Pouco a pouco, nota-se que o entusiasmo da população com o Plano Cruzado começa a arrefecer: no início, vinham elogios de todos os segmentos, chegando mesmo a haver um certo patrulhamento contra aqueles que tentavam apontar falhas na estratégia anti-inflacionária.
A evolução dos fatos foi até melhor do que o próprio governo poderia prever. Houve deflação no primeiro mês, inflação inferior a 1% no mês seguinte. A massa salarial aumentou significativamente, chegando a falar em 15%, como resultado do aumento da taxa de emprego e também dos acordos salariais que foram bastante favoráveis aos assalariados. Passou-se a consumir tanto quanto nos períodos mais áureos de crescimento; o comércio floresceu, os juros e a liquidez mantiveram-se em níveis que não obstaculizaram o emergente "boom" econômico; os setores produtivos absorveram toda sua capacidade ociosa; e o governo acenou com a possibilidade de haver controlado seu déficit.
No entanto, há insatisfação, que ameaça tornar-se generalizada. Inicialmente, as críticas vieram do meio acadêmico, no sentido de alertar para inconsistências da política econômica adotada. Em seguida, vieram as queixas dos produtores. Manteve-se, contudo, o apoio popular ao plano, pois os salários reais cresceram, em função tanto do aquecimento da economia, quanto da queda no preço dos alimentos.
No momento, mesmo este último reduto de credibilidade começa a ser erodido pelas pressões nos preços da cesta básica, sem falar nos desmoralizantes ágios e na crescente escassez de produtos. Também pelo lado do governo, problemas que haviam sido varridos para baixo do tapete tiveram de ser enfrentados. A falta de vontade política para cortar gastos e a premente necessidade de retomar os investimentos públicos, paralisados desde inícios da década, forçaram o governo a decretar o Cruzadinho.
A justificativa para esta reversão da opinião pública se baseia na constatação do óbvio: a inflação é um processo, e mesmo que hoje a situação econômica seja incomparavelmente melhor do que seria sem o Plano Cruzado, a tendência é o retorno à situação anterior. É o caso da anedótica "pequena gravidez": o problema existe, embora no momento seja muito mais um caso de antecipação, do que de efetivo desconforto.
Ao julgar o Plano Cruzado, desejo me associar a seus críticos; não aos da correção monetária e abrupto descongelamento de preços, destruindo a alma da estratégia adotada.
Vinte dias antes, e novamente um dia depois do decreto-lei 2.283, tentei demonstrar em artigos na Folha que o "choque heterodoxo" esbarraria em dificuldades decorrentes da inter-relação de três fatores: congelamento de preços, pressões salariais e incapacidade em controlar o déficit público. Os temores se revelaram justificados. Não seria justificável, contudo, deduzir daí que o Plano Cruzado não funcionou.
Se as condições para o sucesso da estratégia antiinflacionária não foram previamente obtidas, ainda há tempo para resgatá-las, embora com sacrifícios cada vez maiores. Seguir outra completamente diferente é tentar alterar a natureza do processo econômico, como se insiste em fazer. O governo precisa patrocinar a gradual transição para a normalidade econômica, passando a praticar uma política econômica ortodoxa, cuja eficácia ele mesmo recuperou. O choque foi dado, e os resultados foram satisfatórios. Porém, insistir no mesmo tratamento irá eletrocutar a economia, sem contudo, interromper o processo inflacionário latente que não mostra sinais de haver sido extirpado.
MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, doutor pela Universidade de Harvard, professor do Departamento de Economia da FGV/SP e consultor de Economia desta Folha.