Se há um elemento animador dentro da atual crise que passa o setor da pecuária de leite do País, é sem dúvida a constatação de que a oferta de leite não é inelástica como apregoavam alguns. Ao contrário, a capacidade demonstrada pelo setor de reagir a uma política de preços compensadores evidencia o otimismo com que se deve encarar as perspectivas de uma política governamental orientada para o estímulo à produção agropecuária brasileira. Seja com o intuito de incrementar a produção para consumo interno, para substituir importação ou para aumentar as exportações, vislumbra-se um setor basicamente sadio e apto a se desenvolver, mas que no entanto padece de uma política mal orientada e sem objetivos claros, impedindo uma atuação eficiente e estável.
O setor pecuário obteve nos últimos dois anos substanciais incrementos em seus preços recebidos. Em todos os Estados onde existem informações, o índice de preços recebidos pelos agricultores foi significativamente mais elevado para produtos animais do que para lavouras.
Obviamente, os índices de preços recebidos por produtos animais refletem também o aumento do preço da carne bovina. No entanto, a grande complementaridade de produção de carne e de leite existente nas bacias leiteiras com raças menos especializadas nos autoriza a utilizar os índices de preços recebidos pela pecuária leiteira. Nota-se também que o índice de preços pagos pelos agricultores elevou-se em proporções inferiores aos preços de produtos animais recebidos, evidenciando claro estímulo ao setor.
Um índice agregado para várias regiões do Brasil indica que o índice de preços recebidos especificamente pela pecuária leiteira foi de 190 superior ao índice dos preços recebidos pelas lavouras cultivadas ao nível de 124 e dos preços do setor agrícola em geral de 135 (não incluídos na tabela).
Nota-se que os maiores aumentos nos índices de preços recebidos concentram-se nos Estados das regiões centro e centro-sul, onde surgem, no momento, excedentes de produção. O período da entressafra de leite transcorreu, pela primeira vez em vários anos, sem problemas de escassez do produto, e no momento estima-se que o nível de produção no Estado de São Paulo esteja aproximadamente 40% mais elevado que no mesmo período do ano anterior. Incapacitadas de escoar sua produção para os centros consumidores ou de estocar os excedentes, as usinas de processamento de leite têm-se negado a receber a totalidade da produção, e em alguns casos têm introduzido alterações nos sistemas de recebimento do produto e de pagamento aos produtores com o intuito de onerar a produção e assim reduzir sua oferta. A pecuária leiteira vê-se novamente diante de perspectivas desanimadoras, cujo resultado inevitável será a geração de um novo ciclo do produto.
A ORIGEM DA CRISE
É bastante claro para todos que a crise que o pecuarista de leite e o agricultor em geral enfrentam no momento está relacionada intimamente com uma série de fatores estruturais, inter-relacionados entre si, resultante de uma política econômica instável e desestruturada. O casuísmo que vem orientando os responsáveis pela formulação de política agrícola brasileira gerou uma agricultura insegura e sujeita aos mais variáveis graus de cerceamento de suas atividades. Especificamente com a pecuária leiteira, setor no qual se encontra uma grande concentração de pequenos e médios produtores, os problemas se agravaram de tal forma que a própria sobrevivência daqueles que dela dependem está em jogo. Vejamos inicialmente o ambiente econômico dentro do qual opera o pecuarista de leite.
A recomendação da Organização Mundial de Saúde coloca o consumo mínimo de leite essencial para uma boa nutrição em torno de 215 litros "per capita". Os dados brasileiros indicam um consumo "per capita" em torno de 95 litros/ano, evidenciando clara defasagem entre produção e consumo potencial. A distribuição deste consumo não se dá por igual na população, mas concentra-se nas camadas de altas rendas e minguadas pelo subconsumo nas camadas de baixa renda.
Seria interessante observar que o leite é um produto relativamente barato em termos de conteúdo nutritivo. Recentemente, a Associação Brasileira de Criadores divulgou que o valor alimentício de 1 litro de leite equivale a 850 gramas de peixe, 625 gramas de frango, 600 gramas de carne de vaca ou 9 ovos. Além do mais, o preço do leite "C" baixou em termos de esforço exigido do trabalhador para sua aquisição. Segundo dados do DIEESE são necessários 48 minutos de trabalho para a aquisição de 1 litro, enquanto que no ano passado o trabalhador teria de despende aproximadamente 51 minutos para adquiri-lo.
No entanto, os níveis de produção e consumo têm praticamente estagnado no Brasil nos últimos 10 anos, e quando uma política de incentivo de produção é implantada geram-se excedentes ocasionais de produção no mercado consumidor.
As causas da situação aparentemente contraditória se encontram em dois níveis distintos, um estrutural e outro conjuntural. Ao nível estrutural, a pecuária leiteira se vê numa situação que exige uma avaliação cuidadosa das políticas e estratégias a serem adotadas para enfrentar os desafios que se apresentam. A falta de uma política agrícola consistente e orientada para o estímulo à produção agropecuária é um fator fundamental que tem prejudicado o setor.
Nesse contexto, a pecuária leiteira tem sido afetada negativamente por um conjunto de fatores, incluindo o casuísmo na formulação de políticas, a falta de objetivos claros, a instabilidade econômica e a falta de incentivos eficazes. Essa situação tem levado a oscilações nos preços e na oferta de leite, prejudicando tanto os produtores quanto os consumidores.
Além disso, a concentração de pequenos e médios produtores na pecuária leiteira torna o setor mais vulnerável a essas oscilações, uma vez que muitos deles não têm a capacidade financeira para enfrentar períodos de baixos preços ou excedentes de produção.
Diante desse cenário, é essencial que o Brasil adote políticas agrícolas mais consistentes e orientadas para o estímulo à produção de leite. Isso inclui o apoio à modernização e tecnificação da atividade leiteira, o incentivo à pesquisa e inovação no setor e a criação de estratégias para aumentar o consumo de leite no país.
Em resumo, a pecuária leiteira brasileira enfrenta desafios significativos, mas também apresenta potencial para se desenvolver e contribuir para a segurança alimentar do país. Para isso, é fundamental uma abordagem mais consistente e estruturada por parte das políticas governamentais, a fim de promover um setor pecuário mais estável e eficiente.
(Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque é professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas e coordenador do Projeto de Administração Rural da Fundação para o Desenvolvimento Administrativo - Fundap.)
Publicado no Informativo Leitebe.