A Emenda Constitucional 132/2023 tem gerado um intenso debate sobre sua compatibilidade com o pacto federativo brasileiro.
A principal crítica, a meu ver, que adianto nessa nota, reside na forma como a reforma tributária foi aprovada, em contraste com modelos de IVA dual adotados em outros países, como Canadá e Índia, usualmente citados como exemplos a serem seguidos.
A EC 132/2023 visa simplificar o sistema tributário brasileiro através da implementação de um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) dual; e inclui a criação de um Conselho Federativo para gerenciar a arrecadação do IBS, com a participação de representantes de estados, municípios e do Distrito Federal.
A centralização da arrecadação no Conselho Federativo é vista por alguns como uma violação da autonomia tributária dos estados e municípios. Embora todos tenham representação no conselho, críticos argumentam que a capacidade de decisão local é reduzida, pois a gestão integrada pode não refletir as necessidades específicas de cada região.
De fato, a importância do Conselho como gestor do sistema é gigantesca, pois a ele compete a legislação secundária, qual seja, a interpretação da lei e sua aplicação obrigatória. Isso faz com que, individualmente, cada ente federado se julgue incapaz de influenciar os rumos de seu sistema tributário, e por outro, sinta-se entregue a um órgão não eleito que terá poderes quase plenipotenciários sobre o IBS.
Especialistas apontam também que a complexidade do novo sistema pode aumentar a litigiosidade, com disputas sobre repartição de receitas, cobrança e fiscalização tributárias. A imposição de um modelo uniforme em um país com disparidades regionais significativas pode gerar conflitos prolongados nos tribunais.
Não obstante a polêmica envolvida nesse debate, acredito que um elemento essencial me convence que de fato há uma agressão à autonomia tributária de entres federados. Eis a razão.
No Brasil, a implementação do IVA dual é uma imposição aos entes federados, ferindo a autonomia garantida pela Constituição. Diferentemente, no Canadá e na Índia, a adesão ao sistema de IVA dual foi voluntária, respeitando a autonomia das províncias e estados. No Canadá, algumas províncias optaram por não participar do sistema ou mudaram sua participação ao longo do tempo, demonstrando um respeito maior à autonomia regional.
O modelo canadense de IVA dual permite que as províncias optem por participar ou não do sistema harmonizado. Essa flexibilidade é crucial para respeitar a diversidade econômica e política do país. Algumas províncias, como Alberta, optaram por não adotar o IVA harmonizado, mantendo sua plena autonomia.
Na Índia, o GST (Goods and Services Tax) foi implementado após longas e difíceis negociações entre o governo central e os estados que duraram mais de uma década.
O consenso apenas foi alcançado através de compromissos que asseguraram a autonomia dos estados em certas áreas e generosas garantias de arrecadação oferecidas pelo governo central.
No Brasil seguimos o modelo indiano, onde a União se comprometeu a criar e financiar inteiramente fundos de compensação que nos próximos quinze anos deverão chegar a mais de um trilhão de reais; e pior ainda, sem apontar fontes de recursos.
Vale dizer que na Índia o governo central não foi capaz de honrar o seu compromisso, e propôs recentemente a criação de novos impostos (no caso sin taxes) com a finalidade de custear tal compromisso descumprido.
A EC 132/2023, ao impor um modelo de IVA dual sem a opção de adesão voluntária, é uma agressão ao pacto federativo e à autonomia dos entes federados no Brasil.
A experiência de países como Canadá e Índia demonstra que a implementação de um sistema tributário compartilhado pode ser bem-sucedida quando há respeito à autonomia regional e adesão voluntária. Para a reforma tributária alcançar seus objetivos de simplificação e eficiência, é fundamental que o Brasil considere modelos que respeitem a diversidade e as necessidades específicas de suas regiões, promovendo um verdadeiro pacto federativo baseado no consenso e na cooperação.
Marcos Cintra é doutor em economia pela Harvard University (EUA) e professor-titular e vice-presidente da FGV (Fundação Getulio Vargas). Foi secretário especial da Receita Federal.