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  • Marcos Cintra

Reajuste salarial não provoca hiperinflação

A recente elevação do salário mínimo real em 5,8% suscitou apreensões acerca de seu impacto nas taxas de inflação. Alguns estão prevendo a possibilidade de a taxa de incremento nos salários reais de 5,8% no semestre venha a jogar a inflação na casa dos 350%. Tal hipótese baseia-se no raciocínio de que os empresários elevarão seus preços de tal forma que os salários reais médios (média mensal dos salários corrigidos pela variação de preços) sejam reduzidos aos níveis anteriores aos reajustes. A rigor, tal análise seria aplicável a toda e qualquer elevação de custos, ainda que isoladamente, seja de salários, de juros, ou de insumos; assim, um aumento real de um determinado componente de custo, independentemente de seu peso no total, levaria aos mesmos incrementos da inflação anual. Trata-se, evidentemente, de um raciocínio falacioso, pois ignora a necessidade de ponderação de cada componente de custo pela sua participação no todo.


Tal metodologia somente seria aceitável teoricamente — em realidade as condicionantes empíricas tenderiam a reduzir consideravelmente a validade de seus pressupostos básicos — caso o exercício fosse iniciado a partir de um dado aumento percentual nos custos totais de produção, e não em um de seus componentes, como proposto. Para ilustrar a grosseira superestimação que aquela metodologia produz basta atentar para a previsão dela resultante de que, iniciando-se com taxas de inflação de 225% ao ano, um aumento dos salários reais em 5%, conjuntamente com a trimestralidade e com a redução da jornada de trabalho de 48 para 40 horas, resultará num salto da inflação para 17500% (dezessete mil e quinhentos por cento ao ano).


Também está implícita naquela metodologia de previsão de inflação que, ao reajustar preços o suficiente para fazer com que o custo real médio de um determinado insumo retorne aos patamares anteriores à elevação de seu custo, os empresários estarão aumentando suas margens de lucro. Isto pode ser visto, por exemplo, no caso de uma elevação de preços de produtos importados (cujas causas seriam exógenas à economia interna). A elevação de preços causará aumentos nos preços finais do produto em percentuais acima da elevação dos custos, muito embora os preços de todos os demais insumos possam ter permanecido constantes. É preciso notar que o fenômeno inflacionário, no que se refere aos efeitos da política salarial, deve ser visto como um fenômeno microeconômico. Evidentemente que a inflação, entendida como variação no nível geral de preços, é medida macroeconomicamente; isto não deve, contudo, gerar confusões a ponto de transformar a análise das variações de custo, e seus efeitos nos preços, em questões macroeconômicas, como se os empresários, ao remarcarem seus preços, estivessem determinando propositadamente os novos patamares inflacionários. Na realidade, a inflação deve ser analisada, numa primeira abordagem, como o resultado de mecanismos de formação de preços a nível de empresas, e não como um fenômeno agregado de composição da Renda Nacional.


O dado relevante para a análise do problema em pauta é a participação dos salários no custo total das empresas, e não a participação do trabalho na Renda Nacional (ou seja, no valor agregado). Preço se compõe de custos (salários, juros, aluguéis, pagamentos de matérias-primas e demais insumos) e de lucros (diferença entre preços e custos). Elevação de custos geram pressões para o aumento dos preços, que se efetivada caracteriza a inflação de custos. Já os aumentos nos lucros, independentemente de elevação dos custos, podem ocorrer a partir de pressões oriundas de excessos de demanda relativamente à oferta, a inflação de demanda. Esta última surge a partir de pressões para a aquisição de produtos em quantidades superiores às disponíveis no mercado. E a explicação tradicional esposada pelos economistas ortodoxos. Está baseada na pressuposição de pleno emprego dos fatores de produção de tal forma que aumentos na demanda se traduzirão em aumentos de preços (e das margens de lucros) face à elasticidade finita da oferta. Ocorre também quando, a curto prazo, há impedimentos estruturais ao aumento imediato da produção, mesmo com disponibilidade de recursos físicos e financeiros. Por outro lado, diversos fatores poderão deflagrar pressões inflacionárias de custos. Aumentos nos salários reais acima do crescimento da produtividade do trabalho provocarão elevação nos custos. Da mesma forma, desvalorizações reais da moeda e inflação externa se refletirão em aumentos dos preços dos insumos importados. Quedas na produtividade, elevações nas taxas de juros e a elevação de preços administrados pelo governo, principalmente os advindos da chamada inflação corretiva, também contribuirão para pressionar os custos das empresas.


A questão que se coloca, no entanto, é saber se os produtores cujos custos se elevam conseguirão repassá-los aos consumidores através de aumentos de preços. Caso não tenham sucesso serão obrigados a suportar perdas reais, e as pressões inflacionárias não se consubstanciarão em inflação efetiva. Na realidade trata-se de um conflito distributivo em que cada qual tenta recompor sua renda real. Na medida em que setores monopolistas e oligopolistas sejam capazes de fixar preços, os lucros são protegidos de aumentos de custos via repasse de preços; e, se as possibilidades de repassar custos adquirem maior abrangência (por exemplo pela generalização de correção monetária) a inflação se torna inercial. Já os setores competitivos, incapazes de preservar suas taxas de lucros pela manipulação dos preços, serão forçados a observar perdas reais, e a ajustar-se pela contração do nível de atividades. Assim, a elevação do salário mínimo real em 5,8% poderá ser repassada, integral ou parcialmente aos preços, dependendo das condições de mercado das empresas, bem como da política econômica adotada.


O impacto inflacionário de aumentos reais de salários deve, portanto, ser analisado considerando-se a estrutura de custos das empresas e as formas de que dispõem para preservar seus lucros. Será influenciado por alguns fatores fundamentais: a curto prazo, dependerá da capacidade de repassar custos, que, por sua vez, depende do grau de concentração e das condições de mercado nos setores afetados; a médio prazo, a própria elevação dos salários reais fortalecerá o mercado consumidor, possibilitando a expansão da oferta (principalmente havendo capacidade ociosa), bem como a queda de custos induzida pela elevação da escala de produção; e a longo prazo, a elevação dos custos reais da mão de obra tenderá a provocar a adoção de tecnologias mais capital-intensivas, provocando alterações na taxa de emprego. Tudo isto, evidentemente, levando em consideração a participação dos salários nos custos totais de produção. Vê-se, portanto, que o ajustamento decorrente da elevação dos salários ocorrerá não somente pelo lado dos preços, mas também pelo lado real da economia. A curto e médio prazos torna-se importante a consideração do grau de concentração da estrutura produtiva brasileira (alta no setor industrial e também em alguns ramos do setor terciário), das condições do mercado interno (ainda deprimido, dificultando o repasse de custos), do potencial de redução de custos pela elevação da produção (provavelmente elevado face aos altos custos fixos unitários decorrentes da capacidade ociosa dos setores produtores de bens de salário). Por estas razões não é possível comungar com as visões "catastrofistas" associadas às reivindicações dos trabalhadores. Sem dúvida são inflacionárias, mas não o suficiente para impedir que sejam, pelo menos, consideradas.


MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, é Ph.D. pela Universidade de Harvard (EUA). professor da EAESP/FGV e consultor econômico da Folha.



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