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Marcos Cintra

Vinculações, indexação e outros bugs orçamentários: uma onda que se forma para afogar o país

"O problema não é que as pessoas não entendam de economia, mas o volume de coisas que elas sabem e que não são verdade.” (Thomas Sowell)

Em maio fomos brindados pela imprensa com artigos sobre vinculações e indexações orçamentárias, e seus efeitos fiscais por alguns dos economistas mais coroados da mídia impressa: Celso Ming (Estadão, 12/5/2024), Samuel Pessoa e Marcos Lisboa (Folha de S.Paulo, 12/5/2024).


Eles trouxeram ricas e provocativas contribuições sobre o tema, e apresentaram excelentes diagnósticos e sugestões para terapia, cura e eliminação definitiva dos problemas.


Samuel Pessoa aponta os efeitos causados pela falta de harmonização entre as decisões de gastos tomadas pelo Congresso sem contrapartida com a necessária definição de fontes de financiamento. As decisões marginais tomadas isoladamente pelo Congresso vão se acumulando ao longo do tempo e, tal qual na falácia da composição, resultam em inconsistências estruturais de longo prazo cuja única solução seria um suposto aumento da arrecadação, inflação ou calote.


Contudo, a saída mais intuitiva, aumentar a arrecadação, não se mostra adequada pois a cada elevação de receitas as vinculações que dominam o orçamento nacional (predominantemente saúde, educação e transferências intergovernamentais, etc.) resultam em equivalente elevação automática e obrigatória de despesas, anulando o ajuste fiscal esperado.


E mais grave ainda, como nos alerta Marcos Lisboa, a impossibilidade de redução de gastos obrigatórios (como salários, educação, saúde, INSS, bolsas e transferências a Estados e municípios) advém de nosso aparato legal altamente rígido que não permite cortes significativos de gastos públicos. Fica como única válvula de escape o corte acelerado das despesas discricionárias, principalmente os investimentos públicos, hoje praticamente inexpressivos e tendentes a zero. Essa inconsistência estrutural, uma armadilha de difícil desarme, está na base da desorganização orçamentária vigente em nosso país.


“O governo tem que revogar a indexação de gastos com saúde e educação à receita, além dos reajustes reais do salário mínimo, ou desconfigurar severamente o arcabouço fiscal" (Marcos Lisboa).

Outro exemplo do impacto nefasto de vinculações e indexações orçamentárias é a vinculação do valor dos benefícios previdenciários como pensões e aposentadorias ao salário mínimo, este último, por sua vez, alvo de uma política de indexação e valorização real.


Além disso, Celso Ming reitera o que venho insistentemente apontando em alguns de meus artigos recentes publicados na OrbisNews, na mídia social e no meu site.


Razões técnicas como novas formas de contratos de trabalho, a prevalência crescente do trabalho independente e as alterações demográficas recentes poderão fazer com que em 30 anos o contingente de beneficiários da previdência social brasileira supere o número de contribuintes. A previdência está falida e seus déficits crescentes, previstos em R$ 363 bilhões em 2024 e em mais de R$ 1 trilhão dentro de 20 anos, agravam desesperadoramente as previsões econômicas para o Brasil em futuro próximo.


“Faliu miseravelmente o regime de caixa, aquele em que os trabalhadores da ativa (mais as empresas) cobrem os benefícios dos aposentados” (Celso Ming)

Os custos da previdência para suportar os aposentados, ampliados por inúmeros benefícios oferecidos pelo Congresso sem cobertura atuarial, tendem a tornar a cunha tributária sobre o custo do trabalho insuportável, o que gera efeitos substitutivos da mão de obra assalariada nos modelos de negócios das empresas, reduzindo ainda mais os contribuintes do sistema.


Dadas as atuais circunstâncias e a incapacidade do país de ir a fundo na solução de seus graves problemas institucionais, será necessário, ainda que doloroso e de certa forma injusto, que direitos adquiridos tenham de ser cancelados ou fortemente contraídos. A vinculação do salário mínimo ao valor dos benefícios precisará ser rompida. E há justificativa para isso, este aparente rompimento de contrato. As aposentadorias são tacitamente consideradas estáveis em valores reais no Contrato Social brasileiro, e nada indica o compromisso de valorização real desses valores, como ocorre por sua vinculação ao salário mínimo. 


Não é o caso de se discutir aqui as medidas corretivas que se farão necessárias para evitar o desastre. Não será uma tarefa tranquila política ou socialmente reduzir benefícios e, muito menos, aumentar a arrecadação dos atuais contribuintes. Mas é hora de começarmos a pensar na eliminação de alguns fatores predisponentes a todas essas distorções. Vinculações orçamentárias, indexações e gastos obrigatórios irredutíveis são evidências de reincidentes violações ao orçamento fiscal. As discricionariedades típicas e necessárias para os orçamentos anuais foram sequestradas por decisões permanentes tomadas em momentos diferentes e que serão operacionais em momentos e circunstâncias desconhecidas. A vinculação orçamentária tem um efeito fiscal perigoso, como apontado por Pessoa, Lisboa e Ming.


Mas há um grave efeito secundário adicional: ela estimula a má aplicação dos recursos liberados. Isso porque a automaticidade e obrigatoriedade de liberação desses recursos vinculados reduz a zero o custo de oportunidade dessas verbas; seu preço sombra colapsa a zero, e o estímulo à boa aplicação desses recursos, que seria necessário caso tivessem custos de oportunidade positivos e operando dentro de um ambiente de disputa orçamentária, estimula a ineficiência em sua aplicação. Por essa e outras razões, setores de saúde e educação, aquinhoados com fatias ponderáveis das receitas disponíveis, 15% e 18% respectivamente, resultaram em paupérrimos resultados ao longo de décadas de aplicação.


Vinculações significam a negação do processo orçamentário saudável, que depende sobretudo das circunstâncias específicas no momento de sua elaboração e execução. A vinculação engessa as escolhas, e causa um grave anacronismo nos momentos de decisão e de execução.


 

M A R C O S C I N T R A C AVA L C A N T I D E A L B U Q U E R Q U E

Doutor em Economia por Harvard. Professor Titular e Vice-Presidente da FGV. Foi Secretário Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia, Presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), Secretário do Planejamento do Município de São Paulo, Secretário de Finanças do Município de São Bernardo do Campo, Secretário do Desenvolvimento Econômico e Trabalho do Município de São Paulo e Subsecretário de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado de São Paulo. Foi Vereador e Deputado Federal.


Publicado no Boletim AASP - Edição setembro de 2024

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