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  • Marcos Cintra

Em defesa do Imposto Único

Em mais uma de suas rotineiras investidas contra o Imposto Único e contra a tributação sobre movimentação financeira, o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, de triste memória, subscreveu o artigo publicado na VEJA de 9/9/2022 intitulado “A volta do inglório Imposto Único”, onde critica implacavelmente a candidata Soraya Thronicke por sua proposta chamada de “1 IMPOSTO só” ou Imposto Único Federal.


Senti-me na obrigação de defender a proposta da candidata à Presidência da República, de quem sou candidato à vice, e a ideia do Imposto Único, pois as críticas demonstram desconhecimento fático e total ausência de comprovação empírica das alegações apresentadas.


O conceito da unicidade tributária tem séculos de tradição na história do pensamento econômico, e não surgiu em 1989 como afirma o ex-ministro. Apenas para apontar os eventos modernos mais importantes, a unicidade tributária foi debatida pelos fisiocratas no século XVIII, passando pelo partido Georgiano norte-americano no século XIX, pelo movimento “poujadista” francês no pós II Guerra, e no fim do segundo milênio, segundo Vito Tanzi apontou, foi retomado por economias sul-americanas com as experiências principais na Argentina e no Brasil. Todos esses detalhes complementares podem ser obtidos em CINTRA, M. Bank Transactions: Pathway to the Single Tax Ideal: A Modern Tax Technology, Amazon Books, 2009, disponível em www.marcoscintra.org, caso o ex-ministro deseje consultar.


Já a tributação sobre fluxos financeiros, um conceito longe de ser inovador, vem sendo amplamente aplicada há décadas em inúmeros países do mundo, inclusive no Brasil desde 1966 com o IOF.


A junção desses dois conceitos tradicionais, a unicidade tributária e a tributação dos fluxos financeiros, foi pioneiramente proposta, de forma simultânea e independente, por mim e por Edgar Feige.


No Brasil, o Imposto Único, que denominei de IUT, Imposto Único sobre Transações, surgiu em 14/01/1990 em artigo na Folha de S. Paulo. Fui estimulado pela proposta de James Tobin, Nobel de Economia em 1981, que propôs o uso da movimentação financeira como um tributo pigouviano para conter a especulação e a instabilidade que a excessiva volatilidade nos mercados financeiros estaria causando. Já Edgar Feige evoluiu em seu pensamento a partir de aprofundados estudos ligados à informalidade e à economia subterrânea em várias partes do mundo.


Tomei conhecimento de Ed Feige quando, no fim de 1989, o professor Carlos Longo mencionou que proposta denominada de APT, Automated Transaction Tax , semelhante ao IUT, havia sido apresentada pelo norte-americano em congresso na Argentina alguns meses antes, fato que, aliás, fiz questão de mencionar em minha primeira comunicação sobre o assunto.


Conclui-se, diferentemente do que demonstra saber o ex-ministro, que a tributação sobre movimentação financeira não é uma jabuticaba, como insinua pejorativamente em suas críticas, mas já é parte integrante, até tradicional, do ferramental tributário mundial.


Um segundo aspecto que desejo mencionar trata de interesses contrariados pela proposta do Imposto Único. São majoritariamente dois tipos de opositores que sistematicamente se posicionam contrários à proposta.


O setor financeiro acredita que a tributação de fluxos financeiros poderia prejudicar suas atividades e estimular a fuga de correntistas do sistema bancário. Tal oposição ocorre não apenas aqui no Brasil, mas em outros países onde o tema vem sendo discutido. Ela foi relatada em propostas semelhantes geradas, entre outros, no projeto Hamilton, patrocinado pelo Brookings Institution dos EUA, e pelo departamento de finanças da Universidade de Zurique, na Suíça, dois países onde a tributação da movimentação financeira vem sendo analisada.


O mesmo ocorreu na Hungria, que adotou a tributação de fluxos financeiros em 2013 a partir de discussões e recomendações oriundas de diretivas oficiais da União Europeia, em 2012. Vale lembrar que recente fórum internacional “Reforma tributária: simplificação e justiça social”, realizado em São Paulo e em Brasília em maio último, pelo Instituto Índigo, debateu o tema com a presença de estudiosos brasileiros e do exterior sobre o assunto.


Para ilustrar a oposição sistemática do setor financeiro ao Imposto Único, no início dos debates sobre o tema na década de 90 fui convidado pelo presidente de um grande banco brasileiro para expor a proposta à cúpula da instituição. Fui gentilmente aerotransportado para a sede do banco, onde, após minha exposição, foram reconhecidos alguns méritos da proposta. Contudo, fui alertado que o setor se posicionaria frontalmente contrário a ela, e que consultorias externas seriam contratadas para rebatê-la. Pouco tempo depois, mas logicamente deve ter sido mera coincidência, o ex-ministro prepara relatório no qual recomenda a imediata rejeição do Imposto Único no Brasil.


Ademais, o Imposto Único desagrada os sonegadores, os corruptos e os que praticam planejamento tributário abusivo. Usam tais práticas como poderosa arma de concorrência desleal, com evidentes implicações negativas na produtividade total dos fatores de produção ao permitir que uma empresa menos eficiente sobreviva em detrimento de outras mais eficientes.


O terceiro aspecto que marca a crítica do ex-ministro ao Imposto Único, se refere a questões econômicas propriamente ditas.


As mais comuns são os chavões extraídos acriticamente de livros textos introdutórios de economia e mencionados como justificativas contrárias à adoção do Imposto Único. Em geral este tipo de oposição se resume ao argumento de autoridade, e é apresentado como se fossem verdades imperativas, a dispensarem comprovações empíricas.


O exemplo mais contundente é o mantra da não-cumulatividade.


Alega-se que qualquer cumulatividade prejudica a eficiência alocativa das empresas e, portanto, causa-lhes perdas irrecuperáveis. O tema por si só, como fiz na publicação mencionada acima, demanda mais do que meras palavras de ordem, e sim tratamento teórico seguido de validação empírica.

A ser verdade que o Imposto Único é ruim pelo simples fato de ser cumulativo, implica gritante desconsideração do conhecido trade off entre cumulatividade e custos de transação, o que evidentemente é um contrassenso.


Vejamos um exemplo contrafactual. O argumento de que por ser cumulativo o tributo é implicitamente ruim, implica reconhecer a irracionalidade do empresariado brasileiro, que clama pela possibilidade de adesão, por exemplo, ao PIS-Cofins cumulativo para se livrar do regime não-cumulativo. Este comportamento aparentemente irracional do empresariado é consequência lógica do simplismo da argumentação da não-cumulatividade tout court, que desconsidera a existência de trade offs que justificariam a preferência pelos regimes cumulativos.


Roberto Campos, um grande apoiador do Imposto Único, e reconhecendo esta contradição dos críticos radicais, mostrou jocosamente que existem dois tipos de cumulatividade, a boa e a má. A má é a alegada pirâmide tributária supostamente causada pelo Imposto Único, que faria os setores com cadeias “longas” de produção terem sua carga tributária tendente ao infinito. E a boa cumulatividade pode ser vista na preponderante preferência empresarial pelo PIS-Cofins cumulativo ao não-cumulativo, entre outros vários exemplos.


Em realidade, é fácil demonstrar que a carga tributária do Imposto Único chega assintoticamente a um máximo, tão mais rápido e tão mais baixo quanto a relação entre gastos intermediários e valor agregado em cada estágio de produção, por um lado, e por outro, pelo patamar da alíquota, que em geral é significativamente mais baixa que praticamente todos os tributos não-cumulativos dada a sua ampla base de incidência.


Para finalizar, desafio as previsões do ex-ministro relativamente a experiência da tributação da movimentação financeira no Brasil, e que podem ser conferidas na intensa controvérsia sobre o Imposto Único na década de 90, que reproduzo em TRIBUTAÇÃO NO BRASIL E O IMPOSTO ÚNICO, Marcos Cintra (Organizador) Makron Books do Brasil, e disponível em www.marcoscintra.org.


Após a apresentação da proposta do Imposto Único em 1990, uma comissão de notáveis foi formada pelo governo em 1992 para preparar uma proposta de reforma tributária a ser apresentada na revisão constitucional de 1993, que acabou não ocorrendo. A Comissão Executiva da Reforma Fiscal (CERF) foi presidida por Ary Oswaldo Mattos Filho, e composta pelos especialistas Carlos Longo, José Teófilo de Oliveira, Sergio Werlang, Osmundo Rebouças, e Augusto Jefferson Lemos. Teve ainda o benefício de discussões com vários economistas e juristas, dentre eles Alcides Jorge Costa, Bulhões Pedreira, Fernando Rezende, Ives Gandra, Mario Henrique Simonsen, Gilberto Ulhôa Canto e vários outros, cujas contribuições acham-se publicados nos anais da CERF.

O relatório final da comissão propôs uma “contribuição sobre operações representativas de movimentação financeira”, para financiar a seguridade social brasileira, que já naquele tempo achava-se excessivamente dependente de uma base tributária em permanente processo de atrofia, o contrato formal de trabalho, o que continua ocorrendo hoje ainda mais intensamente.


Certamente sob influência dos trabalhos da CERF, em meados de 1992 o então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso e sua equipe econômica composta por respeitados economistas como Gustavo Franco, Winston Fritsch, André Lara Resende, Edmar Bacha e Pérsio Arida, entre outros, criaram o IPMF, um imposto provisório sobre movimentação financeira como um instrumento auxiliar do Plano Real. Porém, não com a finalidade substitutiva, como no Imposto Único ou na proposta da Comissão de Ary Oswaldo Mattos Filho, mas com a finalidade estritamente arrecadatória. Devido ao sucesso do IPMF, ele foi posteriormente transformado em CPMF no governo FHC e perdurou por doze anos até 2007.


Na época, o ex-ministro, exatamente como faz ainda hoje, criticou acidamente a iniciativa de FHC e de sua equipe econômica. Reproduzo aqui trecho de artigo publicado por ele em 13/2/1993, no qual afirma que um tributo como o IPMF seria “um imposto em cascata, regressivo, ineficiente, inflacionário, ultrapassado, socialmente injusto, antifederativo, vendido aos incautos com a fachada da era eletrônica. Prejudica as exportações, beneficia o produto importado, inviabiliza o Mercosul”. E vai mais longe, ao afirmar que a tributação em cascata teria reflexos negativos na produção, e causaria a integração vertical das empresas, geraria uma hecatombe no comércio exterior e poria um fim à terceirização do trabalho. O Brasil, enfim, estaria praticando uma “eutanásia tributária”, como afirmou em 7/02/1993 na Folha de S.Paulo.


Com certeza, por ocasião do Plano Real e da criação do IPMF, o Ministro Fernando Henrique Cardoso e sua equipe econômica optaram por não dar ouvidos a tão apocalíptica previsão. Ainda que, em minha opinião, o IPMF tenha sido adotado por razões diferentes das do Imposto Único, o tributo foi importante no sucesso do plano de estabilização do governo. Sobretudo, foi bem mais eficaz que os planos anteriores, dentre eles o “Feijão com Arroz” da lavra do ex-ministro.


O curioso destas críticas é que o ex-ministro teve praticamente doze anos de funcionamento do imposto para comprovar suas previsões. E ao que se tem conhecimento, trinta anos após a implantação do IPMF pela equipe do Plano Real, o Brasil não sofreu nenhuma das desastrosas consequências que adviriam, segundo ele, da adoção de um tributo sobre movimentação financeira.


Incautamente, porém, o ex-ministro arriscou uma previsão em um de seus artigos e afirmou que “consideradas as mudanças de comportamento dos correntistas ou as isenções, (o IPMF) deve gerar liquidamente cerca de US$ 2 bilhões, ou 0,5% do PIB”. A arrecadação em 1994, com alíquota de 0,25% atingiu 1,06% do PIB, mais que o dobro da previsão do ex-ministro. Com alíquota de 0,38% a CPMF estabilizou em redor de 1,35% do PIB, o que demonstra taxativamente ser um tributo altamente eficaz, simples e com enorme potencial arrecadatório.


Não obstante o IPMF/CPMF ter cumprido inteiramente sua finalidade, os governos do PSDB e do PT o transformaram em um tributo malvisto pela sociedade, pois com ele aumentaram a carga tributária e não substituíram outros tributos. Mas curiosamente, nos anos seguintes até sua extinção em 2007, o tributo sofreu um revezamento de movimentos de apoio e de crítica por parte desses mesmos partidos políticos, dependendo de quem estava no poder ao longo dos doze anos em que esteve vigendo.


Finalizo esses comentários contrastando a frase do jornalista H. L. Mencken, mencionado pelo ex-ministro como se autoridade fiscal fosse, que diz: “Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.


Prefiro escorar minhas opiniões em especialistas em tributação, como Andrea Lemgruber Viol, hoje chefe de divisão na área tributária do Fundo Monetário Internacional, que em documento da Receita Federal do Brasil em 2001 buscou desfazer preconceitos que rondam o IPMF/CPMF ao afirmar que “como muitos outros fatos em matéria tributária, há uma série de mitos em torno dessa contribuição, a maioria deles desprovida de uma análise bem fundamentada acerca dos reais impactos desse tributo. Torna-se necessário, portanto, rever alguns conceitos que caíram na vala comum e reavaliá-los em termos de uma teoria econômica centrada na realidade do País, e não apenas utilizar modelos abstratos para sustentar argumentações que não se sustentam quando aplicadas aos processos políticos, econômicos e sociais de uma nação”.


Sugiro ao ex-ministro que não espere mais trinta anos para decidir estudar mais profundamente o tema que tanto desdenha, evitando assim este nefasto turbilhão de ataques que desfere contra o projeto da presidenciável Soraya Thronicke, que tem como objetivo reposicionar o projeto do Imposto Único à sua trilha original, após o desvio, ainda que justificado, sofrido com o experimento do IPMF/CPMF.

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Marcos Cintra é professor-titular da FGV e ex-secretário da Receita Federal



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