividade, progressividade, proporcionalidade, neutralidade
O decantado efeito redistributivo do sistema tributário tem-se revelado relativamente decepcionante na maioria dos países. Pareceria mais sensato admitir que, havendo vontade política redistributiva, seriam as alocações orçamentárias, não o sistema tributário, o instrumento mais eficaz.
O tributo proposto enfrenta, como crítica mais repetitiva, a de que seria regressivo. Mas não é isso que cabe discutir, e, sim, se essa regressividade não seria talvez bem menor e muito menos nefasta, do que a regressividade dos tributos que se propõe substituir.
As simulações publicadas pelo prof. Marcos Cintra sustentam essa tese, e os estudos recentemente divulgados pela Receita Federal a corroboram. Mais que isso, verificou-se empiricamente que, ao contrário do que se imaginava, as contribuições cumulativas incidentes sobre o faturamento, o PIS/PASEP, exibem presença, no consumo, quase uniforme e proporcionalmente distribuída em todas as faixas de poder aquisitivo, enquanto o IPI, imposto sobre o valor adicionado, seletivo, rico em isenções e alíquotas diferenciadas, apresenta, no entanto, uma progressividade quase imperceptível, assim como o ICMS.
O estudo “Progressividade no consumo”, divulgado pela Secretaria da Receita Federal, após desdobrar a constatação de que as contribuições cumulativas se comportam quase como um IVA ideal, do ponto de vista de seu impacto sobre os consumidores, observa que as irregularidades do ICMS e do IPI, tanto em seu perfil legislativo quanto em sua aplicação em campo, afastam-nos do figurino do IVA ideal e conclui sugerindo maior cautela aos adeptos da reforma do IVA.
Reforça-se a tese de que tributos cumulativos moderados, simples, uniformes e facilmente verificáveis, apresentam impacto menos distorcido do que impostos sobre o valor adicionado de alíquotas elevadas, cheios de exceções, sempre sujeitos a forte evasão.
O imposto de renda brasileiro, por sua vez, é falsamente progressivo, porque sua base é muito restrita e muito irregular, e, também, porque a progressividade da tabela de incidência é bastante mitigada e não se estende ao produto do capital.
Predomina a informalidade e a evasão. Rentistas, empresários e profissionais autônomos são nitidamente favorecidos em relação aos trabalhadores assalariados. O imposto teoricamente mais justo acaba sendo, no Brasil, extremamente iníquo. Constitui, como já comentado, incômoda assombração apenas para um segmento restrito da classe média assalariada.
A escolha de uma base abrangente, regular, uniforme, difícil de ocultar, por si só já reduz a regressividade do sistema.
A substituição do imposto de renda pelo tributo proposto implicaria, de imediato, a expansão do universo contributivo, dos cerca de 6 milhões de contribuintes pagantes do IRPF, para os cerca de 38 milhões de contribuintes da CPMF.
Essa incorporação, à população contributiva, de um vasto segmento de informais e evasores não alcançados pela administração dos impostos tradicionais, implica disseminação e concomitante suavização do esforço contributivo, portanto, um perfil mais justo da pressão fiscal.
O restante da população de 170 milhões, que permanece à margem das operações bancárias, não sofrerá o impacto direto do tributo proposto sobre seus rendimentos brutos, o que, inegavelmente, já é suficiente para que se reconheça um certo grau de progressividade no sistema.
A sistemática do tributo proposto não é incompatível com medidas passíveis de dotar o sistema de uma índole progressiva mais acentuada. Os próprios autores da proposta apontam a facilidade de aplicar alíquotas progressivas em função do volume de movimentações de um mesmo titular por período de tempo, bem como a possibilidade de empregadores assumirem o ônus do tributo sobre os salários pagos até determinado montante.
Resta, por fim, a objeção concernente aos impactos alocativos do tributo sobre movimentações nas cadeias econômicas. Não há como evitar tal impacto sem sacrificar a simplicidade, que é a característica fundamental do tributo proposto. O impacto parece ser desprezível, hoje, sob alíquota de 0,38%, mas ficará bem mais perceptível com alíquota dez vezes maior.
Os estudos do prof. Marcos Cintra vão no sentido de mostrar que as distorções resultantes seriam menores do que aquelas decorrentes da adoção de impostos sobre o valor agregado com alíquota cumulada (ICMS + IPI + Pis/Cofins) muito elevada, da ordem de 34% ou mais.
A alegação é verossímil, pois cada um percebe, intuitivamente, a impossibilidade prática de impedir ampla sonegação de um imposto sobre o consumo, pelo valor adicionado, dessa magnitude. Espera-se que futuros estudos empíricos possam iluminar melhor esse ângulo do problema.
A quem aproveita
As vítimas habituais de nosso imposto de renda pouco abrangente são os beneficiários mais evidentes do sistema proposto. Os médios e altos assalariados do setor formal experimentariam significativo aumento da renda disponível.
Correlativamente, incorpora-se ao esforço contributivo todo um vasto segmento de agentes econômicos antes não alcançados pelo imposto de renda, quer isentos ou imunes, quer informais, evasores e sonegadores. O estudo da Receita Federal, com dados de 1998, aponta 16,9 milhões de isentos do IR, e 11,7 milhões de omissos, a integrar a população sujeita ao tributo sobre movimentações.
Diminuiria a amputação tributária dos rendimentos de aplicações financeiras e de ganhos de capital. Os lucros e dividendos passariam a ser tributados na distribuição, mas deixariam de sofrer a incidência do IRPJ, resultando um ganho líquido também significativo para quem suportava o IRPJ e perda para os que se evadissem do IRPJ e praticassem formas disfarçadas de distribuição.
Perderiam alguma coisa os beneficiários das renúncias tributárias, regimes especiais, deduções localizadas, no âmbito do imposto de renda. Desapareceria, por exemplo, a vantagem tributária do capital de terceiros em relação ao capital próprio, dissolveria-se o atrativo tributário da preferência pelo endividamento.
Cairia muito significativamente o custo do fator trabalho, com o desaparecimento das contribuições patronais e da retenção do imposto de renda na fonte. Este efeito promete ser muito favorável à empregabilidade, assim como à operação dos negócios, especialmente os mais intensivos em utilização de mão-de-obra.
Descomplicaria-se o planejamento tributário dos negócios e tombariam os custos administrativos afetados aos departamentos de tributos, próprios ou terceirizados.
Além dessas linhas gerais, o esmiuçamento dos ganhos e perdas é o capítulo mais motivante das discussões sobre a reforma tributária, devendo merecer investigações e desdobramentos a cargo de todos os setores envolvidos.
Salto quantitativo e problemas qualitativos
Doravante, é a subida de patamar da incidência sobre movimentações financeiras e não ela própria, que pode suscitar inquietações. Sendo muito expressivo o salto quantitativo, da ordem de dez vezes, é provável que as dimensões qualitativas, desse modelo tributário, possam sofrer sensíveis afecções.
Com efeito, a já consagrada experiência da CPMF fez ruírem por terra os receios e aversões expressos nos argumentos tradicionalmente enunciados contra a tributação das movimentações financeiras.
O estudo sobre os impactos da CPMF, de Andréa Lemgruber e outros, divulgado desde 2001 no endereço eletrônico da Secretaria da Receita Federal, deitou uma pá de cal sobre aqueles argumentos, de incredulidade e antipatia, que mancharam muito papel durante a última década.
A experiência fez constatar, e o paper do FMI no 01/67, ali referido, o reconheceu, que a incidência, pelo menos sob alíquotas moderadas, como se deu no Brasil, foi bemsucedida, não engendrou desintermediação bancária, não aumentou a preferência por papel moeda, não reduziu a utilização de cheques ou cartões de banco, não inflacionou preços, não encareceu o custo do dinheiro, não prejudicou o investimento, não causou reestruturações dramáticas nos ciclos de produção, não aumentou a regressividade da carga tributária e influiu pouco na competitividade do produto brasileiro.
Mas é preciso observar que a subida de patamar proposta, da incidência sobre movimentações, não significa uma CPMF maior, um acréscimo aos encargos em vigor, mas, sim, outra coisa inteiramente diversa, um tributo sobre movimentações financeiras no lugar de quase todos os demais impostos e contribuições federais em vigor, uma substituição benéfica de encargos, com perfil distributivo pretendidamente mais disseminado, portanto, presumivelmente mais equilibrado e mais suave.
O que se quer antever é a reação do público, não a um aumento da atual carga tributária, e, sim, a uma reestruturação da atual carga tributária, enfim dotada de um perfil distributivo mais amigável.
A decuplicação da alíquota da CPMF seria, evidentemente, insuportável, enquanto mero acréscimo aos encargos atuais. Acarretaria, ceteris paribus, a duplicação da carga tributária federal, o que está inteiramente fora de cogitação.
A substituição proposta abrange cerca de 60% da arrecadação bruta global brasileira e cerca de 85% da arrecadação federal. O tributo sobre movimentações, tal como proposto, deveria carrear aos cofres públicos, em valores correntes, perto de 240 bilhões de reais, sabendo-se que a arrecadação bruta federal se aproxima de 280 bilhões, dentro de uma arrecadação bruta global de pouco mais de 400 bilhões de reais.
É um alvo ambicioso, cuja implementação poderia exigir uma alíquota de incidência, sobre cada movimentação financeira, de aproximadamente 4% (sendo dois no crédito e dois no débito).
Esse cálculo resulta de uma extrapolação, relativamente grosseira, a partir do padrão atual das movimentações e da produtividade atual da CPMF, que, sob alíquota de 0,38%, tem rendimento previsto de aproximadamente 20 bilhões de reais anuais, valor que será pouco afetado pela isenção aos negócios em Bolsas, instituída pela Emenda Constitucional no 37, ora promulgada.
É provável que o perfil das movimentações sofra alguma alteração, diante de alíquota dez vezes superior. Mas é também possível que a produtividade do tributo aumente, diante de um dispositivo dissuasivo mais severo. A eliminação das fraudes já detectadas pelo Banco Central e Receita Federal estão permitindo estimar um potencial de dez a vinte por cento superior à previsão atual de arrecadação.
Esse cálculo básico deveria ainda ajustar-se à previsão, proposta, de extinção de quaisquer isenções ou imunidades, exceto as imunidades recíprocas entre os entes políticos integrantes da Federação, cujo aporte de recursos cobriria, provavelmente, a menor arrecadação decorrente da nova sistemática de tributação dos mercados financeiros.
Vistos esses parâmetros genéricos, fica patente que a busca de estimações mais precisas seria, no momento, exercício vão. Só a implementação concreta permitirá, conclusivamente, o teste empírico do modelo.
Aqui se concentra, no momento, o flanco mais vulnerável a questionamentos, enquanto subordinado ao raciocínio hipotético.
Os mais cépticos continuarão a apostar na suposição da impossibilidade de onerar movimentações sob alíquotas superiores ao limiar de 0,5% até no máximo 1%, e vislumbrarão toda a sociedade se mobilizando para criar novos artifícios capazes de evitar a ocorrência da movimentação tributável.
Os mais otimistas dirão que tais cifras são supersticiosas e que tudo se passará da mesma maneira tranqüila como acontece atualmente sob a alíquota em vigor, de 0,38%, pois os subterfúgios possíveis já estariam esgotados e superados.
Uma postura realista há de reconhecer como natural o esforço pela evitação do imposto, previsivelmente crescente na mesma medida em que sobe a alíquota e aumenta o prêmio pela evasão. Alternativas de evasão desinteressantes sob alíquota de 0,38% podem tornar-se muito atraentes num novo cenário de alíquota dez vezes superior.
Cabe ponderar, então, sobre a viabilidade de implementar medidas eficazes de dissuasão, bem como procurar prever as artimanhas e respectivas conseqüências, do desvio do adimplemento contributivo.
Mas as medidas de que se cogita, no texto da proposição, como a proibição do endosso de cheques, o oferecimento de prêmio ao apresentante de cheque ao portador, com apenamento do respectivo emitente, o desestímulo ao emprego de moeda sonante e outras são da ordem de uma normatividade infraconstitucional e regulamentar, nas áreas comercial, bancária, penal e administrativa, que desbordam dos limites de uma proposta de emenda constitucional.
O esmiuçamento dessas medidas não cabe nesta oportunidade, nem deve desviar o foco dessa discussão, que concerne, não um pacote fiscal completo, mas, sim, uma escolha política entre modelos de extração tributária propostos democraticamente no âmbito do Poder Legislativo.
Sem embargo, ao lado das dimensões econômica e política da proposta, é indispensável demorar-se também nos requisitos da análise institucional.
Fisco, função essencial de Estado. A instituição permanente sobrevive a especializações circunstanciais
Guarda, ainda, inteira validade, o bordão de que “imposto é, antes de tudo, execução”. O analista tributário esclarecido deveria priorizar, sempre, as condições de implementação de determinado imposto, relativamente às eventuais qualidades de seu perfil teórico.
Por exemplo, a prática brasileira do imposto de renda dissocia-se fortemente do paradigma teórico desse tributo, assim como de seus princípios acolhidos em nossa Carta Política, em virtude da fragilidade do aparato administrativo encarregado de sua execução.
O pressuposto necessário e indispensável de uma reforma tributária realista é a existência, atual ou potencial, de um aparelho institucional habilitado a pôr em prática o figurino legislativo adotado. É fundamental deter-se, então, numa análise institucional prévia.
Não há Estado soberano sem aparelho fiscal sólido. O Fisco é componente básico da estrutura nuclear do Estado. É requisito indispensável de governabilidade.
As políticas tributárias variam, as experiências fiscais se sucedem, mas um aparelho fiscal persistente deve ser o filtro que recolhe o produto dessa alquimia histórica. Seria imprudente buscar a fragilização do Fisco. A sabedoria dos doutrinadores nunca se cansou de sublinhar que o bom imposto depende, antes de mais nada, de sua administração. O Fisco deve ser preservado e cultivado como instituição permanente.
As especializações ocasionais, que são função da política tributária do momento, não devem excluir, jamais, uma estrutura burocrática básica, sólida, diversificada, dotada de continuidade, responsável pela acumulação de conhecimento, história, técnicas e valores, capaz de observar criticamente, pesquisar, acompanhar o que se passa no mundo, avaliar, adaptar, prever, pensar o longo prazo.
Se uma experiência fiscal circunstancial promove determinada especialização, isso não autoriza a desmontar os demais componentes da instituição fiscal.
Seria evidentemente irrealista imaginar que a implantação de um tributo hegemônico, por mais que sua operação fosse administrativamente simples, pudesse acarretar a liquidação do Fisco. Seria imprudente alimentar essa ilusão proveniente de um liberalismo romântico descomprometido com as responsabilidades da gestão pública.
Seria pouco realista supor que um imposto sobre transações, ou qualquer outro, pudesse trazer consigo o fim da história administrativa fiscal e o apocalipse da burocracia.
A análise técnica do tributo proposto deve cuidar de desfazer as amálgamas artificiais entre essa interessante experiência de gestão tributária e eventuais inclinações, de alguns de seus simpatizantes, por ideologias do “Estado mínimo” e quejandos.
A técnica tributária da imposição das movimentações financeiras não implica, a priori, nenhum vínculo necessário com posturas ideológicas ultraliberais, antiburocráticas, antiestatistas ou anarquistas, nem incompatibilidade alguma com a cosmovisão socialdemocrata ou com a realidade do chamado “modo de produção tecnoburocrático”.
O Fisco é função pública essencial que sobrepaira às aventuras das políticas fiscais circunstanciais, da mesma maneira que a burocracia diplomática em relação às opções ocasionais de política exterior.
Não existe imposto insonegável
Veio a público, recentemente, que a Receita Federal tem em curso uma série de autuações de grandes bancos, pela prática de procedimentos premeditados tendentes à evasão da CPMF, num montante atualmente próximo de 5 bilhões, previstos para chegarem a cerca de 8 bilhões de reais.
Os bancos alegam que exercitavam uma forma de evasão legal. Faziam-no em benefício de grandes clientes, provavelmente em troca de algum benefício recíproco. Valiam-se da permissão legal de um endosso por cheque para transferir gigantescos volumes de cheques, de grandes clientes, para distribuidoras de títulos e valores do grupo, as quais, por sua vez, pagavam fornecedores daqueles clientes, sem incidência da CPMF, evitando assim movimentar as contas dos clientes, sujeitas à incidência do imposto.
É uma típica manobra sem sentido econômico, um desvirtuamento nítido das distribuidoras de valores, cujo objeto não inclui a prestação de serviços de pagamentos a fornecedores de clientes dos bancos a elas associados, com o único fito de contornar a obrigação tributária. O artifício, ao mesmo tempo que reduz a arrecadação do tributo, distorce seu perfil e acentua sua regressividade, pois favorece os grandes clientes em detrimento dos demais.
A manobra era relativamente elementar e previsível, assim como o “passeio de cheques” e outras fórmulas, fraudulentas ou não, de desviar o imposto. Os bancos vêem deslizar entre seus dedos um formidável fluxo de recursos, sendo grande a tentação de procurar extrair vantagens disso, senão mesmo de apropriar-se discretamente de alguma sobra em proveito próprio.
Só a presença insistente de uma fiscalização bem aparelhada, intensa e, mesmo, feroz, pode prevenir ou reprimir a propensão natural ao escape do imposto.
Não há, nunca houve e jamais haverá imposto insonegável. É ilusório apregoar que qualquer sistema tributário imaginável pudesse dispensar os rigores da fiscalização.
A verdade é que um sistema tributário simplificado poderá exigir um aparato fiscalizador mais leve, especializado e direcionado. O sistema do tributo hegemônico sobre movimentações aliviará, por certo, os cidadãos em geral, de qualquer preocupação com o fisco, o qual concentrará todos os seus esforços na fiscalização dos bancos. Isso poderia explicar, talvez, a reticência dos bancos em relação a esse tributo.
Visto isso, afigura-se impertinente conceber a luta pelo tributo sobre movimentações como uma espécie de vingança contra uma suposta opressão de um Fisco voraz. Tal sentimento só seria pertinente da parte do restrito segmento do público sujeito a sobrecargas fiscais localizadas, mas não seria partilhado pela maior parcela do público, aquela que é invisível para o Fisco.
A burocracia fiscal, primeiro, não é geneticamente contrária à tributação das movimentações, e segundo, não é descartável, nem mesmo num cenário ideal de tributo único sobre movimentações.
Sistema bancário, território dos agentes do Tesouro
A maioria dos países desenvolvidos apega-se a sistemas tradicionais de arrecadação das receitas públicas e, seja por respeito à tradição, preferência cultural, resistência corporativa dos agentes da tesouraria pública ou postura estratégica, enxergam com reticência a experiência brasileira da arrecadação bancária.
É bastante improvável que, a médio prazo, as populações desses países admitissem a entrega da função pública da arrecadação de impostos a bancos privados. Preferem suportar os custos de uma pesada burocracia arrecadadora, talvez antiquada mas confiável, juramentada e imbuída do espírito de missão pública, do que entregar essa tradicional função pública ao que muitos enxergam como a sanha de organizações de mercenários negociantes de dinheiro.
A título ilustrativo, vale informar que, num país pequeno como a França, a Direction de la Comptabilité Publique, estrutura responsável pela Tesouraria Pública, isto é, pela arrecadação e controle das receitas públicas, possui efetivo de aproximadamente 50 mil agentes, ao lado dos cerca de 80 mil agentes encarregados dos impostos internos (Direction des Impôts) e cerca de 50 mil agentes aduaneiros (Direction de la Douane). Esses algarismos ilustram, comparativamente, a extrema leveza da burocracia fiscal federal brasileira, que, hoje, não poderia prescindir dos bancos.
A alegação, falaciosa, de que “se o imposto sobre movimentações fosse bom, já teria sido adotado nos países desenvolvidos”, peca exatamente por ignorar este pormenor, a saber, que o tributo sobre transações só é economicamente viável, só é competitivo como técnica de arrecadação, num país dotado de tecnologia da informação, aplicada à operação bancária, avançada e distribuída e que consinta em delegar a arrecadação das receitas públicas ao sistema bancário. É este requisito, presente no Brasil, que impede os países desenvolvidos de adotar essa modalidade tributária que desperta, neles, crescente curiosidade.
Se estão certos eles, ou estamos nós, depende de fatores históricos, sociais, administrativos, institucionais, políticos, que seria longo explorar aqui. Mas é relevante perceber como a mera análise econômica é insuficiente para decidir sobre uma reforma tributária, e como a análise institucional é importante e decisiva.
Qualquer observador sensato concordaria que o Estado, o interesse público nele corporificado, e, particularmente, o Tesouro Público, não pode estar sujeito a ser posto de joelhos perante o imprevisível capricho dos operadores bancários ou o interesse particularíssimo dos barões da finança.
Essa reserva, de princípio, não exclui, todavia, o reconhecimento da funcionalidade da longa experiência brasileira da arrecadação bancária. Não consta que, durante mais de três décadas, tenham ocorrido graves percalços. É possível acreditar que o Banco Central e a Receita Federal possam controlar satisfatoriamente o sistema bancário. Mas não deixa de suscitar inquietação o que poderia acontecer numa conjuntura eventual de governo fraco e instituições frouxas.
A assimilação, pelo sistema bancário, de funções de tesouro público, dá aos bancos enorme poder de barganha, mas, ao mesmo tempo, sujeita-os aos desconfortos da investigação e do controle governamental. É por isso que os dirigentes bancários mantém, até hoje, posição reticente e ambígua a respeito do exercício desse papel.
Conclusão
Desde a democratização, desencadeada em meados da década de oitenta, o Congresso Nacional custa a vencer a timidez no exercício de sua prerrogativa de avaliar e de influenciar a formulação da política tributária brasileira.
Verifica-se que, ainda hoje, cerca de noventa e cinco por cento da legislação tributária editada deriva de iniciativa do Poder Executivo.
O agigantamento dos Executivos e o declínio dos Legislativos constitui fenômeno comum constatado no mundo contemporâneo. Claro que não se cogita, portanto, de competir, nas complexidades da execução tributária, com a máquina formidável de que é dotado o Poder Executivo.