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  • Marcos Cintra

Economia digital e tax design


Introdução

Em epistemologia, paradigmas são modelos, padrões e crenças que uma comunidade científica adota. As premissas fundamentais de um dado campo de estudo ou de pesquisa são tidos como sabedoria ou conhecimento convencionais, e assim, dispensam comprovação empírica como precondição para sua plena aceitação. Na área tributária não é diferente.[1]


Tributos são analisados sob os critérios de produtividade, equidade, simplicidade e neutralidade. Os três primeiros quesitos são bastante objetivos. Já o quesito que trata da neutralidade alocativa e das distorções econômicas geradas pelos tributos enfrenta sérios problemas de mensuração causados, principalmente pela pouca aderência à realidade das premissas adotadas em tais avaliações, a exemplo da literatura da tributação ótima[2].


Em realidade, a economia neoclássica, que forma a base teórica da tributação ótima, vem sendo desafiada por profundas mudanças tecnológicas e comportamentais ao longo dos últimos anos. Surgem questionamentos acerca da validade de conceitos comumente aceitos e que formam o paradigma atual da análise tributária convencional. Exemplos de postulados tidos como conhecimento convencional, e que assim são tidos como verdades que dispensam validação empírica, achamse nas noções estilizadas da concorrência perfeita, da cumulatividade tributária, e da estrita racionalidade dos agentes econômicos.


A moderna economia digital, que assume papel cada vez mais preponderante na organização social e da produção hodiernas, passa a exigir a análise e eventual revisão de conceitos convencionais que vêm presidindo os rumos das políticas tributárias adotadas em todo o mundo ao longo de várias décadas. As formas de produção e organização dos mercados demandam que a tecnologia digital em constante e rápida evolução passe a ser não apenas um instrumento de gestão tributária, como vem sendo amplamente utilizada[3], mas também como elemento estruturante no processo de tax design para o enfrentamento das questões de adaptação do sistema tributário à nova economia digital emergente.


A questão para a qual estas notas preliminares para debate estão orientadas é a de como formatar um sistema tributário usando a moderna tecnologia não apenas como instrumento de gestão, mas, sobretudo como elemento de construção de novos ambientes e de novos tributos adequados ao mundo contemporâneo -tax design, em contraste com tax administration.

A nova dinâmica do mundo digital

A sociedade global tem evoluído de um modo que há vinte ou trinta anos tudo seria considerado um cenário de ficção científica.


Automóveis dispensam motoristas e robôs realizam cirurgias em seres humanos com enorme precisão. As pessoas usufruem de maior comodidade em suas atividades rotineiras, vivem mais e otimizam seu tempo com mais entretenimento e lazer. As empresas tornam-se mais eficientes e rentáveis, atendendo seus consumidores de forma customizada. Os fluxos de bits and bytes comandam processos mecânicos, - a internet das coisas- e a manufatura e os serviços iniciam a quarta revolução industrial com a indústria 4.0 e a internet 5G.


A gestão pública conhece novos métodos de governança e de comunicação, abrindo amplas possibilidades de desburocratização e transparência, redução de custos de compliance e combate à evasão. O fluxo de informações cresce exponencialmente, trazendo mais controle e conhecimento para as autoridades fazendárias acerca dos atos de gestão das empresas privadas e do comportamento dos agentes econômicos e das famílias.


A crescente intensidade na movimentação de mercadorias e capitais no mundo moderno impõe novos parâmetros de comportamento nos setores privado e governamental. A automação e as sofisticadas formas de gestão, sobretudo nas empresas transnacionais, aumentaram vertiginosamente a produtividade e geraram escalas mundiais de produção. As empresas passaram a realizar planejamento estratégico num contexto global, padronizando produtos e práticas administrativas por todos os países onde atuam. As transnacionais desenham seus produtos, compram insumos, produzem, vendem e aplicam recursos financeiros em escala mundial, independentemente da localização física de suas matrizes e filiais. Os mercados internacionais movimentam somas vultosas de recursos a cada dia, tornando praticamente impossível a tarefa de acompanhar, controlar e classificar tais fluxos e suas representações materiais para poderem servir de base para um sistema tributário convencional.


O rápido avanço tecnológico e a revolução da informática alteraram em profundidade as formas como as trocas se realizam nas economias contemporâneas, que se tornam crescentemente desmonetizadas. A desconfortável moeda manual, anti-higiênica e de custosa manipulação, que, como lembrado por Keynes, é uma relíquia bárbara dos tempos em que os meios de troca eram mercadorias com valor intrínseco, irá desaparecer. O termo cashless society, cunhado pela revista The Economist, resume um novo ambiente econômico em gestação no mundo moderno. O Brasil se antecipou nesta tendência mundial induzido pelas crises hiper inflacionárias do final do século passado, que produziu o hiperdesenvolvimento do sistema bancário brasileiro, e facilitou a implantação de tributação sobre movimentação financeira.[4]

Os atuais sistemas tributários estão estruturados sobre bases convencionais de incidência. A renda pessoal, o lucro das empresas, o consumo, a folha salarial e o patrimônio são as formas predominantes de exação. Mas cada uma delas assume características distintas frente ao mundo global e virtual.[5]


Profissionais qualificados, com elevado nível de renda, passaram a ter uma mobilidade jamais vista. É o caso dos grandes artistas, esportistas e magnatas, que subitamente passaram a ser estrelas mundiais, em vez de brilharem apenas em seus âmbitos locais e regionais. Esses definem seus domicílios fiscais e investem seus rendimentos em países onde a tributação é menor. Tornam-se alvos voláteis para os fiscos de seus respectivos países.

No caso dos lucros das empresas, a mobilidade é ainda mais acentuada. As grandes empresas multinacionais dispõem de modernos instrumentos que permitem reduzir seus desembolsos tributários. A utilização dos preços de transferências e a livre escolha na localização de suas sedes operacionais são ações implementadas como forma de minimizar suas obrigações fiscais.


A facilidade no transporte de pessoas por todo o mundo também afeta a tributação do consumo. Comerciantes e turistas podem adquirir produtos de elevado valor agregado em países que oferecem preços mais reduzidos. Além disso, nota-se que a expansão acelerada do comércio eletrônico dificulta a tributação por meios convencionais declaratórios, que se tornam incapazes de identificar os locais de origem e destino da operação. Da mesma forma as plataformas de comércio P2P (peer-to- peer) oferecem rotineiramente mecanismos de troca entre não- contribuintes de tributos sobre consumo, tanto interna quanto internacionalmente, passando ao largo dos instrumentos de controle fiscal usuais.


No mercado de trabalho a chamada “economia colaborativa”, com novos formas de atuação como a gig economy, a sharing economy, as transações P2P, e as novas configurações e modelos de contratação e de prestação de serviços, vem causando a crescente erosão da base tributária assentada sobre a folha de pagamento das empresas, ameaçando fortemente a principal e mais tradicional fonte de financiamento da previdência social em todo o mundo6. O encolhimento desta base tributária além de causar fortes preocupações quanto ao financiamento da previdência, já altamente deficitária, pode configurar ainda fonte de distorções no processo concorrencial. [7]

Nesse complexo cenário, cabe indagar sobre os impactos gerados pela nova economia digital na administração tributária. Qual o efeito desse fenômeno sobre os contribuintes e sobre a capacidade do poder público arrecadar?


A utilização de sistemas tributários convencionais dentro desse contexto de dramáticas mudanças de ambientes comportamentais e administrativos é caldo de cultura propício para o surgimento de "paraísos fiscais". Há dezenas espalhados pelo globo. Os privilégios tributários proporcionados pelas offshore companies criadas nessas ilhas ou países permitem a montagem de complexas operações envolvendo fundações familiares, sociedades de serviços especializados, trusts e fundos de investimentos. Criam-se, assim, dificuldades dramáticas para a gestão de estruturas tributárias ortodoxas baseadas em impostos tradicionais.


Nota-se, portanto, acentuada deterioração na capacidade de tributação dos governos nacionais. As atuais estruturas fiscais vivem em constante ameaça em função de decisões tomadas por pessoas e empresas em diferentes partes do mundo e sobre as quais os governos nacionais possuem escassa possibilidade de controle. Administradores tributários são confrontados com sérios problemas de identificação seja dos fatos geradores, seja dos sujeitos passivos das obrigações tributárias. Elementos informativos essenciais como quem? quando? quanto? e onde? tão necessários para a tipificação dos fatos geradores tributários convencionais se embaralham fática e burocraticamente em novas formatações de produção e trocas, gerando enorme potencial para a explosão de contencioso e aumento dos custos de transação.[4]


Nestas circunstâncias, as autoridades tributárias dos estados nacionais são constantemente desafiadas pela nova realidade, como descrita por Vito Tanzi abaixo:

“Globalization has, therefore, significantly changed the social, political, and economic environment in which tax systems must operate. The main changes have been the extraordinary growth in international trade of goods and services, increased mobility of labor and capital, and growth of multinational, transnational and international companies. Tax administrators nowadays speak of taxation on world bases. Tax competition between countries has mushroomed. Unfortunately, such changes have gone in the direction of increasing complexity, interdependence, and fiscal competition between countries. “Tax termites”, such as electronic and internet commerce, plastic and electronic money, transfer pricing, tax havens, foreign shopping, and complex financial instruments have

contributed to decrease the revenue raising efficiency of national governments. “The work of ´fiscal termites´ (is) busily gnawing at the foundations of the tax systems””[5]

Os métodos e instrumentos de controle e fiscalização do fisco são modernizados, mas o sistema tributário e seus conceitos básicos continuam estruturalmente arcaicos. As formas de tributação não se ajustaram à realidade do novo modo de produção que surge no mundo moderno.


O paradigma "fordista" de produção facilitava a fiscalização tributária. Isto levou ao desenvolvimento de métodos de arrecadação e controle baseados no sistema "auto declaratório com auditoria", ou seja, o próprio contribuinte declara sua movimentação física, econômica e financeira e oferece ao fisco os resultados obtidos em sua atividade produtiva. Trata-se de um ambiente marcado pela existência de cadeias produtivas bem definidas, o que favorece o uso de métodos de arrecadação tributária ortodoxos, como o imposto sobre valor agregado (IVA) ou o imposto sobre a renda.


Ainda hoje uma garrafa de vinho é acompanhada fisicamente pela fiscalização desde o momento que sai da vinícola, com sua nota fiscal discriminando tipo, volume, embalagem, valor etc., até seu destino final. Ao chegar em algum supermercado em qualquer ponto do país, o produto é conferido, fiscalizado, e visualmente inspecionado.


Se isto fazia sentido no passado, tal método artesanal tornou-se hoje um exercício de patente futilidade. Não há como aplicá-lo, por exemplo, às centenas de milhões de transações realizadas diariamente em economias modernas como o Brasil, ou a um consultor que envia recomendações a seu cliente, em outro continente, por e-mail, de sua residência.

Tecnologia e tax design

O paradoxal, contudo, é que embora o impacto tecnológico da era digital seja praticamente universal, a ciência e a prática tributárias seguem estruturalmente impermeáveis a todas estas tendências verdadeiramente revolucionárias.


Os sistemas de arrecadação de tributos e seus conceitos fundamentais seguem destoando desta modernidade, mantendo seus conceitos e práticas desenvolvidos no século passado, durante a era analógica. Com exceção da tributação sobre movimentação financeira através das transações bancárias, utilizada em pequena escala por vários países, e particularmente no Brasil durante um período de aproximadamente doze anos, até 2007, poucas, ou nenhuma, inovações tributárias foram introduzidas no mundo.


Certamente alguns dirão que o sistema tributário, pelo contrário, se acha informatizado e automatizado. As declarações passaram a ser feitas pela internet, e poderosos computadores cruzam informações dos contribuintes em busca de indícios de evasão. As notas fiscais eletrônicas permitem o acompanhamento online das transações realizadas nos mais variados mercados, e o processo de cobrança adquiriu inusitada rapidez e agilidade.


Mas a realidade é que o processo tributário acelerou muitas de suas tarefas mecânicas de transporte e armazenamento de informações, mas continua se valendo de conceitos funcionais da era analógica. É como se subitamente dispusessem de máquinas de escrever e de calcular mais rápidas, mas realizando as mesmas operações de sempre.

Houve grande avanço no uso da tecnologia na gestão tributária, que, segundo Jeffrey Owens avança rapidamente nos vários estágios da digitalização administrativa, partindo do uso de e-files, para e-accounting, e-match, e-audit, e-assess e finalmente chegar ao e-government[6].


Não obstante o uso intensivo de tecnologia como instrumento de gestão do sistema tributário, as bases e conceitos fundamentais da política tributária e dos tributos utilizados hodiernamente são as mesmas de um século atrás, ou seja, renda, consumo, folha salarial e patrimônio. A apuração de débitos e créditos tributários continua presidida por conceitos como territorialidade, materialidade e tipicidade de produtores e de produtos. A estrutura de arrecadação continua sendo preponderantemente o sistema artesanal do “auto apuração e auto recolhimento com auditoria”, como vem sendo feito há mais de cem anos, ainda que agilizados por registros e mecanismos de controle digitais. A principal forma de cobrança dos fiscos se dá em moldes convencionais. Continua sendo a movimentação física de produtos, com inspeções visuais de mercadorias feitas em barreiras estaduais ou nacionais para conferências com as respectivas notas fiscais que as acompanham. Em recente publicação, Fernando Resende diz que

“À medida em que o território deixa de ser a referência principal para a resposta à pergunta sobre o que e como tributar, as tentativas de ajustar o figurino tradicional a uma nova realidade encontram grande dificuldade para encontrar uma solução que atenda aos distintos interesses envolvidos nessa área. Isso explica as dificuldades para avançar no rumo de novas regras para a tributação, tendo em vista os conflitos entre as posições a respeito da localização e da responsabilidade por tributar o valor acumulado ao longo de uma cadeia global de geração de valor” [7].

A tecnologia digital não penetrou no âmago do pensamento tributário convencional e nem influenciou o surgimento de conceitos melhor adaptados ao mundo moderno como a desmaterialização do valor, o desaparecimento das barreiras nacionais e a perda da capacidade de administração tributária dos Estados nacionais.


Como definir origem e destino de um impulso eletrônico que em segundos roda toda a extensão do planeta? Como tributar ideias, pensamentos e projetos embalados e impulsos eletrônicos indecifráveis para o fiscal de impostos?


Com a crescente “servicificação” da produção, como discriminar tributos incidentes sobre manufaturas ou sobre serviços quando os conceitos da moderna manufatura se acham profundamente mesclados com prestação de serviços tornando a tradicional distinção entre atividades secundárias e terciárias um resquício anacrônico de um mundo com processos de produção claramente definidos, mas que está em vias de desaparecer?[8]


Usando o dito popular, a modernização nos sistemas de gestão utilizada pelas administrações tributárias atuais é apenas “remendo novo em calça velha”. Os vultosos esforços feitos por entidades como a OCDE e as Nações Unidas na discussão de como ajustar os sistemas tributários convencionais à nova realidade da economia digital se restringem, em grande parte, a criar muletas para sustentar conceitos tributários do passado, criados na era da economia linear e analógica. Busca-se suprir a dificuldade de tributação no mundo virtual apelando para soluções casuístas e pontuais, como por exemplo, a reintrodução de um tributo préIVA, semelhante ao antigo IVV( imposto sobre vendas e consignações)ou ao atual COFINS, o chamado digital tax incidente sobre receitas brutas dos gigantes do mundo digital, e que curiosamente são cumulativas e exemplos claros de “ring fencing”, ambas práticas bastante criticadas[9]. Ou então na esdrúxula proposta de tributação dos robôs[10].

Esses exemplos demonstram a dificuldade de muitos tributaristas em reconhecer que os sistemas tributários tradicionais não mais atendem as necessidades do mundo globalizado comandado pela rápida inovação, pela informatização, pela servicificação e por novos modelos de negócios e de organização da produção e distribuição de bens e serviços.


Vários autores vêm chamando atenção para a obsolescência dos sistemas tributários convencionais. Correia Neto, Afonso e Fuck afirmam que “As transformações em curso nas relações sociais e econômicas reclamam tributos diferentes e outras formas de cobrança...As bases estabelecidas no início do século XX caminham para tornarem-se rapidamente obsoletas- inaptas para lidar com as novas práticas comerciais e novos modelos de negócios”.[11]


Muito tem sido feito para apontar as inadequações dos sistemas tributários atuais às novas condições do mundo moderno. Contudo, os detalhados diagnósticos produzidos têm resultado em miríades de novas exigências burocráticas e em incontáveis apelos à cooperação internacional para troca de informações e de esforços conjuntos de fiscalização e controle. Mas pouco para a idealização de inovações tributárias que tornem as exigências acessórias tributárias mais simples, mais leves e menos custosas.


Ademais, os critérios adotados pela nova contabilidade internacional passaram a exigir crescentes esforços para ajustar as demonstrações empresariais aos conceitos adotados pelas administrações fiscais. Exemplo eloquente dessa tendência são recomendações para que os lucros das empresas sejam divididos entre lucros normais, ou regulares, e lucros extraordinários ou residuais, tipificando-se estes últimos como sendo oriundos da massa de consumidores e das informações deles capturadas por meios digitais. O objetivo é distribuir os lucros tributáveis das empresas entre os países produtores e consumidores com o objetivo de compartilhar a tributação dos lucros dessas empresas. Criaram-se métodos de discriminação desses lucros extremamente complexos e custosos, algoritmos e outros mecanismos que inevitavelmente levarão a diferenças de interpretação a ao crescimento inevitável do contencioso e dos custos acessórios tributários. Introduziram-se temas como “valor justo” ou “preço justo”, conceitos estranhos aos economistas, empresários e

administradores, uma autêntica busca pela pedra filosofal.[12]


Critérios basilares da tributação convencional do consumo tornam-se conceitos nebulosos, opacos e sem clara delimitação de limites.


Como lidar de modo adequado, por exemplo, em uma situação em que uma cirurgia é realizada remotamente abrangendo polos opostos no planeta, onde um exame médico é enviado pela internet para análise e diagnóstico por um médico no exterior, que por sua vez encaminha sua opinião ao paciente? Onde está a prestação de serviços? Onde está a origem e o destino dessa transação? Qual o valor agregado nesta troca e como identificar os sujeitos tributários ativos e passivos?


Confrontados com esses problemas, as recomendações não têm caminhado no sentido do desenvolvimento de novos métodos, mecanismos e conceitos para serem utilizados em inovações tributárias, mas na recomendação de volumosa documentação regulamentadora que tenta ajustar os fatos da economia digital do século XXI ao figurino dos dogmas da economia convencional analógica do século XX.


Finalizando em tom pessimista, Correia Neto, Afonso e Fuck afirmam que os impostos do futuro “ainda estão por serem descobertos... (e que) já se tem como certo que as formas atuais não parecem suficientes nem adequadas para lidar com a nova realidade econômica e social. Muito deve ser mudado: conceitos, teorias, práticas e estruturas jurídicas”.[13]

Neste ponto, contudo, ainda que concordando com o diagnóstico dos autores, não há como concordar com seu prognóstico, como será demonstrado logo abaixo.

Tax Design: follow the money

Nas palavras de Richard Bird, “the first law of finance is inertia” o que o levou a concluir em 1988 que não se deveria esperar grandes inovações tributárias nos cinquenta anos seguintes, como pode ser lido abaixo.

“It is surprising that the many governments in the world, most of which are trying to raise more revenues, have not come up with more ingenious ways of doing so. The lure of the familiar and the apparent desire of most governments- like most people- not to be the first to do anything new doubtlessly account for the relative lack of fiscal innovation in the last 50 years.…For the most part, however, a first lesson suggested by history is that the fiscal problems of the next 50 years will probably have to be dealt with using taxes very much like those on hand today. As with most social and political institutions, there seems to be little or no chance of a quick technological fix.”[14]

Infelizmente Richard Bird está correto... por enquanto, pois neste emaranhado de contradições e de tentativas de controlar o incontrolável para ajustar o mundo digital aos paradigmas convencionais da velha economia analógica há um fato promissor e que sempre esteve presente na economia de mercado, tanto na era analógica quanto na era digital.


A identificação e reconhecimento deste fato pode interromper a fatídica inércia mencionada por Richard Bird: trata-se do ato de pagamento que acompanha qualquer transação econômica no mundo capitalista.


Mesmo neste mundo repleto de mudanças um fato persiste íntegro desde que, como mecanismo de troca, o escambo foi substituído pela intermediação da moeda: a onipresença do pagamento e a contrapartida monetária de qualquer transação econômica. Podem ter mudado o mecanismo e as formas de pagamento, mas o conceito essencial do meio de troca persiste existindo como sempre existiu.


Nestas circunstâncias porque não explorar como base imponível esse elemento simples, transparente e onipresente, facilmente observável empiricamente?[15] Trata-se de mecanismo que permitiria amplas possibilidades de rastreamento das atividades econômicas e ao mesmo tempo oferece ampla base de incidência que sintetiza praticamente todas as bases tributárias utilizadas nas economias modernas.


Neste mundo em crescente processo de desmaterialização da economia por que desprezar a cobrança de tributos incidindo diretamente sobre a moeda eletrônica que circula no sistema bancário? Esta forma de exação dispensa a parafernália de regras, papéis e controles físicos típicos dos tributos convencionais que impõem custos elevadíssimos para os governos e para as empresas.

É no ambiente digital envolvendo as transações financeiras que reside a nova e promissora base de cobrança de impostos para o financiamento dos Estados modernos.


Apesar da movimentação financeira já ser um tributo amplamente cobrado em vários países no mundo, ele tem sido utilizado mais frequentemente como um tributo regulatório, como por exemplo, o IOF no Brasil. Apenas três países o utilizaram, ou o vêm utilizando, como um tributo com fins arrecadatórios e de incidência ampla: Brasil, que o aplicou por cerca de doze anos entre 1994 e 2007, Argentina que o utiliza desde a década de 90, e ainda o faz com alíquota de 0,6% nos débitos e 0,6% nos créditos bancários e a Hungria que passou a cobrar o imposto a partir de 2014 com alíquota de 0,3%, após amplo debate e com a concordância das autoridades econômicas da União Europeia, inclusive do Banco Central Europeu.


Pelo fato de o IMF ser um tributo cumulativo, e sua antítese ser a metodologia de cobrança não cumulativa sobre valor agregado, o debate tributário no Brasil acabou focado nas vantagens e desvantagens destas duas formas de tributação.

A erosão de um paradigma

Há plena concordância quanto às vantagens dos IMFs (imposto sobre movimentação financeira) comparativamente aos IVAs em termos de simplicidade, economicidade e produtividade (universalidade). No quesito neutralidade, contudo, há intenso debate. A principal crítica aos IMFs advém de sua cumulatividade. Por esta razão, o paradigma convencional assume como verdade inquestionável que os IVAs são tributos de melhor qualidade que os IMFs.


Esta afirmação, contudo, precisa ser qualificada e validada empiricamente.


Discutindo a evolução recente da tributação no mundo, Vito Tanzi aponta a introdução de apenas duas inovações recentes: os tributos sobre valor agregado em meados do século, os IVAs, e, ainda que de menor relevância, os impostos sobre movimentação financeira por iniciativa de países latino americanos no final do século.[16]

Como o Brasil foi pioneiro em ambas as inovações21, parte do debate tributário convergiu para uma ampla discussão acerca de vantagens e desvantagens de IVAs versus um IMF, como citado abaixo.

The first school of thought – associated with the use of conventional declaratory taxes – believes that “old taxes are good taxes”. This school mistakenly sustains (so claim such conservative reformers) the continuation of paradigms which, inadvertently to them, have become outdated, and which have been superseded by the peculiar impacts of modern economies, characterized by globalization and by the overwhelming effects of the digital information age. The great Brazilian economist, diplomat, and public figure Roberto Campos, an active participant in the tax reform debate, once stated that that to defend this school of thought is to engage in a melancholic and poorly disguised exercise of trying “to perfect the obsolete.”

The second school of thought calls for the elimination of declaratory taxes and for their substitution by electronic taxes operating through the bits and bytes of the data-processing centers and clearinghouses of the banking system, such as a bank transactions tax. Traditionalists call this an audacious proposition, bordering on illusion. Despite the proven capacity of such taxes to generate impressive amounts of revenue and to show an almost universal pattern of incidence and coverage, researchers and defenders of this school of thought usually draw the wrath of traditionalists who oppose it. The guardians of orthodoxy, the bureaucratic establishment, and the recurrent tax evaders refuse to relinquish their decades-old professional and intellectual investments – despite the fact that all evidence proves them increasingly obsolete”22.

A visão convencional prega que o IVA é uma forma de tributação que não provoca distorções nos preços relativos e, portanto, garante neutralidade na atividade produtiva transferindo a incidência total do imposto ao consumidor. Em relação ao IMF, é rotulado como um imposto taxation in the past 50 years. [But also] … gross assets taxes and taxes on financial transactions have been less important technological developments in Latin America.”


Curiosamente em ambos os eventos no uso de IVAs e IMFs o Brasil inovou ao ser um dos primeiros a introduzir tributos sobre valor adicionado em larga escala nos anos 60, e nos anos 90 ao criar o IPMF/CPMF que durou até 2007.


Vide [CINTRA 2009] pp.1-3. No mesmo texto, são abordadas as dificuldades e obstáculos para a superação de “paradigmas convencionais” se valendo de conceitos apresentados por Thomas Kuhn. É citado também John Kenneth Galbraith ao dizer “conventional wisdom is summarily considered “unscientific”, not because of lack of objective analysis of its scientism, but simply because it does not apply methods and models considered “correct”, “truthful” or “evident””.

causador de distorções alocativas graves dada sua cumulatividade e as alterações que causaria nos preços relativos.


Cabe apontar que o agente econômico que recolhe os tributos não é necessariamente o agente econômico que sofre a incidência deste mesmo tributo. Obviamente, a metodologia de arrecadação sobre o valor agregado faz com que os tributos pagos, ou recolhidos, durante o processo de produção gerem créditos a serem abatidos do tributo devido quando da saída do produto. Isto não significa, contudo, que a incidência desse tributo seja inteiramente repassada ao próximo elo da cadeia de produção. Os preços dos insumos após a imposição de um tributo sofrerão alterações cuja magnitude dependerá das elasticidades da demanda e oferta deste insumo.


A alegação que o consumidor é quem efetivamente arca com a totalidade do ônus do imposto não encontra respaldo econômico. A adição da tributação sobre os preços livres de impostos tem impacto sobre a oferta do produtor. Os preços se elevam e uma parte do imposto é pago pelo consumidor e outra recai sobre o ofertante por meio de preços recebidos mais baixos. Numa situação na qual a demanda é mais elástica a incidência do imposto recai mais fortemente sobre o produtor. Contrariamente, a oferta mais elástica impõe maior ônus para o consumidor.


Ademais, a análise correta da incidência tributária exige uma abordagem de equilíbrio geral o que torna a neutralidade atribuída aos IVAs uma propriedade dependente da concretização de hipóteses altamente improváveis em relação aos mercados de insumo e de produtos finais.


A neutralidade teórica dos IVAs demanda uma situação na qual sua alíquota deve ser única, e sua incidência ser absolutamente universal sobre todos os setores e atividades, e a sonegação seja inexistente. Em outras palavras, a superioridade do IVA do ponto de vista de sua alegada neutralidade depende da aceitação de premissas extremamente fortes e não encontradas na realidade econômica dos mercados.

Com o objetivo de apresentar evidências que possam relativizar as vantagens alocativas dos IVAs frente aos tributos cumulativos como o IMF vale reproduzir o que segue:

“Cumulative taxes are often criticized on the basis of comparisons with value-added taxes. In general tax analysts follow the usual text-book conclusions that make extensive use of optimal tax theory in reaching normative conclusions about their respective impacts on allocative efficiency. Such conclusions, however, are fragile to the extent that such theoretical work depends heavily on strong assumptions, which are seldom, or never, found in the real world. Good economic analysis requires that each type of tax be evaluated not only for its intrinsic characteristics but must also take account of the empirical circumstances surrounding its application. Failure to consider these circumstances, coupled with a naïve, automatic and uncontested acceptance of the simplifying hypothesis found in the theoretical compendia of public finance, implies running the risk of making gross mistakes. Such is the case when the VAT is discussed in Brazil.

One advantage claimed on behalf of VATs is that they cause fewer distortions in relative prices than would be caused by cumulative taxes. However, for this statement to be true, one must accept the premise that perfectly competitive markets exist, such as assumed in conventional optimal tax theories, based on excess-burden analytics…

On the validity of policy prescriptions of optimal tax theory it is worth quoting Frank Hahn, who says “...while these studies have increased our understanding of what is involved, the tax formulas which they contain cannot be taken very seriously...Welfare economics is the grammar of arguments about policy, not the policy.

On this same line of thought (Agnar) Sandmo states that “The theory obviously has its limitations. It is at its best in yielding rules for the optimal structuring of a given tax system and has less to contribute to the discussion of major problems of tax reform, which typically involves the choice between alternative tax systems. A difficulty with the extension of the theory to cover these global problems is that the costs of administration have not been incorporated into the theory; this is one aspect of the neglect of transactions costs in the theory of general equilibrium....This raises the question of whether optimum tax formulae can have any claim to be taken seriously, given that they abstract from such central concerns as administrative costs and incomplete information....it may well be that we shall find the models of optimal taxation to be useful, even though we may have to supplement them with considerations which are exogenous to the models themselves””.[17]


De fato, é possível demonstrar que uma sociedade poderá não escolher um sistema tributário eficiente se, comparativamente a outro nãoeficiente, for possível alcançar um ponto superior em sua função de bem estar social. Em outras palavras é possível que um IMF cumulativo seja preferível a um IVA que introduza menos distorções nos preços relativos de uma economia se, por acaso, outras características desse tributo tais como simplicidade, baixos custos de compliance e menor sonegação estejam presentes.[18]

Uma segunda linha de argumentação a questionar a superioridade dos IVAs frente aos IMFs se apoia na teoria do “second best”, desenvolvida por Richard Lipsey e Kelvin Lancaster na década de 50, segundo a qual não é possível afirmar a priori que um IVA é preferível a um tributo cumulativo se as condições exigidas para o funcionamento de um mercado competitivo perfeito não forem atendidas. Segundo os autores,

The general theorem for the second best optimum states that if there is introduced into a general equilibrium system a constraint which prevents the attainment of one of the Paretian conditions, the other Paretian conditions, although still attainable, are, in general, no longer desirable. In other words, given that one of the Paretian optimum conditions cannot be fulfilled, then an optimum situation can be achieved only by departing from all other Paretian conditions. The optimum situation finally attained may be termed a second best optimum because it is achieved subject to a constraint which, by definition, prevents the attainment of a Paretian optimum. From this theorem there follows the important negative corollary that there is no a priori way to judge as between various situations in which some Paretian optimum conditions are fulfilled, while others are not. Specifically, it is not true that a situation in which more, but not all, of he optimum conditions are fulfilled is necessarily, or even likely, to be superior to a situation with in which fewer are fulfilled....It follows from the above that there is no a priori way to judge as between various situations in which none of the Paretian optimum conditions are fulfilled. In particular, it is not true than a situation in which all departures from the optimum conditions are of the same direction and magnitude is necessarily superior to one in which the deviations vary in direction and magnitude.”[19]

A teoria do second-best nos alerta sobre os riscos de prescrições tributárias genéricas, sem uma detalhada análise empírica do ambiente no qual se busca intervir. Considerando a característica essencialmente heurística e não observados no mundo real dos postulados da teoria econômica neoclássica sobre a qual estão assentados os pilares da tributação ótima,[20] análises formais sem validação empírica de pouco servem, quando não prejudicam, os esforços em prol de uma reforma tributária.


Crer sem questionar é ser prisioneiro de um paradigma. Mais do que nunca o mundo digital nos desafia a comprovar, testar e até mesmo, se necessário, a romper com o conhecimento convencional e incorporar na teoria e prática da tributação novos conceitos e práticas inexistentes anteriormente.

Vale apontar ainda que quase todos os dogmas do conhecimento tributário ortodoxo são desrespeitados, com maior ou menor intensidade, no quotidiano dos sistemas tributários existentes atualmente no mundo.


Vê-se, portanto, que não se trata da desconstrução de uma realidade vigente, ainda que inadequada; mas sim de reconhecer um novo paradigma relativo a práticas e conceitos tributários formais, cujas características funcionais já estão sendo utilizadas na prática, ainda que em desacordo com o conjunto de valores aceitos acriticamente por grande parte da comunidade.

A operação do IMF

No Brasil, a informatização dos bancos e a predominância da moeda eletrônica estimularam a adoção de uma nova base tributária na década de 90: a movimentação financeira.


Interessante notar que a base movimentação financeira é em realidade uma síntese de todas as bases tributárias utilizadas atualmente, com exceção da base riqueza. Todos os fatos geradores convencionais como renda, consumo, circulação, folha de salários são abrangidos pelo IMF. Apenas o estoque de riqueza, base para tributos sobre propriedade não é alcançado, ainda que a tributação sobre transações de propriedade seja eficazmente alcançada. Desta forma, diferentemente dos que afirmam alguns, a movimentação financeira pode ser considerada a mais perfeita proxy das bases convencionais, e, portanto, representa com fidelidade a atividade econômica e a capacidade contributiva dos agentes econômicos enquanto contribuintes. Ela tributa a renda (salários, juros, lucros e alugueis), a circulação e o consumo, deixando de tributar apenas o estoque de riqueza.


No início dos anos 1990, quando se discutia a criação de um Imposto sobre Movimentação Financeira (IMF) com o propósito de contribuir para o ajuste das contas públicas (o IPMF que vigorou em 1994), e depois para financiar a saúde pública (a CPMF, que vigorou de 1997 a 2007), muitos críticos desse tipo de tributo alardearam que ele seria danoso ao sistema produtivo nacional. No entanto, os fatos acabaram desmentindo as profecias catastróficas apregoadas na época, pois a experiência brasileira com a tributação sobre movimentação financeira foi positiva. Ela mostrou ser um tributo de baixo custo para os contribuintes e para o governo, não gerou contencioso, além de ser imune à sonegação e à evasão.


Infelizmente, a implantação do IMF foi desvirtuada no Brasil, pois surgiu como mais um tributo, quando a ideia inicial era ser um substituto dos atuais impostos e contribuições. O Imposto Único focava o objetivo de unificar todos os tributos com características fiscais em um único imposto eletrônico, deixando viger apenas os atuais tributos com finalidades extrafiscais, como por exemplo o imposto de importação, taxas, e contribuições individualizadas, como o PIS e o FGTS.


Por razões que não cabe discutir aqui, o debate que levou à extinção da CPMF em 2008 foi iminentemente político, ignorando-se por completo a experiência que, de forma pioneira em todo o mundo, foi implantada no Brasil com enorme sucesso em doze anos de vigência.


O IMF, por sua universalidade e facilidade de arrecadação, possibilita a substituição de impostos e contribuições de natureza declaratória por uma incidência sobre transações bancárias. Pode ser utilizado tanto como um substituto pontual de tributos de baixa produtividade e alto custo, quanto, no limite, em sua forma mais radical, como um imposto único. Os tributos declaratórios convencionais seriam extintos e a receita que eles geravam seria obtida mediante a criação de um único imposto, incidente sobre as transações bancárias realizadas nas contas movimento dos clientes.


Ao IMF são atribuídos alguns efeitos operacionais indesejáveis: o estímulo à desintermediação bancária pela monetização da economia, a não-desoneração das exportações, estímulos à verticalização, cumulatividade e regressividade.[21]


Quanto ao primeiro caso, a proposta prevê a cobrança de uma alíquota adicional sobre os saques e depósitos para compensar o período que, em média, o papel-moeda ficará em circulação até seu retorno para o sistema bancário. Ademais, cabe esclarecer que a aplicação do IMF exigiria proteção legal, no sentido de tornar obrigatória a circulação pelo sistema bancário de qualquer operação comercial para que ela tenha validade e legitimidade.


Em relação ao segundo caso, o impacto no sistema bancário, haverá uma conta investimento na qual o dinheiro irá circular sem a incidência desse tributo, sendo cobrado o Imposto de Renda sobre os ganhos das aplicações. Apenas quando esses recursos retornarem ao circuito das operações na conta movimento o IMF voltaria a incidir[22].

É preciso pensar os sistemas tributários contemporâneos com base no ambiente globalizado e digital em que a sociedade vive e se desenvolve atualmente. Não há como imaginar que os tributos convencionais e ortodoxos gerados na era do papel, dos livros contábeis e das barreiras físicas de transporte de mercadorias serão capazes de evitar a generalizada evasão tributária e suas dramáticas consequências para o financiamento do estado moderno[23].


Vale citar que praticamente em todo o mundo os IVAs comportam regimes especiais, o que lhes conferem graus apreciáveis de cumulatividade. Além disso, cumpre lembrar que o Brasil tem uma série de tributos cumulativos, entre os quais alguns são odiados (como a CPMF), outros tolerados (ISS, parte do ICMS e do IPI) e outros ainda apreciados, como se não fossem cumulativos (PIS/Cofins cumulativo e Simples).[24]


Quanto ao mercado financeiro, vale relembrar o que ocorreu no Brasil com a CPMF entre outubro de 2004 e 2007 quando a lei 10892/2004 criou a conta-investimento para isentar os investidores da incidência daquele tributo exatamente para neutralizar seus impactos negativos no setor financeiro.


Em relação às exportações, um IMF permite que se estime o peso do tributo em cada produto a partir de uma matriz intersetorial utilizada para calcular os impactos sobre os preços. A partir dessa informação seria possível destinar créditos aos exportadores por meio de rebates fiscais.


No tocante ao estímulo à verticalização, o processo decisório interno à empresa nesta decisão pende para questões de natureza tecnológica, como ganhos de especialização e de escala, em relação as quais o IMF é geralmente irrelevante considerando sua baixa alíquota marginal. Difícil imaginar, por exemplo, uma montadora de automóvel voltar a produzir aço, borracha, pneu e vidro para fugir do tributo sobre alguns insumos que individualmente representam pequenas proporções dos custos totais de insumos.


Por fim a desintermediação: dizem os críticos que um IMF fará com que as pessoas e empresas vão deixem de utilizar os bancos para trabalhar com dinheiro, e que consequentemente esta base tributária tende a se contrair e reduzir a arrecadação. Afirmam que em outros países isto teria ocorrido, citando-se o caso argentino.


Primeiramente, não procede a afirmação que esse tipo de tributo gerou monetização na Argentina.[25] Naquele país vige desde 2002 um IMF cuja arrecadação tem se mantido constante, com alíquota de 0,6% em cada lado de uma operação bancária. Na Colômbia o tributo com alíquota de 0,3% em 2001 e 0,4% a partir de 2004 manteve-se incialmente em 0,7% do PIB e depois saltou para 0,9% do PIB e aí se manteve. No Peru a receita foi declinante em razão da alíquota ter sido reduzida de 0,15% para 0,005% para se tornar um instrumento de fiscalização contra a sonegação.


Quanto aos possíveis estímulos ao uso de dinheiro em espécie cabe lembrar que hoje nos setores de serviços, comércio e indústria o prêmio ao sonegador pode ir de 26% a 37% em razão dos atuais tributos. Basta a não emissão de um Nota Fiscal. Por que com cerca de 1%, 2% ou 3% de um IMF haveria maior incentivo? Sem falar nos custos de transação mais elevados com uso de moeda manual, como transporte e segurança. Por fim, vale dizer que a monetização pode ser controlada com medidas dissuasivas como a cobrança de alíquotas dobradas nos saques e depósitos de dinheiro em espécie, tornar obrigatório que todas as transações transitem pelos bancos para terem reconhecimento jurídico, ou retirar de circulação cédulas de valor elevado.


Adicionalmente, os críticos da tributação sobre a movimentação financeira levantam a questão de as criptomoedas substituírem as moedas nacionais. Sem dúvida, trata-se de ameaça real, mas ela diz respeito a qualquer sistema tributário, seja eletrônico, cumulativo, declaratório ou sobre o valor agregado. O impacto potencial das moedas digitais vem sendo analisado por instituições como os Banco da Inglaterra, do Canadá, o Federal Reserve e o Departamento do Tesouro nos Estados Unidos com vistas a estabelecer controles que devem disciplinar seu uso visando preservar a capacidade de arrecadação pública.

Considerações finais

Parte expressiva do pensamento tributário contemporâneo estacionou em teorias e dogmas vigentes em meados do século passado, mantendo-se presa a conceitos e princípios ultrapassados que não se ajustam ao mundo contemporâneo. Ainda que os métodos administrativos de controle e a atividade do Fisco tenham sido operacionalmente

modernizados, as estruturas conceituais sobre as quais estão assentados os paradigmas usualmente defendidos nas propostas convencionais de reforma tributária continuam em grande parte em desacordo frente à realidade do novo modo de produção e circulação de bens e serviços que surge na sociedade atual.

Nos últimos anos, medidas isoladas atingindo questões tributárias pontuais visaram, sobretudo, aumentar a arrecadação sem que aspectos relacionados à eficiência alocativa dos recursos econômicos fossem levados em consideração. Nestas condições, tais iniciativas foram na contramão das necessidades do país.


Não tem havido simplificação, a complexidade vem aumentando a cada momento, as estratégias de negócios são devassadas pelos fiscos e sujeitas a interpretações que fazem explodir o contencioso e a iniquidade se aprofundou. Os custos de transação explodem, e as exigências fiscais sufocam as empresas e as famílias com altos custos de compliance.


Tudo isto como resultado de uma insensata insistência em amoldar princípios ultrapassados de exação tributária a um mundo novo, vigoroso e repleto de inovações jamais imaginadas por nossa “vã filosofia”.


O cenário econômico global, baseado na tecnologia digital, exige uma forma de tributação inovadora, como o IMF, que traz inúmeras vantagens. A fiscalização torna-se mais simples, os critérios de taxação ficam mais automáticos e desburocratizados, e os custos de gestão para o poder público, e principalmente para o setor produtivo privado, tornam-se menores. A simplificação do processo fiscal é evidente quando a arrecadação dispensa declarações, guias e controles burocráticos.


O IMF eliminaria virtualmente a sonegação, a corrupção fiscal e a economia informal, com custos administrativos ou de fiscalização pouco significativos.


Em resumo, o IMF é uma forma de tributação inovadora, em sintonia com a sociedade moderna, capaz de gerar expressivos ganhos de eficiência e competitividade. No ambiente dinâmico e inovador do mundo moderno, a busca incessante e exaustiva do fato gerador analógico do passado deve dar lugar ao uso do fato gerado disponível nos registros digitais dos pagamentos.


Em A Marcha da Insensatez, a historiadora Barbara Tuchman nos alerta que decisões aparentemente sensatas quando analisadas pontualmente podem produzir resultados catastróficos e irracionais em seu conjunto histórico. Em uma tradução literal, o título original, The March of Folly, parece mais fidedigno ao mundo tributário atual: a marcha da loucura.


 

Bibliografia

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[1] Este texto coleta e expande informações contidas em vários trabalhos do autor citados na bibliografia, particularmente em [CINTRA, 2009] e [CINTRA,2020]. [2] Para uma ampla e atualizada exposição sobre a Teoria da Tributação ver [KAPLOW, 2008] [3] O Brasil vem sendo um dos pioneiros no uso da tecnologia digital na administração tributária, a exemplo da Nota Fiscal Eletrônica, das declarações via internet e do programa SPED, já plenamente desenvolvido entre nós. [4] Sobre esse tema e sobre problemas gerados pelas criptomoedas e pela economia colaborativa, ver Verdi M.F., e Miguez S.D.S., Economia Digital y Tributación in [AFONSO, 2020,] pp-47-66. [5] [TANZI,2000] p.4. [6] [OWENS, s/d] [7] [RESENDE, 2019]. [8] [MIROUDOT,et al 2017], demonstra que nos países pesquisados os serviços são responsáveis por cerca de dois terços do valor das exportações, incluindo 53% do valor de manufaturados exportados; e que entre 25% e 60% do emprego no setor manufatureiro são serviços de suporte, e que até 69% das empresas exportam tanto manufaturas quanto serviços. [9] Para uma breve visão da complexidade, burocracia e altos custos das propostas em discussão pela OCDE e outros organismos multilaterais para lidarem com a tributação da economia digital usando o arcabouço tributário convencional ver Araujo J.E.C. et al A tributação dos Lucros das Gigantes de Tecnologia: possibilidades para o Brasil in [AFONSO et al, 2020] pp 411-427. [10] Sobre a tributação de robôs ver Dorigo, S., Robots and taxes: turning an apparent threat into an opportunity, in [TAX NOTES INTERNATIONAL, 2018]; Englisch, J., Digitalization and the future of national tax systems: taxing robots? in [HASLEHNER, 2019] capítulo 12. [11] Correia Neto C.B., Afonso J.R.R.,Fuck ,L.F., Desafios Tributários na Era Digital, in [Afonso et al,2020] p.32. [12] Vide Seira E., et alii Retos para el cobro del impuesto sobre la renta em la economia digital, in [AFONSO, et al 2020], pp 357-410. [13] Correia Neto et alii, op. cit. p.43. [14] Bird R.M., Experience from a century of change. In: [STEIN,1988], pp.19-20. [15] Sobre a evolução da tributação no Brasil e a possibilidade de tributar pagamentos vide Cintra, M., Paradigmas tributários: do extrativismo colonial à globalização na era eletrônica, in de [SANTI, 2008], pp. 16-34 e [CINTRA,2009]. [16] Em [TANZI,2000], o autor afirma que “the discovery of value-added taxes in the 1950´s and its widespread use in later years must be considered the most important technological development in [17] [CINTRA 2009,] pp.31-32 [18] Para uma demonstração desta possibilidade teórica ver [CINTRA 2009] pp.33-40 [19] Citado por [Cintra 2009] pp.40-41. [20] Sobre esse aspecto vale a pena reproduzir dois trechos citados por [CINTRA 2009] p.41; o primeiro por Paul Samuelson “a given divergence in a subset of the optimum conditions necessitates alterations in the remaining ones”; e o segundo por J.F Kay “tax reform proposals must not be evaluated by counting the number of distortions, and arguments based on ‘double-taxation’ disregard the fact that it is the relative level of taxation, not the number of times the tax is levied, which is relevant in economic decisionmaking.” [21] Cumpre lembrar, porém, que a adoção do IMF deve vir acompanhada de um tratamento diferenciado para as transações em moeda manual e para os mercados financeiro e de capitais, como ocorreu com a CPMF a partir de 2004. [22] Para uma discussão detalhada das características operacionais recomendadas para a tributação sobre as transações no mercado financeiro e de capitais ver [CINTRA, 2009] pp.187-188. [23] Uma clara preocupação com a crescente evasão de recursos públicos que assola as economias mundiais está contemplada no plano de ação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) intitulado “Addressing Base Erosion and Profit Shifting”. A entidade foca a necessidade de combater esquemas de planejamento tributário praticado por grupos econômicos que se aproveitam de lacunas normativas e assimetrias dos sistemas tributários nacionais para transferir lucros para países com tributação reduzida ou inexistente. [24] Analisando a reforma do PIS/Cofins em 2004 [CINTRA,2004] p.16, se referiu à “psicose anticumulatividade” e seus impactos distributivos setoriais, principalmente na elevação da carga tributária para o setor de serviços e a necessidade de desoneração dos salários como medida compensatória. Esta questão é trazida à baila periodicamente, a cada tentativa de realizar uma reforma tributária da tributação sobre consumo. [25] Para uma análise do caso argentino ver [CINTRA, 2009] pp. 167-169.

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