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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Goebbels, corrupção, nepotismo e prevaricação

A mudança no tom e no conteúdo da coluna de hoje reflete a sensação de espanto e de desesperança que acometeu a sociedade com a visível deterioração do quadro de governabilidade da atual administração federal. Revela a preocupação de que a retomada do crescimento econômico brasileiro em 2004 poderá ser seriamente comprometida caso perdurem os métodos de controle de crise em uso pelo governo. Goebbels, o famoso ministro da propaganda de Hitler, sentir-se-ia orgulhoso de ver que fez escola no Brasil de Lula. Dizia ele que a forma mais eficaz para enfrentar um problema político sério, constrangedor e incômodo é desviar a atenção da opinião pública, fazendo as pessoas se ocupar de outros temas, altamente polêmicos, porém menos embaraçosos. ​ A história é conhecida de todos. O poderoso ministro José Dirceu (Casa Civil) introduziu no Palácio do Planalto, como seu vice-ministro e interlocutor com os parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado, um amigo pessoal e antigo colaborador, com quem chegara a dividir apartamento em Brasília. É sabido que logo após a posse do novo governo o vice-ministro Valdomiro Diniz era visto como o factótum de Dirceu nos corredores do Congresso, por onde transitava desinibido e altamente prestigiado por todos. Não se sabe ainda que missões, oficiais ou pessoais, o ministro teria incumbido seu factótum de desempenhar, mas o fato é que a vida pregressa do vice-ministro veio à tona, revelando episódios nebulosos e altamente comprometedores tanto para o próprio personagem como para seus antigos empregadores dentro do governo do Rio de Janeiro. O vice-ministro, no passado, usando de suas prerrogativas públicas, foi flagrado exigindo propina de empresários ligados à industria de jogos de azar no Brasil. Logicamente, tudo em nome dos altaneiros ideais patrióticos do grupo político cujos interesses defendia. No "affair" José Dirceu/Valdomiro Diniz, os comunicadores de plantão do governo seguiram exatamente a linha de ação que Goebbels adotaria diante de problema semelhante. Resolveram tirar o sofá da sala e prontamente denunciar os verdadeiros culpados de tudo: o jogo do bicho e as regras de financiamento de campanhas políticas. Segundo a lógica planaltina, o problema das propinas políticas estaria resolvido se não houvesse mais bingo no país. Por sua vez, o financiamento público de campanha teria o poder de tornar a classe política e a burocracia pública honradas e probas num piscar de olhos, colocando-as fora do alcance dos apetites empresariais escusos, que não teriam mais como abordar e contratar políticos para atuar na defesa de seus interesses. Os mandarins do Planalto estariam sinalizando que, num passe de mágica, essas duas medidas aprimorariam a ética política brasileira, ainda que a discussão e os debates que suscitariam pudessem ser intensos. Que pena! Quanto aos personagens implicados no escândalo, ora, são só vítimas de um meio cultural e político que os tornou reféns de uma imposição circunstancial e, portanto, inocentes em suas intenções. Mas surgem complicações, contudo. Caiu a máscara do governo, cuja imagem pública fora no passado cuidadosamente construída para encarnar a prevalência da ética e da moralidade no setor público. Com a auréola da renovação dos costumes, os parlamentares do PT, enquanto eram oposição, alinhavam-se disciplinadamente em filas de adesão a cada menção de abertura de CPI, como relembra o deputado Delfim Netto. Defendiam sempre a transparência e a realização de investigações, mesmo as internas, cortando a própria carne em nome da moralidade pública. No governo, os padrões de comportamento foram invertidos. Rechaçam a CPI em nome da governabilidade, em discurso idêntico ao do governo anterior. Alegam que não há fato determinado que justifique uma CPI. Pode haver algo mais determinado e pontual do que a descoberta de um corrupto no coração do governo? A investigação é exatamente para apurar se houve continuidade nos ilícitos cometidos pelo vice-ministro e, se positivo, apurar se outros agentes públicos tiveram envolvimento. Como justificar o acobertamento dos fatos? A lógica planaltina -que, diga-se de passagem, é a mesma adotada por todos os governos que lá passaram- diz que prosseguir com a postura da moralidade, que agora sabemos ser falsa, significaria abrir uma CPI e correr o risco de permitir que venha à tona a podridão que pode estar contida dentro das entranhas do Planalto ou em suas múltiplas metástases. Deixar que as investigações revelem o que não pode ser revelado poderá motivar uma crise de credibilidade e abortar o recém-iniciado processo de retomada do crescimento, que até agora, infelizmente, é apenas um desejo. Por outro lado, assumir a posição de criminoso encurralado -e resistir até o fim- poderá impedir a eclosão de crise imediata de governabilidade, mas fere de morte a credibilidade e a legitimidade desse governo. Não há diferença nas conseqüências práticas entre essas duas alternativas, ainda que a ocultação do crime possa postergar a crise e dar-lhe um caráter sistêmico, crônico, evitando uma confrontação política aguda. Mas não é só no "affair" Dirceu/ Valdomiro que o PT mostra ser igual ou até pior nos vícios que acusava seus adversários de terem enquanto era oposição. Os casos nebulosos de Santo André (será que o financiamento público de campanha os teria evitado?), as contratações suspeitas da Prefeitura de São Paulo no sistema de coleta de lixo reveladas pela Folha, a criação de cargos a granel na prefeitura paulistana e no governo federal (mais de 40 mil até o final do ano), o tráfico de influência revelado no surgimento de Zeca Dirceu, filho do outro Dirceu, o episódio GTech/ Buratti/CEF, os privilégios concedidos a empresas privadas gestoras de planos de saúde para funcionários públicos e muitos outros casos que começam a pipocar na imprensa mostram que o PT deixou para trás sua imagem de lisura e de comportamento ético que sempre cultivou para adentrar no campo cinzento e pantanoso das suspeitas de corrupção, de nepotismo e de prevaricação.

 

MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

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