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  • Marcos Cintra - Correio Braziliense

Presunção de inocência violada


Doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular da Fundação Getulio Vargas.

É autor do projeto do Imposto Único. É presidente da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos).

Não há como um cidadão de bem ficar indiferente aos efeitos da corrupção endêmica que assolou o Brasil. Também não há como deixar de destacar que parte essencial no conjunto de elementos causadores dessa terrível patologia encontra-se no elevado grau de intervenção do Estado na economia do país. O ativismo estatal excessivo potencializa as oportunidades para a corrupção, e conduz à politização das instituições públicas, cujos cargos via de regra são preenchidos por indicações meramente políticas em detrimento da competência técnica e da experiência. No entanto, há outros aspectos que são pouco notados ou discutidos no Brasil, e que geram um campo fértil para a desvalorização da atividade pública.

Chamo a atenção para a Resolução nº 16, de 28 de março de 2007, do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), instituição vinculada ao Ministério da Fazenda, dispondo sobre procedimentos a serem adotados pelas entidades reguladas pelo órgão, na forma da Lei nº 9.613/98, que trata dos crimes de lavagem de dinheiro, relativamente à operações ou propostas de operações realizadas por Pessoas Expostas Politicamente (PEP).

De acordo com a referida resolução, os bancos, bolsas de valores, administradoras de cartões de crédito, corretoras de seguros, entre outras entidades reguladas pelo Coaf devem adotar medidas especiais e dar atenção diferenciada no caso de clientes classificados como PEP visando prevenir e identificar operações que se configurem como crimes de lavagem de dinheiro.

São definidos como PEP os agentes públicos que desempenham ou tenham desempenhado, nos últimos cinco anos, cargos eletivos, pessoas que ocupam funções como ministro de Estado, gestores de estatais, membros do Tribunal de Contas da União, entre vários outros postos públicos. A resolução em questão determina que a categoria de pessoas politicamente expostas se estenda, além do ocupante de um cargo público, aos seus “representantes, familiares e estreitos colaboradores”. No quesito familiar a norma lista parentes de primeiro grau, cônjuge, companheiro (a) e enteado (a) como PEP.

É certo que uma das queixas mais expressivas da sociedade brasileira se refere à baixa condição moral e intelectual de um grande contingente de pessoas na administração pública do país. Todos almejam o expurgo dos maus políticos da vida pública e que pessoas de bem possam ocupar seus lugares. Porém, a questão que se coloca é se o cidadão de boa índole terá disposição de servirem cargo governamental quando ele e sua família correm o risco de serem considerados de forma apriorística como suspeitos de corrupção ao serem classificados como PEP. Certamente que não.

O Coaf, ao dispor sobre PEP, criou uma subclasse execrável de indivíduos. O modo como as pessoas são tratadas chega a ser constrangedor, uma vez que o simples fato de ser uma PEP as coloca como delinquentes em potencial. Um filho de um dirigente estatal, por exemplo, pode ser prejudicado em suas atividades profissionais apenas porque seu pai ou sua mãe exerce um cargo na administração pública. Até mesmo abrir uma conta bancária tornou-se exasperante para uma PEP.

O grau de exigência para a efetivação de uma simples TED é desmedido e a instituição financeira deve possibilitar a identificação desse cliente e ainda apurar a origem dos recursos de uma operação e considerar sua compatibilidade com o patrimônio que consta dos cadastros, tanto do remetente do dinheiro como do beneficiário se ele também for uma PEP. O princípio básico de todo estado democrático, segundo o qual um indivíduo deve ser considerado inocente até prova em contrário evaporou-se nas brumas da desconfiança e do denuncismo.

Em dezembro de 2017, o Coaf editou nova resolução, a de nº 29, afirmando que ela muda a forma de tratamento em relação a PEP. Segundo o órgão, por meio dela “se pretende melhorar as relações entre PEP e instituições financeiras e demais setores econômicos”. Nesse sentido, diz o Coaf, a abordagem em relação ao risco de lavagem de dinheiro, “não deve ser feita em relação à pessoa, mas ao tipo de operação proposta”. Porém, tal ato na prática serviu para incluir novas categorias como PEP, tais como presidentes e tesoureiros de partidos políticos. O efeito secundário das normas do Coaf é fazer com que as pessoas de bem se afastem definitivamente da vida pública, abrindo espaço para que delinquentes se infiltrem cada vez mais em todos os segmentos do Estado. Tornou-se um demérito ao cidadão honrado ocupar um cargo público no Brasil.

É evidente que a classe política fez por merecer esse tratamento. No entanto, o Coaf criou uma situação em que a presunção de inocência é violada de forma generalizada, sem qualquer discernimento para tratar desigualmente os desiguais, como seria desejável. Vive-se, ao menos no meio financeiro, um regime de flagrante violência que pune o servidor público honesto e seus familiares. É o caminho certo para o autoritarismo e para o surgimento de lamentáveis preconceitos. E uma oportunidade única para quem não tenha nada a perder, como o crime organizado, enraizar-se na política brasileira, a exemplo do que se viu acontecer em outros países latino-americanos.

 

Publicado no Jornal Correio Braziliense, SP Norte e Revista AMAIS.

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